Artigo

TRÊS NOTAS CRÍTICAS

SOBRE A ACTUALIDADE POLÍTICA

 João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2025

OS CIÚMES DO PS

LI ALGURES que o PS estaria com “ciúmes” ou mesmo “amuado” pela aproximação do PSD (a AD é uma ficção eleitoral para dar emprego à dupla Melo&Núncio e para enganar o freguês eleitoral) ao CHEGA. Curiosa formulação sobre as relações entre dois partidos políticos. Coisa de afectos, é o que parece quererem sugerir. Namoro (em crise) de regime entre parceiros com interesses comuns. E, todavia, esta leitura estapafúrdia tem alguma razão de ser, pois encontra fundamento na insistência com que o PS tem vindo a reivindicar a centralidade histórica do diálogo privilegiado entre as duas tradicionais forças da alternância (governativa). O que até há uns tempos atrás fazia algum sentido, pois eram as duas forças centrais do sistema, governando em alternância, hoje já não faz. Hoje, que entrou em cena um novo protagonista central, esta lógica deixou de fazer sentido, até porque o novo protagonista pode mesmo vir aceder à chefia do governo, como, de resto, já foi reconhecido pelo actual primeiro-ministro, o mesmo que dizia “não, é não”: “acho que esses (PS e CHEGA) são os mais importantes porque obviamente são aqueles que se afiguram no contexto político-partidário como as alternativas futuras de governo”. Sobretudo a partir do momento (18.05.2025) em que o CHEGA passou a ser a segunda força parlamentar, com 60 deputados. Antes, com o famoso “não, é não do mesmo Montenegro, essa lógica ainda parecia manter-se de pé. Agora, deixou de fazer sentido. Antes, o PS colocava-se na posição de evitar que o PSD caísse afectuosamente nos braços do CHEGA, criando um muro protector de defesa da democracia ameaçada. Agora, já se viu que não é isso que os portugueses consideram central porque, caso contrário, não dariam a força eleitoral que deram àquele partido da direita radical. Na verdade, não é o PSD que está a “normalizar” o CHEGA. Foi o voto dos portugueses que o “normalizou”, ao torná-lo a maior força política da oposição parlamentar. Coisa, de resto, muito pouco surpreendente se atendermos ao que se está a passar na própria União Europeia.

A mim, sempre pareceu que o PS nunca se deveria ter colocado nessa posição de salvador da pátria, de colo da democracia, de vizinho privilegiado ou de compadre do PSD, até porque ela acabaria por condicionar fortemente a sua própria autonomia política. A sua, perdidas as eleições, deveria ser, isso sim, a posição de partido central da oposição (até pela sua força autárquica), cabendo à direita, com maioria parlamentar, entender-se. Isto antes, mas também depois, das recentes eleições. Escrevi-o aqui várias vezes e reafirmo-o agora que a situação parece ter evoluído nesse sentido – estão a entender-se e isso é natural, porque ambos ocupam aquele espaço que o próprio PS identifica como de direita, mas também porque o CHEGA tem uma dimensão parlamentar que o PSD não pode negligenciar. Poder-se-ia dizer que estava escrito nas estrelas, embora essa geometria política já estivesse a ser usada silenciosamente por Montenegro, sabedor de que Ventura nunca viabilizaria um governo do PS. Por isso, o PS deve, sim, finalmente, preocupar-se em fazer uma oposição construtiva, mas crítica, enquanto consistente partido da oposição. E tanto mais quanto a agenda política do CHEGA for sendo absorvida pelo partido que governa. O PS poderia dizer: “têm maioria no parlamento, então entendam-se; nós cá estaremos para combater aquilo que considerarmos errado, injusto e pouco democrático”. E sobretudo cá estamos para construir uma alternativa sólida que possa merecer a confiança dos portugueses, sem nos deixarmos cair na ratoeira do politicamente correcto e do wokismo, que tanto têm alimentado politicamente a direita radical. Anunciámos uma profunda reflexão sobre a nossa própria identidade política e iremos promovê-la, sem, entretanto, deixarmos de cumprir rigorosamente o nosso dever de importante força política de oposição.

OS DEVERES DE UM PRESIDENTE
DO PARLAMENTO

O que se tem passado no Parlamento é a todos os títulos verdadeiramente incompreensível, com os presidentes em exercício a desempenharem muito mal as suas funções. Limito-me a dois casos exemplares: o do uso parlamentar da palavra “vergonha” e da palavra “fanfarrão”. A primeira, verberada, com o ar circunspecto e pesado de um vigilante da linguagem parlamentar, o então PAR Ferro Rodrigues; a segunda, verberada pelo actual PAR, Aguiar-Branco (com hífen). Duas injunções sem qualquer sentido, mas ambas bem elucidativas das presidências de Ferro Rodrigues, de Santos Silva e de Aguiar-Branco. Uma fanfarronice de que todos eles se deviam envergonhar. Não fosse suficiente o estatuto e as funções de um presidente da AR para moderarem o seu comportamento, bastaria pensar que existe, em relação aos deputados, um mecanismo chamado “imunidade parlamentar” para travar a pretensão de os PARs fazerem injunções verbais desse teor. Mas, mesmo assim, se este aspecto ainda não fosse suficiente, bastaria pensar que os parlamentos foram inventados não só para integrar institucionalmente as diferentes sensibilidades políticas existentes no país e para fazerem as leis que regulam a vida da cidadania, mas também para, através da representação institucional, constituírem uma espécie de sociedade em miniatura capaz de absorver institucionalmente as disrupções sociais que, de outro modo, tenderiam a manifestar-se com radicalidade e violência nas ruas. O parlamento também funciona como uma espécie de almofada que atenua os embates sociais, transformando-os em debates cívicos, argumentados e retóricos que se substituem à violência do confronto físico. Tudo isto obriga a que a liberdade parlamentar seja muito ampla, chegando, e por isso mesmo, a ser configurada como imunidade parlamentar, símbolo máximo da liberdade parlamentar. Claro, dada a importância da instituição parlamentar, os representantes deveriam sempre estar ao nível até porque estão em funções de representação (não-imperativa) da cidadania, sendo-lhes exigível não só moderação, mas também respeito pelo próprio mandato. Ou seja, devem ser exemplares no exercício das funções e das próprias prerrogativas. O que não pode acontecer é estarem condicionados no exercício das suas funções pelos novos vigilantes da linguagem politicamente correcta. Até porque essa vigilância é limitadora da liberdade oratória dos deputados e pode ser ela própria geradora de revolta. Uma das razões que me fazem hoje preferir um sistema eleitoral de círculos uninominais é precisamente porque este sistema é mais exigente relativamente à qualidade da representação parlamentar, não só porque os candidatos devem submeter directamente a própria candidatura aos eleitores, mas também porque põe fim à total discricionariedade das escolhas por parte da classe dirigente (as candidaturas são propostas em envelopes fechados com a sigla do partido). Este tipo de sistema eleitoral valoriza o rosto dos que se apresentam como candidatos e responsabiliza-os mais directamente perante os próprios eleitores. Não sendo a varinha mágica do regime, ele pode ajudar a melhorar a qualidade do sistema parlamentar.

O ESTADO-CARITAS
E AS ELEIÇÕES AUTÁRQUICAS

Outra questão é a da já famosa “esmola de Estado” aos pensionistas, inaugurada, é preciso dizê-lo com clareza, por António Costa (em Outubro de 2022, se não erro), mas agora com a agravante de acontecer em cima de uma importante campanha eleitoral autárquica. O PR dispõe de um instrumento para travar esta indignidade (Decreto-Lei 86-A/2025, de 18.07), através do veto.  Mas não o usou. E considero que ele deveria ter usado o seu poder, ainda que fosse para dizer que a haver “esmola” ela teria que ficar para depois das eleições, em nome da decência democrática. Mas não só o PR deveria ter intervindo. O PS dispõe de um instrumento muito importante: o pedido de apreciação parlamentar do Decreto-Lei, onde até poderia propor uma alteração para o futuro no sentido de estes valores ficarem incorporados a título permanente no montante das pensões. De qualquer modo, aí se veria a posição de cada partido sobre algo que, em boa verdade, nem deveria merecer sequer discussão, nos termos em que isso foi feito. Este suplemento extraordinário, em setembro, antes das eleições autárquicas, não deveria pura e simplesmente existir. Mas o que fazem os partidos? Assobiam para o lado, temerosos de virem a ser acusados de impedir a esmola aos pobrezinhos, de não serem humanistas nem solidários. Montenegro foi “esperto”: se o dou, agradecem; se não for possível, a culpa foi dos outros. Só que se trata de uma questão de princípio: dar “esmolas” antes do voto é duplamente condenável. Para quem as dá,  mas também para quem as recebe, sobretudo nestas circunstâncias.

Não me parece, pois, que a cidadania esteja a ser respeitada. O Estado social não se pode confundir com um Estado-Caritas, com um Estado caritativo que, quando tem  (e se tem) uns cobres a mais, umas folgas, os distribui circunstancialmente pelos pobrezinhos para atenuar dificuldades de momento. Folgas que, verdadeiramente, não há, pois o Estado português paga anualmente em juros da dívida cerca de 7 mil milhões de euros, sendo hoje a dívida pública, em termos absolutos, de cerca de 284 mil milhões de euros. São mais 104 mil milhões do que quando José Sócrates deixou o governo em junho de 2011 (180 mil milhões, em dezembro de 2010).

Esta política de esmolas representa, pura e simplesmente, falta de respeito pelos cidadãos, é engano ou é mesmo engodo. Seja quem for o protagonista que a pratica, de esquerda ou de direita. O que sei é que este tipo de medidas está a generalizar-se cada vez mais (no ano passado assim foi também) e não tem provocado um sobressalto cívico que mereça a devida atenção dos responsáveis políticos pelo poder formal, em todas as instâncias. Tudo começa a saber a truques para enganar o eleitor e o país. E isso também vale para a história da diminuição da retenção na fonte, provocando a ilusão de um crescimento dos salários. A medida em si até faz algum sentido pois o cidadão dispõe durante mais tempo dos seus próprios recursos. Certamente. Mas o que deve ficar claro é que não se trata de aumento salarial nem de redução fiscal, mas tão-só de adiamento da cobrança fiscal. Que, por sinal, até é excessivamente alta. JAS@07-2025

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