Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (XIX)

Para um Discurso sobre a Poesia

João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2025

QUANDO O AMBIENTE INIBE A FRUIÇÃO POÉTICA

Quando o tempo físico é propício, sereno, plácido, agradável pode acontecer que a poética fruição sofra uma pequena conversão, digamos, ambiental. A sensação de bem-estar físico é tão boa, tão cheia, que o estímulo poético perde poder propulsivo. É coisa natural. E até acho que o pedido de socorro à musa não seja suficiente para atenuar essa placidez ambiental. Os sentidos às vezes funcionam como contraponto da poesia. Podem provocá-la, sim, mas ela, depois, ocorre em ausência, na penumbra, no silêncio, na sombra. A poesia tem algo de nocturno. A ecologia poética é outra coisa. Não coincide com a outra. Às vezes é mesmo antagónica. Não é por acaso que dizem que a poesia é filha da dor e da penumbra… Sol? Só se for interior.

O BEIJO

Pois penitencio-me por não ter incluído o “Beijo” de João de Deus nos textos que serviram de leitmotiv ao meu poema “O Beijo”, que sempre publico no dia seis de Julho. Mas ele, o João de Deus, era ambicioso e mais afortunado. Não lhe bastava um. Logo pedia outro e outro… Três, a conta que (João de) Deus fez. E invocava as três Graças e as três Virtudes. E as Folhas Santas (que o lírio fecham). Tudo para ter mais um beijo. Ao que o beijo obriga! Mas este poeta só o deu com o olhar. O primeiro. E, ao que parece, por aí se ficou… até decidir que os daria escritos, mesmo que os fantasmas os bebessem. E aí começou a odisseia dos beijos em forma de verso. Mesmo sabendo que ficariam pelo caminho, bebidos pelos fantasmas. Acabou como Sísifo: ter de recomeçar a subida ao Monte até que lhe chegasse (mas nunca chegaria) o sinal de que, ao menos, um beijo chegou ao destino. Ele pensa que um dia o beijo (escrito) há-de chegar. Mas a verdade é que andam por lá os fantasmas para impedir que ele saiba se algum beijo chegou, se algum não foi bebido por eles. E a musa também não ajuda porque a sua linguagem é a do silêncio. Os fantasmas são amigos das musas porque são eles que obrigam os poetas a beijar sem parar por força da incerteza em que vivem. O princípio da incerteza é a alma da poesia. Há ali uma cumplicidade que faz da fraqueza (ignorância acerca do destino dos beijos) força (a permanente subida ao Monte). E, às vezes, as palavras – que parecem leves como plumas – pesam como pedregulhos maciços. A dor é congénita. E a incerteza é constante. São elas que fazem caminhar o poeta. Mas, pelos vistos, o João de Deus até conseguiu convencer a musa. E, em vez de um, até terá conseguido três. Incrível. O problema é que nunca lhe haveriam de bastar só três… E, por isso, teve de continuar. Mas há uma saída: que o vento que os leva os devolva como notícia sob forma de eco do silêncio da musa. Ao poeta basta-lhe isso… para logo recomeçar.

ACONTECER

Quando não aconteceu, mas o desejo existiu, as saudades são maiores. Então pode acontecer a poesia, o olhar comprometido com a memória ou mesmo com o próprio testemunho físico desse passado. Algo que não se completou, mas que se pode ir completando através de outras formas. A poesia é a melhor forma de o fazer. Mas para isso ela tem de nos acontecer. O poema “O Beijo” é um acontecimento, num dado dia e numa circunstância especial. Acontece uma vez por ano. Envolto num certo mistério. Próprio da poesia. E da natureza dos beijos escritos. O mistério só pode ser cabalmente compreendido pelos iniciados. E tudo se torna mais denso quando coberto pelo silêncio, dando origem a algo de tipo oracular. Eu sinto isso assim.

A MUSA DO LEITOR

Eu tenho a certeza de que o leitor também tem a sua musa e que, no poema, de algum modo a reconhece. Alguma sua faceta. Não coincidem os referentes (o do poeta e o do leitor), certamente, mas coincidem os sentimentos, as emoções, as memórias, as intensidades (eu gosto mais da palavra “intensities”)… Tudo enriquecido pela pauta poética que embala esse turbilhão de emoções que a poesia faz renascer em palavras. Sim, a poesia é música para a nossa alma.

TEMPO REVERSÍVEL

O tempo da poesia é um tempo reversível – tanto é presente como passado ou futuro. É um tempo sem tempo. Os gregos tinham aquele tempo que se chama “aoristo”, um tempo sem tempo. O Bergson falava de durée – um continuum, o que já não é que se projecta no que é ou no que será. Tempo subjectivo, diferente do tempo cronológico ou espacializado. O tempo da poesia é um tempo criativo e pode distender-se entre o passado e o futuro, sem contradição. Ele resolve o enigma do tempo. Tudo ao alcance da vontade poética que dá asas ao desejo. Sim, é um tempo diferente. Mais livre. Reversível e ao alcance do desejo. O poeta move-se nele livremente, embora o impulso tenha origem numa pulsão maior do que a sua própria vontade. Condenado a ser livre, poder-se-ia dizer. Assim se redime. E se liberta, construindo o seu futuro com palavras. Reconstruindo-se. O tempo da poesia é um tempo em tensão orientado para o futuro.

TEMPO-SOMBRA

O tempo persegue-nos porque nos segue como a nossa sombra. Mas na sombra não nos conseguimos ver, observar, identificar, porque é apenas um perfil tosco. A sombra está sempre lá. A identificação só é possível através do espelho, porque ele regista o tempo que passa por nós. O espelho é mais do que a sombra, é o reflexo do tempo que passa. O tempo é sombra e é reflexo especular. É daí que resulta o poder do espelho de Athena. Apercebo-me do fluxo temporal sobre mim através do espelho. Mas é uma visão indirecta. Não petrifica. Se te observares no espelho também o tempo te observará, mas sem te petrificar. Viver o presente? Talvez não seja possível porque cada instante vivido já é passado. O presente é uma ficção. Melhor: é uma tensão entre o futuro e o passado. O presente verdadeiramente corresponde ao desejo. É por isso que ele é o tempo da poesia. E só ela permite a reversibilidade do tempo. E assim dá poder ao presente porque permite a sua livre projecção quer para o passado quer para o futuro. Poesia é liberdade.

TEMPO-AORISTO

No tempo poético não manda Chronos, o Deus do tempo espacializado. Há um tempo próprio dos poetas: o kairós. O tempo oportuno. É esse o tempo dos poetas. Que é também o tempo dos deuses. No tempo dos poetas convergem todos os tempos: passado, presente e futuro. E até o aoristo, esse tempo sem tempo dos gregos. É nele, neste tempo sem tempo, que os poetas se movem. Porque é um tempo de liberdade, um tempo reversível. É essa a ampulheta que mede o tempo dos poetas.

AS SAUDADES DOEM

Compreendo: as saudades podem doer. É melhor voar com o tempo e para o futuro, montados em palavras ao sabor do vento que nos sopra na alma. A ilustração do poema “Tempo” tem as duas faces de Janus, a que olha o passado (para trás) e a que olha para o futuro (para a frente). O passado dói menos se o contarmos com os olhos postos no futuro. Tinha razão a Karen Blixen.

POESIA E SAUDADE

É curioso, a saudade pode, de facto, ser induzida pela poesia, pela fantasia, elevando-a a canto sofrido, mas esteticamente fruído, a doce melancolia. A memória revisitada com dor e prazer – essa mistura explosiva de onde pode sair a obra de arte. Ou as obras de arte quando a poesia e a pintura cooperam na construção de beleza. Reviver em arte é projectar o passado no futuro através da forma que dá corpo aos frutos da fantasia. Memória, tempo e fantasia. O poeta é, sim, fingidor, mas a ficção reside essencialmente na forma e no estatuto da linguagem poética, onde acontece a transfiguração do referente, quando e se ele existir. A musa inspira o poeta, sim. Não há poesia sem musas nem fantasmas. Ambos povoam a imaginação do poeta e até lhe servem de aconchego existencial e espiritual. Ele quer sempre chegar à fala com a musa, mas sabe que os fantasmas estão sempre ali, à esquina e à espera dos beijos escritos que ele lança ao vento. Pois é. Um desafio enorme, esse, o de chegar à musa. Mas tem de ser porque sem ela ele definha. Um sem-abrigo que está sempre a tentar construir a casa onde se possa encontrar com ela. Essa casa é o poema. Uma tarefa de Sísifo.

RESSONÂNCIA

O poeta está situado temporalmente no “instante oportuno”, no kairós. De certo modo, a poesia é favorável a um temp(l)o de iniciados, pois trata-se de uma linguagem cifrada. Assim: tempo que acontece num templo: Temp(l)o. Vitrais, silêncio, penumbra, o eco do silêncio, o sagrado. Mas é uma linguagem universal. E vale pela sua “ressonância” na alma de quem a lê. E é altamente performativa.

O PODER DA POESIA

“A poesia pode tudo”, dizia-me um habitual leitor da minha poesia. E pode tanto mais quanto mais bela for, quanto mais musical e sensitiva for.

POESIA E REVELAÇÃO

O pintor e, sobretudo, o poeta nunca devem revelar (se houver) os referentes ou informações que possam induzir interpretações das obras, sobretudo porque, no essencial, não são decisivos para o efeito estético que se pretende propor. A obra deve falar por si, como se não existisse uma qualquer exterioridade que a tivesse suscitado ou a que se possa referir. E, neste caso (o da ilustração do poema “Saudade”), a “Musa” até está associada intimamente ao poema que ilustra em registo sinestésico. Um perfil de mulher (“Musa”). Não é poético procurar o referente da pintura ou do poema.

A INVENÇÃO DO AMOR

No poema “Saudade”, a rua proibida a que o poeta se refere, pelo que sei, não era a mesma da do Daniel Filipe, a do poema “A Invenção do Amor”. Mas era uma rua interdita pelas circunstâncias da vida. É claro que o amor é perigoso, rompe barreiras, não obedece aos cânones racionais nem à autoridade e vai por ali adiante sem cuidar de se proteger. É por isso que ele está irmanado com a poesia. Na liberdade e na beleza. Ambos vão por ali adiante sem cuidarem de se resguardar. O amor poético é vida, é a vida escrita em liberdade plena. A invenção poética é uma invenção do amor. Não há ditadura ou obstáculo que o possa parar ou oprimir. Se isso acontecer ele reactiva-se em intensidade. É este o sentido do poema de Daniel Filipe. JAS@08-2025

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