Artigo

NOVOS FRAGMENTOS (XXI)

Para um Discurso sobre a Poesia

João de Almeida Santos

“S/TÍTULO”. JAS 2025

PAUTA MUSICAL

A POESIA É ARTE e, por isso, mantém uma forte tensão com o belo, não só na forma, mas também na dimensão semântica, no ritmo e na força plástica para que possa tocar a sensibilidade de quem a lê. A poesia é partilha. É preciso senti-la para a compreender. O registo sinestésico ajuda a poesia a ser mais intensamente performativa. Ajuda a “visualizar” o poema, reinterpretando-o com as categorias da pintura e, deste modo, devolvendo-lhe expressividade visual. Mas a música é decisiva para tocar mais intensamente a sensibilidade de quem a lê, podendo, assim, também ouvi-la em surdina. Como quem lê uma pauta musical. Mas a semântica, o ritmo e a melodia ganham mais força e expressividade se forem complementados pela pintura em registo sinestésico. A pintura, com a sua linguagem, sinaliza uma linha interpretativa visual num texto fortemente polissémico e aberto. É este o sentido da sinestesia. Neste caso, o da pintura “Corpo”, a contraluz ajuda a compreender a (relativa) indecisão do poeta acerca da identidade da musa: (https://joaodealmeidasantos.com/2025/08/02/poesia-pintura-274/). E o corpo em contraluz materializa-a. Nele, de certo modo, com a contraluz, exprime-se a neblina do tempo onde a nitidez da imagem se esfuma. Mas é preciso não esquecer que o poeta é um fingidor e que para o fazer melhor usa artifícios retóricos e até sugere (ao pintor) corpos em contraluz. Nunca se saberá se a imagem desses corpos é realmente nítida ou “sfumata” pelo inexorável fluxo do tempo.

RECONSTRUIR A VIDA COM PALAVRAS

Lá dentro do poema “Ilusão” abunda fantasia, saída da alma com as pinças sofisticadas do espírito e da arte: (https://joaodealmeidasantos.com/2025/08/09/poesia-pintura-275/). Voam versos, levados pelo vento, à procura de quem os aceite e os faça seus. Mas trata-se de uma ilusão que não é sentida como tal. É o poder performativo desta linguagem que resolve a aparente ilusão, tornando-a realidade. Ilusão de verdade que se torna uma verdade diferente, uma verdade recriada com materiais plásticos, neste caso, palavras. Talvez seja isso. As palavras transportam sentido que pode ser partilhado, sentido como próprio. E, então, tornam-se realidade efectiva, emoção partilhada. Sobretudo porque elas voam como notas musicais para ouvidos sensíveis. Música que faz vibrar a alma e o corpo. E o poema acontece.

A POESIA É INFINDA

“A poesia é infinda”,  dizia um leitor. Sim, porque se trata de uma linguagem aberta – o mundo cabe lá dentro e não há fronteiras temporais. Pode-se dizer tudo com muito pouco. Um poderoso minimalismo. O milagre da poesia.

A MUSA E O ESTREMECIMENTO

Tem cautela, tem, o poeta – respondi eu a quem lhe dizia, glosando o Garrett, que devia ter cautela. É também por isso que ele finge que tudo é ilusão. E talvez seja. E talvez não. Diz isso num poema para que não se saiba se é mesmo puro fingimento. E quem sabe se não sente mesmo o que diz? Ilusão? Ou finge que é dor a dor que deveras sente, como dizia o poeta? Desvaloriza o poema dizendo que é artifício para fingir que algo acontece, iludindo-se e aquecendo-se com palavras no ambiente frio de uma memória atormentada. Mas a verdade é que – e para que não haja dúvidas – o poema começa logo por referir o “poeta fingidor” e termina dizendo que o amor (causa de poesia) é somente sonho. Mas não era o poeta Calderón de la Barca que, pela voz de Segismundo, também dizia que “la vida es sueño”, “una ilusión, una sombra, una ficción”? Que a musa também o seja até pode acontecer, embora eu pense que sempre haverá por ali o rasto de alguém que fez estremecer o poeta. Estremecimento: o big bang da poesia. Mas que o poema não exista é que é mais difícil de aceitar, quando, como alguém dizia, ele estava ali à frente a falar de ilusão… Mas eu respondo: é poesia. Negar-se poeticamente é sempre possível. A contradição faz parte da linguagem poética. É um recurso que pode intensificar o sentido, provocando espanto ou mesmo estupefacção. E, assim, induzir interacção. O que interessa, do ponto de vista da semântica, afinal, é o sentido do poema, como na fala do Segismundo. Na verdade, tive a ideia de fazer este poema em resposta a uma pergunta: “A musa existe?”. Na verdade, existe e não existe. Tem de existir mesmo que não exista. De outro modo nem haveria poeta. Não há estremecimento sem musa. O poema é sobre isto, este aparente e irresolúvel (a não ser pela poesia) paradoxo. Um poeta precisa de musas como do ar que respira. E ele respira palavras e com palavras. E com palavras gera vida.

TRANSFIGURAÇÃO

Mas é isto que acontece aos poetas se for verdade que a dor e o amor estão na raiz da poesia: “sobreviver (poeticamente) é encontrar um significado no sofrimento”. A poesia é procura e partilha activa de sentido… para o reviver. O poema  “Ilusão” tem como mote uma pergunta feita por uma leitora: “A musa existe?”. E o poeta fingidor responde, no poema, que não. E que nem sequer o poema existe. Que tudo é uma ilusão. Talvez seja. Ele gosta muito do Pirandello – de Così è (se vi pare) ou de Sei personaggi in cerca d’autore, por exemplo. Mas a verdade é que diz isto num poema. Não existe o poema onde diz isto? Talvez a resposta seja: sim e não. Ou melhor, que tudo seja híbrido, meio real e meio fantasia. Talvez. O Croce para dizer algo parecido falava do mitológico “ircocervo” (metade bode, metade veado), de quimera. Mas sempre se poderá dizer que a parte real é a que diz respeito à alma (o habitat da pulsão poética) e a parte da fantasia ao espírito e à forma. Transfiguração do real, onde a transformação conserva e destrói, produzindo uma realidade terceira, uma realidade mista, realidade e fantasia. A quimera existe? Sim e não.

ILUSÃO

Nesse poema (“Ilusão”) o poeta diz que a poesia, tal como o amor, não existe. O Bernardo Soares dizia sobre o amor: “nunca amamos alguém. Amamos, tão somente, a ideia que fazemos de alguém” (Livro do Desassossego, Porto, Assírio & Alvim, 2015, pág. 125). O objecto de amor é somente a projecção especular de uma ideia em que nos revemos, com que nos identificamos? Talvez se trate mais de imagem do que de ideia, pois esta pertence à esfera conceptual enquanto a imagem pode estar inscrita na alma como luz intermitente ou farol que ilumina. Ou talvez seja a convergência activa entre uma ideia que tem raízes profundas na alma e um outro ser humano. No outro revejo-me como num espelho? Curioso o que diz o Bernardo Soares a este propósito: “O onanista é abjeto, mas, em exata verdade, o onanista é a perfeita expressão lógica do amoroso. É o único que não disfarça nem se engana” (2015: 125). Não diria tanto, mas esta parece ser a consequência lógica do que ele diz. De qualquer modo, a ser assim, estamos perante uma ilusão sobre a dialéctica do amor. Bom, mas, afinal, o poema talvez seja mais um elogio da ilusão. Da magia. Da fantasia. Com ela, o tempo torna-se mais leve e o passado é reconstruído à medida do desejo. Melhor: a ilusão é leve e intangível como o tempo do poeta, o fluxo temporal, a durée. A ilusão é mais futuro do que passado, porque pode gerar uma tensão criativa. O passado pesa e amarra. Com a ilusão, libertamo-nos dele. Sonhamos e construímos futuro. Damos asas ao fluxo temporal, fazendo prosseguir o passado na linha do presente e do futuro. Sobretudo quando a ilusão é, tal como a poesia, caleidoscópica. A ilusão da cor, dos aromas, da harmonia dos sons, da brisa calmante. Tudo vai lá para dentro do poema e cria realidade. E a ilusão é tão intensa que chega a ser confundida com a realidade. Quando é alta a sua performatividade. Fazer coisas com as palavras, dizia o Austin. O poema pode ser isso tudo somente porque é poema. Dizer a verdade num poema sabe a ilusão. Só porque é poesia. Que não foi criada para contar a verdade. A verdade da poesia é ilusória, mesmo que seja verdade. Curiosa outra afirmação do Bernardo Soares sobre a ilusão: “Mas na arte não há desilusão porque a ilusão foi admitida desde o princípio. Da arte não há despertar, porque nela não dormimos, embora sonhássemos” (2015: 238). E vem daí o seu poder e a liberdade de que dispõe para tudo poder dizer sem mancha, sem culpa e sem contradição.

AS ASAS DO SONHO

A ilusão faz parte da vida e é ela que nos permite voar com as “asas do sonho”. O excesso de realismo sufoca, mata. Sonhando, resistimos à dor e ao peso insustentável da rotina. A poesia  também é um acto de resistência – pelo voo, pelo sonho, pelo desejo, pela ilusão. E pela leveza, que contraria o insustentável peso da existência… ou do ser. JAS@08-2025

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