Artigo

SOBRE AS AUTÁRQUICAS 2025

João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS 2025

1.

Quando ouço dizer que o PS está de volta, depois de serem conhecidos os resultados das autárquicas, a frase soa-me um pouco estranha. Na verdade, o PS perdeu as autárquicas de forma significativa: a) perdeu 21 câmaras (tinha 149 e ficou com 128); b) passou a ser o segundo partido em número de câmaras, com o PSD a conquistar 136; c) tem globalmente menos votos e menos mandatos do que o PSD, tendo, pois, perdido a ANMP e a ANAFRE  (a mero título de exemplo, o PSD teve para as câmaras mais 29 mandatos e 63.000 votos do que o PS, considerando também as coligações que lideraram);  d) não venceu os maiores concelhos do país (Porto, Lisboa, Braga, Vila Nova de Gaia, Sintra, Cascais, Setúbal), embora tenha ganho nove capitais de distrito (Viana do Castelo, Vila Real, Bragança, Coimbra, Leiria, Viseu, Castelo Branco, Évora e Faro) e, por maioria absoluta, outra câmara de grandes dimensões (Loures). Reconhecer os factos e olhar de frente a realidade são condições sine qua non para melhorar a performance política no futuro. E isso vale também para o PS.

2.

Sendo expectável uma derrota do PS, nunca me pareceu sensato admitir que o PS deixasse de ser uma força com uma expressiva consistência autárquica e muito menos que se pudesse comparar este resultado com o das legislativas, em particular com um eventual resultado do CHEGA, o partido que neste momento tem a segunda maior representação parlamentar. Que a quebra aconteceu, é verdade, mas o PS bateu-se taco a taco com o PSD lá mesmo onde perdeu ou não conquistou presidências de grandes câmaras. Basta comparar o número global de votos obtidos por estes partidos.

3.

De facto, neste plano da democracia local continua bem robusta a dialéctica da alternância entre o PS e o PSD, somando ambos os partidos quase 86% do total das presidências de câmara do país, o que, comparando com a soma dos mandatos parlamentares de ambos os partidos, cerca de 64% dos mandatos, se traduz numa diferença, para mais, de 22 pontos percentuais. Estes resultados espelham uma presença territorial difusa e capilar destes partidos em matéria de gestão das 308 fracções territoriais do país. Não me parece legítimo e razoável estabelecer comparações entre as legislativas e as autárquicas, uma vez que nestas o voto é polarizado, certamente, pela sigla partidária (que consta do boletim de voto), mas também e em grande medida pela figura do candidato a presidente da câmara, tendo em consideração, por um lado, a maior proximidade entre eleitores e candidatos e, por outro, o presidencialismo do sistema de democracia local, sendo certo, todavia, que nos grandes núcleos urbanos os critérios de escolha se tornam mais parecidos com os que polarizam a escolha, por exemplo, do candidato à liderança do governo do país. Tudo isto torna a decisão eleitoral menos ideológica, mais pragmática e mais pessoal, lá onde o cidadão, na escolha política, pode usar os mesmos meios cognitivos, a mesma lógica e os mesmos critérios que utiliza nas escolhas da sua vida pessoal e quotidiana. Trata-se, pois, de uma escolha empiricamente mais consistente e mais directamente verificável. Onde a accountability fica mais directamente ao alcance da cidadania.

4.

De notar que, felizmente, a abstenção baixou muito relativamente às autárquicas de 2021, de 46,35% para 40,7%, o que mostra a importância que lhes foi atribuída pela cidadania, e que o total dos votos obtidos pelo PS e pelo PSD (sozinhos e em coligação) não é muito diferente: para a câmara, 1 milhão e 828 mil votos para o PS e 1 milhão e 891 mil para o PSD, ou seja, uma diferença de 63 mil votos, num universo de cerca de 5 milhões e meio de votantes efectivos.

5.

Em relação aos restantes partidos é de sublinhar que o CHEGA, com apenas 3 presidências de câmara, 653.943 votos e 137 mandatos para a câmara (os do PSD foram 832 e os do PS foram 803), não conseguiu uma significativa progressão nestas eleições, tomando como referência a dimensão dos seus resultados nas recentes eleições de Maio; que a CDU teve uma nova queda, perdendo as duas capitais de distrito que governava e baixando as presidências de câmara de 19 para 12; que o Bloco de Esquerda ficou, de novo, reduzido à insignificância e que os movimentos autárquicos não partidários aumentaram em três o número de câmaras que governavam – de 19 passaram para 22 presidências de câmara, revelando um sustentado e progressivo crescimento.

6.

Vejamos, mais de perto, o caso do Bloco, somente a título de exemplo. Listas lideradas por si, sozinho ou em coligação, obtiveram para a câmara um total de 54.464 votos e zero mandatos, enquanto para as assembleias de freguesia, nas mesmas condições, obtiveram 54.365 votos e apenas 18 mandatos. Já o PCP/PEV obteve para a câmara 316.271 votos e 93 mandatos, tendo o CDS/PP obtido 73.140 votos e 33 mandatos; a IL obteve 87.809 votos e 2 mandatos enquanto o LIVRE obteve 58.440 votos e 7 mandatos; o PAN obteve 9.559 votos e zero mandatos (estes números são referidos somente a listas lideradas por estes partidos e para a câmara). Quanto aos movimentos autárquicos não partidários ou “grupos de cidadãos”, sendo certo que, como disse, conquistaram 22 câmaras, constituindo-se como a terceira força política autárquica, obtiveram, também para a câmara, pelo menos 318.523 votos e 139 mandatos (incluídos os 4 mandatos da Guarda). Em qualquer circunstância, os movimentos não partidários constituem a terceira força autárquica em número de câmaras e em número de mandatos para a câmara, embora não em votos expressos, visto que o CHEGA obteve um resultado muito mais expressivo, como vimos (mais de 650 mil votos).

7.

Perante estes resultados é claro que não é possível extrapolar para as legislativas, pois a geografia parlamentar não coincide, como vimos, com a geografia autárquica, exceptuando a liderança do PSD e a irrelevância parlamentar e autárquica do Bloco e do PAN. No entanto, há que levar muito a sério o significado destas eleições para efeitos de diagnóstico sobre a saúde da democracia e sobretudo da ligação da cidadania à decisão eleitoral, na medida em que se trata de 308 territórios onde a presença da política se faz sentir de forma mais visível e directa na vida dos cidadãos e onde as escolhas têm concretos valores de referência muito significativos e verificáveis empiricamente, devido à proximidade.

8.

Confirma-se, pois, a irrelevância dos pequenos partidos, numa tendência que, olhando para as coligações, se poderia dizer que, à excepção do CHEGA e do PCP, funcionam como satélites de astros maiores, e um crescimento sustentado dos chamados movimentos não partidários ao mesmo tempo que se mostra robusta a lógica da alternância e a crescente diminuição do enquadramento ideológico ou até programático. Há uma personalização crescente da política quer no plano nacional quer no plano local, com a relativização das instâncias de intermediação, enquanto tais. E esta tendência absolutamente dominante não é de per si boa, nem no plano nacional nem no plano autárquico, devendo por isso ser equilibrada com qualificadas instâncias de intermediação, desde que libertas de corporativismo e daquilo que o Robert Michels designou por lei de ferro das organizações partidárias, ou seja, com a erradicação de lógicas endogâmicas que tendem a afastar os representantes da cidadania. E este é um grande desafio: o de equilibrar a inevitável personalização da política com instâncias qualificadas de intermediação (por exemplo, partidos de novo tipo) que funcionem como forte contrapeso das fugas para a autocracia. A política, e muito menos a política autárquica, não pode prescindir de uma sua componente orgânica, que é aquilo que a liga ao território. Compreende-se melhor isto se estudarmos a actual tendência dos partidos para o uso de outsourcing digital nas redes sociais e a desilusão quando se verifica, pelos resultados, que isso, afinal, não passou de puro malabarismo digital e de ilusão de contacto orgânico. O marketing digital, ou marketing 4.0, é propício à construção desta ilusão de relação orgânica com a cidadania.  Nestas eleições isto aconteceu com alguma frequência.

9.

No meu entendimento, estas eleições representaram uma radiografia do “estado da arte”, devendo, por isso, ser analisadas por todos os que se interessam pela democracia porque elas espelham de forma substantiva a relação da cidadania com o processo de construção do poder. Aqui, a personalização não tem a mesma natureza da política nacional nem está tão sujeita à cenografia do marketing como a política nacional, precisamente devido à proximidade e à verificabilidade directa da acção política. A sigla partidária continua a ter a sua função de bússola política, mas a figura dos candidatos, em particular a do candidato à presidência da câmara, tem um papel muito relevante, como se pode ver pelo sucesso dos movimentos autárquicos não partidários. É claro que também aqui se verifica uma progressiva aproximação à política nacional, não só porque o voto é sobre uma sigla, mas também porque se vai evoluindo de centros urbanos pequenos para os grandes centros urbanos, diminuindo a proximidade em relação aos candidatos, mas sendo, todavia, certo que, pelo menos em relação aos incumbentes, também aqui a obra feita (ou não feita) é verificável empiricamente. A diferença de votos e de mandatos no CHEGA entre as legislativas e as autárquicas é devida sobretudo à fraca implantação no terreno de um partido que tem apenas seis anos e que nunca governou. Mesmo assim, os cerca de 650 mil votos que obteve, o dobro do que tiveram partidos com uma significativa presença autárquica (movimentos autárquicos não partidários, com 22 câmaras, e PCP/PEV, com 12) deve-se certamente aos mesmos critérios que explicam os votos das legislativas (mais de um milhão e 400 mil votos), feita agora a redução devido à sua fraca implantação territorial, à figura dos candidatos e também à forte implantação dos dois maiores partidos e à sua política de coligação com os partidos-satélite.

10.

Estes são, quanto a mim, os factores que explicam o que aconteceu nestas eleições autárquicas, a que ainda se tem de acrescentar o factor-governo, ou seja, o facto de o PSD (e o CDS) governar actualmente o país, com todas as consequências que isso tem na potencial polarização pragmática do voto.

NOTA

Quero aqui referir a extraordinária vitória, por maioria absoluta (43, 83% e seis mandatos em 11), de Ricardo Leão, em Loures, um concelho com cerca de 169 mil eleitores. Não sendo, claro, uma resposta aos humanistas António Costa, Silva Pereira e José Leitão e a todos os que o levaram a demitir-se de presidente eleito da FAUL, achincalhando, em nome de um politicamente correcto com laivos de wokismo, a sua coragem de ter posto o dedo na ferida, na verdade, também é uma resposta a todos eles. Outros, que também alinharam alegremente nesse discurso, perderam clamorosamente a batalha autárquica. Parabéns, Ricardo Leão. JAS@10-2025

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