“FRAGMENTOS – PARA UM DISCURSO SOBRE A POESIA”
de João de Almeida Santos
(S. João do Estoril, ACA Edições,
2025, 228 páginas)
APRESENTAÇÃO
Auditório do Museu da Guarda
12.09.2025
Por António José Dias de Almeida*
SÃO FRAGMENTOS plenos de significado e de sentido poético que, para este local, para este acolhedor e simpático Auditório do Museu da Guarda, nos convocam. Cabe-me o privilégio, por convite do autor, o meu amigo João de Almeida Santos, de vos apresentar, caros Amigos, a sua mais recente obra no domínio da POESIA e das suas afinidades textuais e contextuais.
1.
Se o título FRAGMENTOS não for (e não é) suficientemente elucidativo, o subtítulo (chamemos-lhe assim), esse, elucida-nos perfeitamente para bem sabermos o terreno que pisamos – PARA UM DISCURSO SOBRE A POESIA. Esta é, pois, a contribuição, mais uma, que o autor nos oferece para nos envolvermos reciprocamente com um tema tão cativante quanto sedutor.
2.
Este excelente volume da ACA Edições, publicado já este ano (2025), é ilustrado na capa com a Pintura Solidão do poeta-pintor (JAS 2023), que assim mesmo se autocaracteriza e se reconhece, como brevemente explicarei. Dono de um currículo brilhante em várias áreas, João de Almeida Santos é natural de Famalicão, deste concelho da Guarda, de cuja Assembleia Municipal foi Presidente, locais a que se sente umbilicalmente ligado e que, através das suas obras e da sua participação cívica e política, tem sabido honrar e dignificar.
3.
Explicitar discriminadamente o seu currículo creio que, aqui e agora, seria supérfluo, pois estou convencido de que a maioria dos presentes o conhece e reconhece. Direi apenas que a Filosofia (licenciado pela Universidade de Coimbra) lhe deu asas para dimensões de maior vulto, tendo sido Professor nas Universidades de Coimbra, La Sapienza, de Roma, e Complutense, de Madrid. Aposentou-se como Professor na Universidade Lusófona, onde desempenhou as funções de Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração. Se me permitem, dispenso-me de referir altos cargos e funções que desempenhou na vida pública, nomeadamente nos domínios político, social e cultural. A sua bibliografia activa é vasta e multifacetada. Direi simplesmente que vai do Ensaio em diversas áreas até à Poesia, passando pela ficção, com a publicação do romance Via dei Portoghesi (Lisboa, Parsifal, 2019).
4.
Finda esta breve deambulação, regressemos à obra que hoje aqui nos traz, FRAGMENTOS, cujo Índice, logo no início da obra, nos dá uma perfeita percepção da sua estrutura fragmentária, composta por quinze capítulos que tenho gosto em enunciar:
I. O PLENO E O VAZIO; II. FANTASIA; III. ENCANTAMENTO; IV. A SAUDADE, O POETA E A MUSA; V. SILÊNCIO; VI. AMAR; VII. O ECO DO SILÊNCIO; VIII. PAISAGENS; IX. SONHAR; X. RAÍZES; XI. A FONTE; XII. O LOUREIRO E A POESIA; XIII. SENTIR; XIV. O BEIJO; XV. TEMPO E MELANCOLIA.
5.
Na abertura, o PREFÁCIO, da responsabilidade do autor, abre perspectivas que elucidam o leitor sobre o carácter da obra, a sua hipotética afinidade com obras congéneres, como, por exemplo, Pensées, de Pascal, e nele são dadas indicações sobre os temas objecto de reflexão nos 206 fragmentos, que foram (palavras do autor) sempre suscitados “pelos comentários dos leitores da minha poesia”. Também no Prefácio, o autor nos remete para a sua obra anterior A Dor e o Sublime. Ensaios Sobre a Arte (S. João do Estoril, ACA Edições, 2023), sublinhando o seu exercício reflexivo com o objectivo de confrontar “o que faço com o que fizeram os grandes poetas, não para os seguir como escola, mas simplesmente para testar e amadurecer a minha própria experiência poética”.
6.
Rematam-se os FRAGMENTOS com o EPÍLOGO, composto por dezoito pontos, constando no último, no décimo oitavo, as referências dos autores e das obras de quem e das quais o autor fez breves e ocasionais citações.
7.
Para um discurso sobre a poesia, fundamentais e essenciais são as palavras e, por isso, recorro ao fragmento 63. O SILÊNCIO E O TEMPO, que se inicia com esta frase significativa: “A poesia acolhe com palavras e nas palavras o tempo que já se foi”. Também o fragmento 85. PALAVRAS remete para o peso que elas têm “quando procuram tocar o real” e nessa situação “chegam a deslaçar-se” – “na poesia acontece esse deslaçamento”. É com palavras que os poetas conseguem voar sobre o silêncio e, de acordo com Pablo Neruda, “as palavras são asas especiais” com as quais os poetas voam até às Musas inspiradoras, figuras recorrentes nestes magníficos FRAGMENTOS durante os quais “o poeta metaboliza a dor para, depois, a converter em palavras ordenadas segundo critérios semânticos, melódicos e rítmicos” (Fragmento 102. METABOLIZAR).
8.
Se há palavra que muitas vezes se repete, logicamente, essa palavra é POESIA, palavra e conceito que, nos vários fragmentos, metafórica e figuradamente, assume diversas qualidades. Assim, algumas vezes a poesia é “um pulsar de alma”, outras “um veículo mágico” e, de forma bem enfática, JAS questiona-se, implicando nessa questão o leitor. Lapidarmente: “E o que é a poesia senão utopia em construção infinda?”
9.
O leitor, pelo menos este que vos fala, concorda em absoluto. Ele próprio sente-se pessoa sensível e, por isso, aceita que a poesia seja “sinfonia para almas sensíveis” e também aceita, de bom grado, os conceitos que o autor lhe vai propondo – por exemplo, que “a poesia é pura alquimia” e, por vezes, ele, o leitor, imbuído do “humor menencorico” de que falava D. Duarte, concede que “a melancolia é irmã gémea da poesia”.
10.
Porém, no fragmento 81. IDENTIDADE, o autor, João de Almeida Santos, comunica-nos que “o exercício poético torna-se menos complexo quando o poeta tem um sorriso perante si. E pode ser o sorriso que ele próprio, enquanto poeta-pintor, pintou. Com palavras e com cores.” Cá está ele! E “vai-se deixando seduzir pelo sorriso que se vai desenhando”. Um pouco mais à frente, assumindo essa dupla qualidade, diz-nos : “o poeta-pintor vive numa teia que é maior que ele. Só tem que sintonizar e deixar-se ir. É por isso que se diz que a poesia acontece ao poeta.” Retomo o que atrás foi referido: “o poeta-pintor vive numa teia”. Para cada um, seu instrumento de trabalho e, por essa razão, aqui se encaixa na perfeição o fragmento 79. CANETA-PINCEL, que cito integralmente:
79. CANETA-PINCEL
“Procuro sempre transpor para dentro do próprio poema a sinestesia concreta que proponho com a convergência total entre pintura e poesia, lembrando-me sempre do grande Cesário Verde: “Pinto quadros por letras”. Caneta-pincel, portanto. Mas também pincel-caneta. Pintar com palavras e escrever com riscos e cores. E o poema torna-se também pauta de uma melodia colorida. Sinfonia de cores e letras”. Indiscutivelmente, este fragmento é um óptimo exemplo de sinestesia, tal como o é o fragmento 117. ENLACE.
11.
Mas regressemos a FRAGMENTOS – PARA UM DISCURSO SOBRE A POESIA, para vos ler integralmente, sem comentários, o Fragmento 196. PROSA POÉTICA:
196. PROSA POÉTICA
“Prosa poética, a tua, dizia-me um Amigo. Talvez porque na minha poesia, respondi, a semântica assuma uma forma especial: quase sempre conto uma história ou, então, como neste poema, “O Poeta e o Tempo”, proponho uma reflexão. Mas é claro que são sempre confissões de estados de alma sofridos. Mas é mesmo só poesia. Teimosamente poesia. Procuro não misturar estilos. Como se sabe, há poesia com forma explícita de prosa. E sem musicalidade aparente. Não é o caso. Até porque não gosto desse tipo de poesia. Para mim, componente obrigatória é a musicalidade do poema, a melodia, a toada, o ritmo. Os versos breves, às vezes de uma só palavra, ajudam a compor a toada. Quanto ao título, normalmente uso títulos curtos e que não procurem traduzir a semântica do poema. Há sempre o risco de estar a impor uma certa descodificação do poema, com prejuízo do incontornável mistério. O ideal, para mim, seria sempre um título de uma só palavra. Por sua vez, os versos de uma só palavra significam que essa palavra tem peso específico no tecido poético, seja musical seja semântico. Digamos que esta opção faz parte da minha poética. Eu procuro sempre a harmonia entre o sentido e a musicalidade (a toada, o ritmo, a rima). E isso tem consequências no processo de construção do poema”.
12.
Normalmente, as epígrafes acontecem/surgem no início. Perdoem-me que, aqui e agora, me sirva de O Livro de Cesário Verde e, à laia de uma pré-conclusão, cite a célebre quadra da II Parte do conhecido poema NÓS:
Pinto quadras por letras, por sinais,/ Tão luminosas como os do Levante,/ Nas horas em que a calma é mais queimante / Na quadra em que o Verão aperta mais.
Cesário Verde, obrigatoriamente, nesta ocasião e neste espaço, tinha que estar connosco. É uma evidência que não precisa de ser realçada.
13.
O poema que escolho para terminar esta minha participação, intitula-se O POETA QUE SE FEZ PINTOR:
O POETA QUE SE FEZ PINTOR
O POETA BRINCAVA Com suas palavras, Cantava o amor Porque a desejava. ERA UM POETA, Era fingidor, Não a desenhava, Cantava-lhe A cor. SUAS CORES Eram palavras, Fazia pincel Da sua caneta, O poeta riscava, Mas sua tinta Já não era preta. POR ISSO COMPROU Um belo pincel E pintava, Pintava... ................ Era a granel... ............ E a sua tela Deixou de ser O velho papel. DESCOBRIU A COR, Que o fascinou: Azul, vermelho E tanto amarelo... ............... Tudo ele pintou, Procurando sempre O que era belo. ATÉ QUE O ENCONTROU Na cor dos seus Olhos, Era luz da pura Que iluminava O novo papel Onde desenhou O seu fino rosto Com o seu pincel. DESCOBRIU AS CORES Com que a dizia, As suas palavras Tornaram-se riscos... ................. Mais que poesia. PINTAVA ASSIM E os seus poemas Já não lhe chegavam, Pintor de palavras, De cor as compunha E versos voavam No azul do céu... ................. “E o que tu fazias Faço agora eu (Dissera-lhe um dia), Porque sou poeta Mas também pintor". "DEIXASTE-ME SÓ, Entregue à palavra, E eu, Tão pobre de ti, Pintei-me de dor". "MAS EU FAÇO DELA O meu arco-íris Pra subir ao céu A ver se t’encontro Atrás duma cor Pintando o teu rosto Para um poema Que vou escrever Com todas as cores Que trago comigo Enquanto viver”. O POETA BRINCAVA Mas era séria Essa brincadeira, Perdido em palavras Encontrou a cor E nos seus poemas Dela fez bandeira. (Santos, J. A., 2021, Poesia, Lisboa: Buy The Book, pág. 72)
14.
João de Almeida Santos, tal como Sísifo, está condenado a empurrar palavras e mais palavras até ao cume da montanha. Daí, continuamente, elas rolam até ao “Vale Encantado” de Famalicão. De novo as levará até ao cume e assim, sucessivamente, acontecerá. Nós, leitores, satisfeitos com esse “pesadelo” do autor, continuamos à espera de mais poemas e de mais reflexões poéticas porque há muito para dizer e escrever.
15.
“O resto, a Poesia que o diga”, como nos ensinou o poeta Nuno Júdice.
NOTA*
António José Dias de Almeida é professor aposentado do Ensino Secundário. Licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa, exerceu funções docentes na cidade da Guarda. Em 2005 foi agraciado com o grau de comendador da Ordem de Instrução Pública pelo Presidente da República, Jorge Sampaio. Foi membro da Comissão Executiva do Centro de Estudos Ibéricos (Guarda).


