ENCONTRO COM NOVALIS
A PROPÓSITO DO LIVRO FRAGMENTOS (S.JOÃO DO ESTORIL, ACA EDIÇÕES, 2025)
João de Almeida Santos
NA SESSÃO DE APRESENTAÇÃO do meu novo livro FRAGMENTOS – Para um Discurso sobre a Poesia (S. João do Estoril, ACA Edições, 2025) no Centro Cultural de Cascais, na passada Sexta-Feira, para além dos devidos agradecimentos à Fundação D. Luís I, ao Professor Salvato Teles de Menezes, na dupla condição de Presidente da Fundação e de qualificado apresentador do livro, à Editora ACA Edições, na pessoa de Ricardo de Almeida Santos, e a todos os presentes, quis sublinhar esta faceta mais criativa e livre do meu percurso intelectual relativamente àquela outra que desenvolvi durante décadas por exigências de natureza profissional e académica. Nesta outra relação espiritual com a vida e com o mundo, através da arte, a liberdade não conhece limites. Os únicos que conhece são os da própria alma e da fantasia, aqueles que desafiamos com a fantástica maquinaria poética, se me é permitido usar esta expressão. Voar da alma para o espírito através de palavras ritmadas, asas da alma e da fantasia, é o estimulante desafio que se põe ao poeta sempre que inicia a viagem.
1.
Iniciei este tipo de publicação em 2021, no meu Livro de Poesia, dedicando-lhe cerca de 70 páginas (Lisboa, Buy The Book, 2021, pp. 351-420), mas transcrevendo também os comentários que, por diversas razões, considerei mais significativos. Em 2025, este livro já não transcreve os comentários, mas unicamente as minhas respostas, reconstruídas para dar a cada fragmento a necessária autonomia de sentido, evitando também tornar o livro demasiado extenso e complexo. Em 2026, publicarei um novo livro de fragmentos, seguindo a mesmo lógica deste. Livro já pronto e apenas a aguardar publicação. Publicarei também um novo livro de Poesia (POESIA II) que incluirá os poemas que foram objecto dos comentários que integram este livro. Poderão assim os fragmentos ser confrontados com os poemas que lhes deram origem.
2.
Que razões explicam a publicação deste tipo de livro?
- Preservar o meu trabalho de reflexão, em forma de diálogo com os leitores, sobre a minha própria poesia, vista a possibilidade do seu desaparecimento digital (os diálogos estão, sobretudo, no Facebook).
- Propor uma reflexão mais aprofundada sobre a minha poesia, essa, sim, a minha actividade principal, da qual, afinal, acabou por nascer, há oito anos, outra actividade, a da pintura digital, para que pudesse manter o processo sinestésico que há muito anos venho desenvolvendo entre a poesia e a pintura.
- Aperfeiçoar a minha própria poesia, ao reflectir, em diálogo, sobre ela a propósito de cada um dos poemas que vou publicando.
- Dar público conhecimento do que penso sobre o que faço e sobre o que considero ser a poesia e os ambientes em que ela nasce, acontece e se desenvolve.
- Reflectir demoradamente sobre o que julgo estar na origem da poesia.
- Reflectir sobre a relação da poesia com a ideia de tempo.
- Reflectir sobre a relação da poesia com a música, que considero essencial no processo de relacionamento com a sensibilidade de quem a partilha.
- E, finalmente, reflectir sobre o processo de sinestesia entre a poesia e a pintura que desenvolvo sistematicamente como forma de enriquecimento mútuo ou até de “visualização” de uma certa interpretação dos poemas.
3.
Tudo isto está presente no livro em prosa híbrida, mas que tende a funcionar mais como linguagem poética do que propriamente como prosa. Quando se escreve sobre poesia, a tendência a poetar é inevitável. Este aspecto foi muito bem evidenciado na intervenção do Prof. Salvato Teles de Menezes (cuja publicação, aqui, está prevista para a próxima semana) e corresponde, de facto, à colocação do autor numa posição de total liberdade de escrita e, naturalmente, à propensão para o fazer em linguagem dominantemente poética. Linguagem que acaba por se impor a quem se dedica intensamente ao exercício poético. Uma leitura interna com a própria linguagem da poesia, feita também a partir da própria condição de poeta. O resultado acabou por ser aquele que foi evidenciado na apresentação do livro pelo Professor Salvato.
4.
Neste livro registam-se intertextualidades que não foram que intencionais e onde a convergência de posições não foi, portanto, motivada por um qualquer nexo de causalidade, tendo apenas acontecido devido à natureza especial do exercício poético, tal como eu o entendo. Limito-me a referir, como exemplo, um caso, o de Novalis (1772-1801) – que revisitei depois de uma referência que o Prof. Salvato me fez -, nessa obra que tem o mesmo título da minha, Fragmentos (cuja primeira publicação é de 1798), onde é possível registar, nos vinte curtos fragmentos que irei transcrever e comentar, uma grande coincidência de ideias sobre a poesia e que pode ser constatada através de uma leitura atenta destes meus “Fragmentos”. Passo a reproduzir textualmente o que diz Novalis, usando a excelente edição bilingue (alemão-português) da Assírio&Alvim, com selecção, tradução e introdução do escultor Rui Chafes, Fragmentos de Novalis (Porto, 2024, 3.ª edição), com curtos comentários meus a cada fragmento:
- “Poesia, a arte de excitar a alma” (2024:135) de quem frui, digo eu. Rui Chafes traduz, e correctamente, Gemüt por ânimo, mas eu prefiro traduzir por alma. Mas acrescento ainda o seguinte: no poeta talvez seja a alma em desassossego a precipitar a poesia. Eu sinto que é mesmo assim. Mas estamos no mesmo terreno.
- “O espírito nasce da alma – ele é a alma cristalizada” (2024: 127) em forma de poesia. O fenómeno da “cristalização” foi referido por Stendhal, em De l’Amour (1822), em relação ao amor: uma “operação do espírito” tendente a projectar beleza no ser amado: “uma vez iniciada a cristalização, apreciamos com delícia cada nova beleza que se descobre no ser amado” (Do Amor, Lisboa, Relógio d’Agua, 2009, p. 35). Também na poesia é assim.
- “O lugar da alma está no ponto onde o mundo interior e o mundo exterior se tocam” (2024: 31). O poeta vive num intervalo, que o mesmo é dizer no lugar de intersecção entre o mundo interior e o mundo exterior. Diz o Bernardo Soares, no Livro do Desassossego (Porto, Assírio&Alvim, 2015): “saber interpor-se constantemente entre si próprio e as coisas é o mais alto grau de sabedoria e prudência”; ou “sou a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero” (2015: 409; 206 ). É neste intervalo que o poeta se situa.
- “Deveríamos estar orgulhosos da dor” (2024:125). Reconheço a dor como fonte primordial de onde nasce a poesia. “Em tempos felizes são raros os sonhadores”, dizia Hölderlin em “Esboço de uma Poética” (Todos os Poemas, seguido de Esboço de uma Poética, Porto, Assírio&Alvim, 2021, p. 610)
- “A poesia é a grande arte de construção da saúde transcendental. O poeta é, portanto, o médico transcendental. A poesia põe e dispõe da dor e do prurido – da vontade e da falta de vontade – erro e verdade – saúde e doença. – Ela mistura tudo para a sua suprema finalidade – a elevação do Homem acima de si mesmo” (2024: 47). Poderíamos dizer: o poeta é mais do que psicanalista de si próprio, porque a sua é uma missão superior a si próprio.
- “Não deverá, eventualmente, a poesia exterminar o desprazer – tal como a moral o faz com o mal?” (2024: 121). O poder de resgate da poesia – a passagem da tristeza à melancolia e desta à “doce melancolia”.
- “Toda a poesia repousa sobre uma activa associação de ideias” (2024:125). Frequentemente eu falo da poesia como uma espécie de divã psicanalítico, e julgo que com alguma razão, com a diferença de o resultado ser de natureza estética e performativo, embora Novalis também diga que “a estética é completamente independente da poesia” (2024: 135). Julgo que ele se refere à dimensão interior da poesia – só pode ser fruída se for sentida. O “espírito dionisíaco” é independente do “espírito apolíneo”, se quisermos usar a linguagem do Nietzsche de “A Origem da Tragédia”. A poesia nasce da emoção e o espírito cristaliza-a, eleva-a, sublima-a. A experiência poética não pode acontecer como se o poema estivesse numa posição exterior à de quem o frui. A identidade exigida na relação poema/fruidor retira exterioridade à relação estética. A estética implica uma certa relação sensorial na óptica do observador. Na poesia, a relação interna é dominante. Talvez seja neste sentido que se pode compreender a afirmação de Novalis.
- “A linguagem é um instrumento musical das ideias” (2024: 117). O poder sensitivo da toada poética, do ritmo e da melodia como forma de exteriorização da palavra e do sentido. A música é não só irmã gémea da poesia, mas é-lhe indissociável – é através da música que a poesia ganha uma forte performatividade. A semântica precisa da música como seu alimento. Diz o Bernardo Soares: “considero o verso como uma coisa intermédia, uma passagem da música para a prosa” (2015: 206). A poesia situa-se entre a música e a prosa. Duma tem a toada e a melodia, da outra tem a semântica.
- “Do produzido nasce de novo o produtor” (2024: 87). Assim acontece com a poesia – o poeta não existe fora da poesia que produz. Na produção poética o poeta renasce. A poesia só se completa quando é comunicada e partilhada (veja-se Bernardo Soares, na citação infra, ponto 19.)
- “Só podemos tornar-nos no caso de já sermos” (2024: 81). Para fazer e para compreender a poesia, é preciso senti-la, vivê-la por dentro, pressenti-la.
- “A imaginação é esse sentido prodigioso que pode substituir todos os nossos sentidos” (2024: 79). Daqui advém a força global e a alta performatividade da poesia. A poesia atinge todos os sentidos. Até o palato. Não era a Natália Correia que dizia aos esfomeados do sonho que a poesia é para comer?
- “A filosofia é a teoria da poesia“ (2024: 59). Se fracassares poeticamente refugia-te no hospital da filosofia, dizia Hölderlin (contemporâneo de Novalis – 2021: 613).
- “O verdadeiro poeta é omnisciente. Ele é um mundo real em pequeno” (2024: 59). O passado, o presente e o futuro num só poema.
- “Apenas um artista é capaz de adivinhar o sentido da vida” (2024: 53). A poesia é o meio mais eficaz e completo para captar o sentido da existência humana.
- “Todo o verdadeiro segredo deve excluir os profanos espontaneamente. Quem o compreender é, por si mesmo, de pleno direito, um iniciado” (2024: 43). A poesia é mistério e é cifrada, ou seja, é para iniciados. Não é um lugar de turismo, de férias existenciais, de divertissement, de prazer – é um espaço para habitar e viver.
- “Nada é mais poético do que a lembrança e o pressentimento ou ideia do futuro. (…) Por isso, toda a recordação é melancólica – todo o pressentimento é alegre. Aquela modera toda a vivacidade demasiado grande – este eleva uma vida demasiado fraca” (2024: 41). A poesia viaja entre o passado e o futuro e o seu ambiente preferido é o da melancolia, visando a sua transformação numa mais suportável “doce melancolia”.
- “A pura linguagem poética deve ser, porém, organicamente viva” (2024: 37). Ou seja, não é uma linguagem conceptual e não está sujeita ao teste da verdade/falsidade. Só se entende se for sentida.
- “Desejos e apetites são asas” (2024: 25). As asas da poesia são as palavras e a propulsão é a que resulta dos desejos e dos apetites. E da dor.
- “É na alegria de manifestar no Mundo”, através da linguagem, “o que lhe é exterior que reside a origem da Poesia. A recordação é o mais seguro terreno do amor” (2024: 17). E o amor é sentimento dominante na poesia. A poesia expõe ao mundo o que vai na alma do poeta. “A arte é a comunicação aos outros da nossa identidade íntima com eles”, diz o Bernardo Soares (2015: 231).
- “Em que consiste, verdadeiramente, a essência (das Wesen) da poesia não se pode pura e simplesmente determinar. (…) Belo, romântico, harmónico são apenas expressões parciais do poético” (2024: 147). A poesia, no seu minimalismo formal, encerra um mundo nela. Só por isso Novalis pode dizer que o poeta é “omnisciente”. Determinar a sua essência seria amarrá-la a uma concreta caracterização, limitando, assim, a sua esfera (ilimitada) de intervenção e de comunicação.
5.
Estas são palavras de Novalis, um autor alemão de finais do século XVIII, reforçadas com algumas outras de Bernardo Soares, Stendhal e Hölderlin, que coincidem com o discurso que neste livro desenvolvo, mas que não nasceu por influência deste grande escritor. Trata-se, simplesmente, de um encontro ditado, talvez, por um alinhamento favorável dos astros ou, então, por um mesmo sentimento experimentado durante o voo poético lá no alto, no azul do céu. Um discurso, e disso tenho a certeza, que, no meu caso, nasceu como resultado da minha própria prática poética. O mesmo me acontecera quando escrevia o meu romance “Via dei Portoghesi” relativamente ao “Livro do Desassossego”, do Bernardo Soares. Não deixa de ser curiosa esta afinidade que, ainda por cima, não acontece como resultado de uma relação de causa-efeito, mas por se viajar no mesmo território e se procurar atingir a inatingível essencialidade (Wesenheit) da poesia.
6.
O que é certo é que eu devo este livro, isso sim, a muitos amigos que foram comentando, e de forma muito estruturada, certeira e erudita, todos os domingos os meus poemas. Foi a partir dos seus comentários que pude desenvolver uma longa e diversificada reflexão não só sobre a minha poesia, mas também sobre a poesia em geral, ajudando-me a aperfeiçoar o meu pensamento sobre a arte e, em particular, sobre a poesia. Sobre essa outra dimensão da nossa relação com a vida e com o mundo. A todos eles o meu muito obrigado. JAS@09-2025


