Artigo

PENSAR O FUTURO

O PS e o Conselho Estratégico

João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2025

1.

No dia 24 de Julho fui surpreendido por um artigo da jornalista São José Almeida, no “Público”, que dava conta da criação pelo PS de um Conselho Estratégico (CE) composto por 75 personalidades (mas ontem, no momento da instalação, já eram 94) e definido como “órgão consultivo e propositivo” que tem como missão “criar pensamento político estratégico”, “contribuir para o planeamento estratégico da acção política do partido com horizonte temporal até 2050”, dotando o PS “de uma capacidade prospectiva e multidisciplinar capaz de antecipar tendências, propor soluções e dialogar com os sectores mais dinâmicos da sociedade”, em suma, “um espaço de ideias. Um laboratório de futuro. Um ponto de encontro entre a política e o conhecimento”. Pronto, agora é que é, disse para mim. Do Conselho nascerá a luz. Até aqui foi só escuridão? Claro que não. Mas será esta a solução? Tenho fundadas dúvidas.

2.

Infelizmente, não conheço o documento e também não foi publicado até hoje pela newsletter do PS a que dão o nome que antes era o do jornal do partido, “Acção Socialista”, agora reduzido a uma pobre secção do site do partido. Mas, sobre este assunto, pude ler, no dia seguinte, na newsletter, um pequeno artigo que resumia o assunto, abordado brevemente na entrevista televisiva que o secretário-geral, José Luís Carneiro, deu à SIC Notícias nesse mesmo dia 24 de Julho. Entretanto, silêncio sepulcral, só interrompido, primeiro, pelo “Expresso”, em artigo de última página, e, depois, pelo “Público” de ontem (29.07), da autoria de Ana Sá Lopes, a dar conta de mais uns nomes que iriam integrar o Conselho.  A crer no que a jornalista São José Almeida diz no primeiro artigo do “Público”, tratar-se-á certamente de uma iniciativa que irá resolver o que até aqui não foi resolvido pelos actuais órgãos do partido. Um verdadeiro e numeroso Conselho de Sábios escolhido para, qual deus ex machina, pôr ordem no palco onde aparentemente reina, ou reinava, a desordem. Coisa própria de uma tragédia grega.

3.

Sendo militante do PS, no activo, fui informado, não pelo partido, não pelos seus canais de comunicação, mas pelo jornal “Público”, de uma importante decisão do secretário-geral acerca da orgânica do partido de que faço parte. Independentemente de se tratar de uma decisão de legalidade estatutária muito duvidosa, talvez seja uma decisão um pouco estranha, até porque parece indiciar que se quer reformar o partido começando pelo telhado ou, pior ainda, por justapor um novo órgão aos três que já existem. Um imenso e heteróclido chapéu reformador que ditará os caminhos do nosso futuro colectivo. Mas, vistos os nomes que o integram, o que mais apetece dizer é “Não, obrigado!”. Mesmo assim, julgo que mais importante do que isso, e apesar de a iniciativa dizer muito acerca do funcionamento interno do partido e dos  seus critérios de escolha, é o significado da criação de mais um órgão, nos termos em que isso foi feito e nas funções que lhe estão atribuídas. A instalação ocorreu ontem, na sede nacional do PS, tendo sido divulgado o nome do coordenador do CE, Augusto Santos Silva, e uma “foto de família”. Santos Silva é um dos mais longevos dirigentes do PS, com cerca de 26 anos ininterruptos de altas funções no governo, no partido e na AR, sendo legítimo perguntar se, com um curriculum destes, é a personalidade mais adequada para presidir a um órgão que pretende promover a mudança e a renovação. Sinceramente, eu não estou convencido disso, tal como, aliás, e olhando para a foto de família, não me parece ser realístico falar de renovação com tantas figuras que já só representam passado, muitas vezes de valia discutível.

4.

Vou directo ao assunto. E começo por verificar que, com este novo órgão, o PS passa a ter mais de 500 membros nos órgãos nacionais do partido: Comissão Nacional, Comissão Política Nacional, Secretariado e, agora, Conselho Estratégico. O conjunto dos anteriores órgãos representava mais de 400 pessoas, das quais, em diferentes posições, dependia a definição, a aprovação e a execução da orientação política global do PS. Órgãos que, agora, e aparentemente, passam a ser meros legitimadores e executores de orientações que, pelos vistos, terão origem neste estranho órgão. As questões que poderemos pôr são, entre tantas outras, as seguintes: Não eram suficientes os três órgãos nacionais para formular, desenvolver e executar a acção política do PS? Este novo órgão, nos termos em que parece ter sido gizado, não vem confiscar competências aos legítimos órgãos já existentes? Os órgãos já existentes não tinham no seu interior personalidades dotadas de capacidade intelectual e política para levar o partido rumo a um futuro sólido? A reorganização do partido não acaba, assim, por se afunilar num órgão de legitimidade estatutariamente duvidosa? Um novo órgão com 75 (94 ou até mais) pessoas será a estrutura adequada para uma renovação estrutural do partido? Que é feito do Gabinete de Estudos do PS? Seguiu este, tal como as Fundações do partido, o mesmo destino que teve o jornal “Acção Socialista” (de que fui director executivo durante vários anos, tendo sido eu que o informatizei) e que agora vejo reduzido a pobre folha de informação digital que nem sequer está em condições de informar acerca deste novo órgão, delegando a informação a um jornal que não é do partido? Não só o órgão é estranho como mais estranha ainda é a sua génese e a falta de informação interna acerca dele e das razões que levaram à sua formação. 

5.

Confesso que a criação deste órgão me parece totalmente inadequada, não só porque indicia, de forma imprópria, irrelevância e inutilidade dos restantes órgãos, dando ideia de que estes só existem para fazer número e nada mais, mas também porque uma estrutura deste tipo não é, de certeza, funcional, ágil e coerente para levar por diante um processo sólido de renovação do partido em todas as suas frentes. Basta olhar para os nomes que o integram. O tempo o dirá, mas a mim parece que esta é uma iniciativa que visa simplesmente dar ideia de que o partido está em condições de convocar a sua experiência passada (com risco de habituação – “assuefazione” é a palavra italiana – e de produção nula de efeitos) e de se abrir à sociedade civil, nada mais sendo do que mera retórica comunicacional e agregação corporativa (por justaposição) de personalidades em torno do actual secretário-geral. Uma orientação que parece ser apenas de natureza instrumental, mas que poderá vir a revelar-se como contraproducente, até mesmo em relação ao secretário-geral. Alguns dos nomes que o integram soam a “entrismo”, a célebre técnica de pendor trotskista que visava a conquista do poder. Não sei, mas a composição deste órgão parece-me mais uma “ammucchiata”, como dizem os italianos, do que uma estrutura capaz de conceber uma reforma coerente e credível. Pelo contrário, olhando para a composição (e para o número), parece tratar-se de mais de uma lógica de natureza orgânica e corporativa do que da lógica própria da renovação e da inovação.

6.

Na verdade, do que o PS mais precisa é de uma reorganização interna eficaz e representativa, logo a começar pelo método de selecção da sua classe dirigente e dos seus candidatos a funções institucionais de origem electiva aos níveis local, regional e nacional. Tanto no plano interno como no plano externo. Para isso, seria necessário dotar o partido de mecanismos eficazes em condições de promover internamente a emergência de novos protagonistas, revitalizando a dialéctica interna, e de tudo fazer para travar a tendência galopante das candidaturas únicas (e também a saída para candidaturas independentes), que, pelo que sei, está a proliferar, evitando uma progressiva endogamia que só pode levar ao desastre. Trata-se de promover a democracia interna através de mecanismos que contrastem eficazmente o controlo orgânico do partido por grupos organizados que têm como único fim “tratar da vidinha” através da política, a caminho de uma imensa federação de interesses pessoais corporativamente organizados. Mas também deverá ser promovido um trabalho intelectual intenso orientado para o futuro, visando a compreensão das novas dinâmicas da sociedade civil e das novas configurações da cidadania, que há muito está a mudar de identidade, em grande parte devido às novas tecnologias e à intensificação da mobilidade. Do que não precisa é de uma câmara corporativa que mais pareça um palco de vaidades e de sobrevivência de personagens que pouco têm a acrescentar ao que fizeram no passado, quando esse passado teve alguma coisa digna de ser relembrada.

7.

O modo como esta iniciativa nasceu diz muito sobre a sua consistência. O partido não foi informado, ouvido e mobilizado para que dessa mobilização resultasse algo consistente. Bem pelo contrário, a iniciativa foi ocultada ao partido, tendo sido desvelada através de informação externa e insuficiente. O partido foi confrontado com a decisão de lhe ser imposto mais um órgão que apenas resultou de um exercício de vontade individual, neste caso, do seu secretário-geral (ou de quem por ele o gizou e organizou). O que parece indiciar, que me perdoe José Luís Carneiro, uma gestão pouco cuidada do processo de renovação do partido. Uma decisão que inverte o processo de mobilização dos militantes para uma reorganização interna absolutamente necessária, correndo mesmo o risco de a iniciativa gerar indignação, afastamento ou mesmo revolta dos militantes, que se sentirão cada vez mais como mera massa de manobra. Na verdade, a primeira iniciativa no processo de renovação do partido deveria  consistir na promoção de um rigoroso diagnóstico sobre a saúde da democracia interna do partido. Mas não. O processo inicia-se com uma agregação, por justaposição, de um novo órgão de 75 personalidades (ou mais), algumas das quais talvez pouco possam contribuir para a mudança necessária. Estou convencido de que, com esta iniciativa, estamos muito longe da lógica que motivou os “Estados Gerais” de António Guterres e que haveria de mobilizar fortemente o partido e amplos sectores da sociedade civil, levando o PS ao governo do país, depois de dez anos na oposição.

8.

O que está em causa é a própria ideia de mudança, quando, para a promover, se recorre, no essencial, ao mesmo passado que contribuiu para o actual estado de facto e a outras escolhas com base em critérios cuja lógica se desconhece, ao contrário do processo que, bem ou mal, levou à formação dos actuais órgãos nacionais do partido. Não se trata de coisa de somenos acrescentar um órgão de 75 ou mais (94, no momento) membros aos órgãos já existentes. E, por isso, a “emenda” parece ser pior do que o “soneto”, pois o resultado é a desqualificação dos órgãos existentes sem que se alcance uma eficaz compensação alternativa. Bem pelo contrário. Nem sequer parece equivaler a transformismo, mudando algo para que tudo fique na mesma. Não, não se muda. Acrescenta-se e justapõe-se um órgão constituído por cooptação, sem informação, sem critérios de selecção conhecidos nem razões que o justifiquem, provocando, isso sim, uma forte desqualificação dos órgãos nacionais já existentes. Aumenta-se o número com muito do que foi legado do passado, ou seja, do mesmo que nos levou até aqui, isto é, à crise do partido.

9.

Não creio que esta situação seja irremediável, sobretudo se for mais retórica comunicacional do que algo substantivo. E por isso julgo ser útil que se diga tudo o que haja para dizer sobre o que esta iniciativa representa. E até se poderia perguntar por que razão, um dia depois da tomada de posse do Conselho Estratégico, eu faço, aqui, esta crítica tão frontal ao partido de que sou militante. E eu reponderia que, em primeiro lugar, o faço aqui, abertamente, porque também tive conhecimento da iniciativa somente através da imprensa nacional e não através dos circuitos informativos do partido; em segundo lugar, porque sou militante de base e não integro nenhum órgão do partido; em terceiro lugar, porque este tem sido o espaço onde sistematicamente venho comentando, sempre com intenção propositiva, as posições do PS; em quarto lugar, porque pretendo dar o meu contributo, dizendo o que penso sem condicionamentos de oportunidade, para melhorar o processo de renovação do partido. De resto, et pour cause, ainda durante este ano publicarei um livro sobre o PS e os desafios do futuro, orientado precisamente no sentido da renovação ideal, programática e orgânica do partido, além da necessária visão mais global sobre as grandes questões da nossa sociedade com as quais o PS, como partido de governo, deve confrontar a sua própria estratégia. Será um contributo que, dispensando uma qualquer integração orgânica ou corporativa, representará uma resposta aos desafios que justificaram a criação deste enorme CE. E, além disso, representará também a sequência, agora em termos nacionais, do meu mais recente contributo sobre a política do futuro, plasmado no recente livro Política e Ideologia na Era do Algoritmo (S. João do Estoril, ACA Edições, 2024, pág.s 262). Interessem ou não estes livros aos actuais responsáveis do PS, a verdade é que são contributos que procuram responder, com profissionalismo, aos desafios que se põem à política actual, sobretudo na óptica da social-democracia.

10.

Não me parece, portanto, que a criação de um Conselho Estratégico deste tipo e nos moldes em que foi feita, para além da duvidosa legalidade estatutária em que incorre, possa dar um sinal positivo do processo que urge iniciar com vista a dotar o PS de uma  forte democracia interna e de uma robustez ideal, programática e orgânica em condições de o voltar a colocar no lugar que, por razões históricas e pela excelência do espaço político que ocupa na geometria partidária, merece e que, além do mais, é decisiva para a própria saúde democrática do nosso sistema político. JAS@07-2025

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