Artigo

“O MEU PARAÍSO”

Um livro de António de Castro Guerra
(Lisboa, Rosa de Porcelana, 2025, 145 pág.s)

Por João de Almeida Santos

HÁ DIAS, tive ocasião de apresentar, em Manteigas, em Valhelhas e na Guarda, o mais recente livro de António de Castro Guerra, “O Meu Paraíso”. Mas, depois do que escrevera no Prefácio deste belo livro, o que poderia dizer de novo, no momento da sua apresentação pública? Sabendo que sobre o livro também iria falar Filinto Elísio, Editor e ilustre poeta cabo-verdiano, lembrei-me de um seu poema, do livro Li Cores & Ad Vinhos, que, a título de epígrafe, vinha mesmo a propósito.  “Monte Birianda”, era o título do poema, onde o poeta dizia:

Estive e nunca estive neste lugar. 
Há qualquer
coisa de topo do mundo
(...).

Este lugar tem música.
Cada pedra guarda acordes inaudíveis

(Lisboa, Letras Várias,
2009, pág. 73)

“Estive e nunca estive neste lugar”, onde “cada pedra guarda acordes inaudíveis” – aparentes contradições que só a poesia sabe “manejar” para aprofundar e evidenciar o sentido do que se diz. E isto só se pode dizer quando a relação é profunda, como neste caso. Nunca se está completamente num lugar quando há algo maior do que nós, talvez inaudível ou invisível, que nos escapa… mas que, ao mesmo tempo, nos interpela. Essa parte, “nunca estive”, dita em poesia, de certo modo pode significar: “mas hei-de um dia lá chegar, lá estar”. Afinal, trata-se do “topo do mundo”… Como alcançá-lo, o topo do mundo, com os meios humanos e tão modestos de que dispomos? Como fazer essa escalada tão difícil? Lá no alto até pode faltar o oxigénio, ser difícil respirar. Esta sensação de estar e não estar aumenta quando se deseja profundamente esse lugar. E a errância existencial, que nos leva para longe, provoca, ainda por cima, um acrescido sentimento de perda, de ausência, de silêncio, de saudade e de melancolia, mesmo daquilo que nunca se teve ou daquilo onde nunca se esteve. Saudades do que nunca aconteceu, dizia o Bernardo Soares no Livro do Desassossego: “Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram” (Porto, Assírio & Alvim, 2015, p. 111).  Saudades de um desejo não cumprido ou saudades de um lugar onde nunca se esteve. E é aqui que soa a desafio. Ou mesmo a imperativo. Como alcançar o topo do mundo, que, afinal, é o topo do meu mundo? Será que consigo através da palavra, do romance, da poesia? Da arte? Na verdade, o inacessível (“nunca estive”) só pode ser atingido assim. É para isso que a arte existe, para atingir o inacessível. Podem crer. É isso que parece querer insinuar-se nestas persistentes viagens em palavras que António de Castro Guerra tem vindo a fazer para chegar ao topo do seu mundo: nasci lá, sim, mas ainda não lhe vi o topo, que talvez também esteja lá bem no alto da minha fantasia. E é por isso que tento lá chegar… com palavras. Até porque sei que já não posso agarrar o meu passado com as mãos, agarrar o meu Paraíso, recuperar o tempo que já se foi. Mas sei que o posso reviver e até acariciar com as palavras e com a minha fantasia. Trazê-lo, assim, até mim. E sei, ah, isso eu sei, que “para saber o que é o meu paraíso é preciso muito mais do que o ver: o mais importante é vivê-lo e senti-lo” (2025: 58). E aqui estou eu agora a revivê-lo do único modo possível, pelas palavras, sendo ele, como já é, em grande parte, passado. Também os poetas vão lá à fita da memória, fazem uma espécie de montagem cinematográfica e reconstroem o passado. Depois é vê-lo em moviola. Como um filme ali ao alcance das nossas mãos. E os seus livros são como a moviola: permitem observar de perto e ao pormenor o seu Paraíso. O topo (de outro modo) inacessível do seu mundo. Podemos parar a fita do tempo, arrancar, voltar atrás ou dar um salto para o futuro. Quando se faz a dobragem de um filme é (ou era, já não sei) assim que se trabalha – na moviola. E estes livros são como que a “dobragem”, a tradução do tempo vivido em bom português.

1.

Este lugar, que não é Monte Birianda, ou Monte Brianda, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, mas a Serra da Estrela, mais concretamente, Valhelhas e os seus vales e serranias, é para Castro Guerra o seu paraíso, talvez, sim, o topo do seu mundo (como tantas vezes é assumido nos seus livros), o lugar onde um rio foi e fez a sua liberdade, “lugar mágico” onde nasceu e cresceu “a olhar (lá) para o alto da Serra”. Para o topo do (seu) mundo.

2.

Palavras suas. Ditas no seu livro “Quase Memórias de um Lugar e de outras Andanças”, de 2020, publicado pela mesma Editora, Rosa de Porcelana. Mais de 400 páginas de memórias, ou, como ele diz, “quase memórias”. Talvez porque o livro seja – e é – mais do que uma colectânea de memórias. Talvez seja mesmo um lugar de vida. Vida em palavras, que a avivam ainda mais. “Quase memórias”, não por defeito, mas por excesso. Lugar onde sempre se regressa das terras “da promissão” (palavras suas). Que foram e são muitas, mas especialmente terras de África e, sobretudo, da América. Isto é coisa séria, muito séria. Quem conta de forma tão detalhada, delicada e sentida, ao pormenor, a vida e as vidas da sua terra, a começar pelas da sua própria família, neste livro de “Quase Memórias”, só pode ser suspeito de manter com ela um cordão umbilical nunca radicalmente cortado, uma relação de tipo maternal ou amorosa com esta terra, o seu Paraíso. É evidente a sua paixão por estas terras ou não teria escrito sobre elas mais de novecentas páginas. Mas não foi preciso ler este livro de “quase memórias” para compreender o que o levou a escrever o “O Meu Paraíso”.

3.

Conheço o António de Castro Guerra e sei bem do seu fascínio e da sua paixão por esta terra que o viu nascer e crescer. Se não soubesse, ficaria a sabê-lo (ao pormenor) pela leitura dos seus livros. O amor por esta terra, pelos três vales que nela confluem, pelo rio que por ali passa e a banha generosamente e pelos vastos e impressionantes montes que a circundam. Muitos de lá talvez nem se dêem conta desta beleza por nunca terem sentido de forma substantiva a diferença, por nunca a terem visto e sentido a partir de fora, o que não é o seu caso, porque tantas vezes a sentiu lá de longe, sobretudo de África, por onde andou nos anos setenta, como nos conta em “Quase Memórias”. Os que não saíram querem sair para serem livres, os que saíram querem regressar para recuperar a sua identidade mais profunda. Isto parece ser uma lei do comportamento humano. E ele saiu da ilha, viu-a de longe, sentiu a sua falta e teve de a contar para a resgatar do tempo e para se resgatar a si próprio. E tinha de ser assim porque as palavras têm esse poder de resgate, de “cristalizar” sentimentos fortes (como no amor de que fala o Stendhal) o que ameaça desfazer-se, acabar e desaparecer. Sobretudo em certos momentos de maior ameaça, como foi o caso da enorme e incompreensível devastação, com o fogo, durante dias e dias, a passear-se pelas suas, pelas nossas, serranias sem que mão humana o pudesse travar. Ou, então, quando as saudades do tempo que já se foi se tornam mais intensas e dolorosas, provocando melancolia, esse sentimento que os poetas registam de forma muito própria. As nossas palavras também têm ressonância ou eco em nós próprios e só por isso já valeria a pena pronunciá-las ou escrevê-las. O eco do silêncio, do que já só se conserva na memória ou daquilo que se segue à destruição, é o que melhor os poetas sabem interpretar. E nem seria necessário que fosse Shakespeare a dizê-lo. Dizê-las, sim, vale sempre a pena, quanto mais partilhá-las num livro lançado ao vento, como quem diz: aqui têm a minha Valhelhas, aqui têm o meu Paraíso!

4.

Se ousasse fazer uma comparação com a minha própria experiência, já que sou natural de Famalicão, que fica mesmo ali ao lado de Valhelhas, e migrante por largos anos em terras da Europa, atrever-me-ia a dizer que Valhelhas e a Serra foram, como para mim, o seu esteio, a sua âncora existencial, o porto seguro dessa errância que nunca se sabe onde vai dar. O pilar existencial que garante a nossa própria identidade quando ela parece estar ameaçada por excesso de uma miscigenação que pode ser descaracterizadora dessa identidade substancial que foi marcada, no tempo certo, em tenra idade, pela magia desses lugares. Querem um exemplo? A mim, a neve não me sai da cabeça. Fiquei incrédulo quando ela um dia foi ter comigo a Roma. Tenho um quadro com ela na Piazza della Rotonda, em Roma, a praça do Pantheon. E não dormi nesse dia, não fosse ela derreter-se tão depressa como chegou. A neve anda sempre por cá e, de vez em quando, lá tenho eu de a cantar, em poesia. De repor o que já parece perdido, essa brancura cintilante que funde o céu e a terra, nos engole num manto sem fronteiras e nos fascina o olhar e a alma. E quanto à água do Vale Glaciar, a da Fonte Paulo Luís Martins, essa magnífica cascata que jorra lá do alto da montanha, anda sempre comigo. E não só porque também a canto e a pinto, como se fosse neve em forma de água pura e fresca ou a própria montanha em forma líquida, mas porque é isso que esta água representa.

Mas também António de Castro Guerra (que sobre a neve sente o mesmo que eu) diz, e para que não haja dúvidas, “o meu paraíso nunca saiu da minha cabeça e do meu coração” (2025: 67). Pois, o que é que nunca lhe saiu da cabeça e do coração, além da neve? Ouçam-no: “Ao longo dos caminhos das serras, aqui saltava-me à frente um coelho ou uma lebre, além vislumbrava, de vez em quando, uma perdiz a levantar voo, ou a conduzir os seus perdigotos. Não era raro ver uma raposa matreira, ou um lobo solitário, ouvir as falas dos gaios e das pegas, comer as pútegas que cresciam junto às raízes das urgueiras, das carquejas ou das estevas, cujas flores eram de uma beleza rara: o conjunto das suas pétalas brancas formava um cálice orlado de uma cor indefinida, no fundo do qual estavam os estames cercados por uma rodilha acastanhada. A apreciação da diversidade das urzes e das suas pequenas flores multicolores eram, também, momentos de libertação das coisas mundanas. Nas minhas caminhadas ao longo das margens do rio, ouvia os chilreios dos pássaros, observava os cardumes de peixes, ouvia e via os pica-paus a bater nos troncos secos das árvores à procura de alimentos, via os pica-peixes a entrar na água do rio a pescar as refeições do dia, observava a beleza dos milheirais e falava com quem os estava a mondar ou a regar; aproximava-me dos rebanhos a pastar as tenras ervas dos campos do vale – muitas vezes ao entrar nos domínios dos cães que guardavam os rebanhos, tinha de me servir do cajado para me defender” (2025: 66). Poderia citar outras passagens, mas não resisto a citar esta: “Perseguíamos as rãs para as apanhar e as cobras-de-água para lhe pegar pelo rabo e as lançar ao ar, depois de lhes tirarmos os peixes que abocanhavam. Às rãs eram cortadas as pernas e despíamos-lhes as calças até às unhas dos pés. Junto às margens do rio brincávamos com as arestas e os girinos, que, alguns tempos depois, se transformariam em peixes graúdos ou em rãs. Perguntarão alguns porquê esta mortandade de peixes e rãs? Pelas mesmas razões, que atrás se expõem, relativamente aos pássaros, coelhos, lebres e perdizes” (2025: 64). Ou seja, não se tratava de crueldade, mas de caça ou de pesca, determinadas por razões de sobrevivência, onde pouco havia para comer. Não se ia ao supermercado comprar carne ou peixe, ia-se à natureza caçar ou pescar o que depois se haveria de comer. Lei da natureza, própria do seu Paraíso.

É disto que se trata. Não sobram dúvidas. É este o seu Paraíso. É disto que tem saudades.

5.

Naturalmente que existe sempre uma propensão natural para imergirmos na magia da natureza, muito mais frequente em quem nasce e cresce nela, mas também há factores externos que nos levam a valorizá-la mais do que os que nela sempre viveram, os que nunca saíram da “ilha”, ou seja, nunca experimentaram um sentimento intenso de alteridade, de presença existencial e enraizada do outro, de diferença substancial de lugares, de pessoas, de modos de vida, de paisagens naturais e humanas. Talvez a conjunção destes factores o tenha levado a “cristalizar” com arte e com palavras essa memória feliz em quatro livros, incluído este. E neles incluo o romance “Uma viagem no Tempo”, de 2022, onde ficou bem expressa essa sua relação idílica com a natureza, em ambiente de partilha cúmplice. Livros feitos de palavras, claro, mas também de fotografia e pintura, como acontece em “Ao sabor dos Dias & outros Escritos”, de 2024, e também neste de que aqui estou a falar. Um encanto existencial, sim, mas que, de forma inesperada, haveria de “virar” estupefacção, dor, desencanto quando foi (fomos, todos) confrontado com a devastação das serranias do seu encanto pelo incompreensível e imparável incêndio de 2022.

6.

Eu atrevo-me a dizer que este livro, embora também estimulado pelo seu Amigo António Mesquita (tens de escrever este livro, António), acabou por nascer, não como resultado de uma fria e distante decisão documental sobre a tragédia que caiu sobre o seu Paraíso, de um produto de escritor amante da arte e apenas comprometido com a beleza em si, mas como um imperativo existencial, como um exorcismo, como a libertação de alguém que viu destruídas no real as suas memórias mais quentes, já completamente metabolizadas, e que vinha acarinhando através de um comprometidíssimo e já vasto percurso literário. Não, este escritor nasceu de um imperativo existencial, à margem da sua carreira profissional (como economista e professor), de uma alma sensível à beleza natural que se exprime nesta sua terra, nesta excepcional e única convergência de vales e de montes. Trata-se, agora, neste livro, e com maior profundidade e dor – porque se trata de um autêntico grito de alma -, de resgate pela palavra. Só assim se compreende que no meio deste grito de dor em palavras ele traga ao presente, e de novo, as memórias desses tempos em que eram felizes os que por ali viviam, com a caça, com as festas comunitárias e o quotidiano rústico e matricial, com as suas antigas tradições ciclicamente repropostas, encenadas e coreografadas pelas ruas da aldeia. Tudo aqui muito bem descrito com palavras certeiras e com sentida melancolia.

7.

António de Castro Guerra inspirou-se, para escrever este livro, na sequência da Divina Comédia de Dante Alighieri, mas alterando-lhe a ordem, porque também por lá há o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, precisamente por esta ordem, diferente da sua, que começa, não com o Inferno, mas com o Paraíso, o Éden, que Dante, através da voz do poeta Virgílio, considera “il dilettoso monte, ch’è principio e cagion di tutta gioia”, onde “è l’uom felice” (Inferno, Canto I, versos 77/78).

8.

Sendo inevitável que neste livro haja, no fim, o Renascimento, como declaração de esperança, de reconhecimento de que a natureza tem uma força e um ímpeto tão intensos que sempre se impõem quer quando está zangada quer quando se quer renovar para, assim, sobreviver, isso, não lhe apagando a profunda tristeza perante o que vê, leva-o o construir uma sequência anterior que começa com o Paraíso e que termina, precisamente, com o Renascimento desse mesmo Paraíso. O livro tem, pois, quatro partes, começando, neste caso, e como é compreensível, pelo Paraíso (pp. 23-67), por um cântico à beleza natural e aos seus tempos idílicos, a que se seguem o Inferno (pp. 71-109), esse incêndio devastador, o Dilúvio (pp. 113-124), a chuva torrencial que se lhe seguiu e os efeitos desastrosos que provocou, e o Renascimento (pp. 127-139), o renascer das cinzas, e, finalmente, um pequeno Glossário (pp. 141-144). O autor começa por contar a vida do seu Paraíso terrestre e original, a beleza da imersão suave na dialéctica da natureza dos que viviam nela e dela, para depois contar o inferno de fogo que a destruiu e a que se seguiu, como sempre acontece, pois é lei da natureza, um dilúvio de consequências desastrosas por falta de suporte natural nas terras atingidas pelo fogo. Ali, ao longo das margens do Zêzere e com águas vindas lá de cima, dos montes desprotegidos, tudo foi na enxurrada, de Sameiro a Valhelhas.  Mas, no fim, lá surge essa esperança no despontar da natureza para restaurar o equilíbrio perdido do seu Paraíso, bem ilustrada, na pág. 125, pela bela imagem de uma planta verdejante que renasce das cinzas, como a Fénix.

9.

E é interessante notar que o autor tem o cuidado de, em dois dos seus livros, apresentar um Glossário dos termos usados nesse tempo antigo, não vá o leitor procurá-los num dicionário, em papel ou digital, e não os encontrar. Repor o que pode estar perdido é revivificar o passado e não o deixar morrer. Repor também as palavras, neste caso. E creio até que não é o rigor e o cuidado científico – e até podia ser para um académico como ele  – que o leva a fazer isso, mas sim o desejo de tornar mais viva e eficaz a sua narrativa, de trazer o leitor mais lá para dentro dela, reconstituindo a linguagem de outrora como desejo de também a revivificar, de a resgatar das chamas do esquecimento, que também tudo reduz a cinzas, de dar à narrativa uma temporalidade inscrita no passado, sim, mas tornada, deste modo, activa no presente, através da descodificação da sua fala. As palavras transportam vida consigo. E nalguns casos uma vida mais intensa e bela. Têm poder de resgate, de revivificação e de sublimação: “os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor”. Isto dizia o Bernardo Soares no Livro do Desassossego (2015: 55), chegando ao ponto de, um pouco mais à frente, dizer “vale mais para mim um adjectivo que um pranto real de alma” (2015: 57). É disso que se trata, afinal: restaurar com palavras o “verdor” perdido. Quando já nem verde há, pois resgatêmo-lo pela palavra. Foi o que Castro Guerra tentou fazer com este livro: repor o verde perdido. E parece não ter sido um acaso ter-lhe dado o título, não de Inferno, mas de “O meu Paraíso”.  Sendo também eu de lá muito aprendi ao ler os seus livros e glossários, a reconhecer e a recuperar o intenso cromatismo dos campos, o seu “verdor”,  agora verde em palavras, sobretudo numa fase em que as chamas os enegreceram.

10.

Há ali um narrador, José Abraão, e outros personagens que, mais uma vez, têm referentes reais na aldeia dos seus encantos. E há três amigos, de antes e de agora (já com suas esposas). Eles exprimem a felicidade da sua intensa relação com a natureza, por exemplo, na caça aos pássaros com os velhos costis, mas também o desespero de agora a verem devastada pelo fogo, com aquele sentimento pessimista que tende sempre a capturar-nos nos momentos mais difíceis, o de que já não haverá renascimento que reponha o que foi destruído, por tão profunda ter sido a destruição.  Sei do que fala, porque também eu andei por lá naqueles funestos dias e com esse mesmo sentimento, com esse pessimismo, essa descrença no poder restaurador da natureza, agora felizmente desmentida, lentamente, pelo reaparecimento do verde, melhor, do “verdor”, por essas serranias fora. “Verdor” que também se torna mais verde nas palavras que compõem este livro, quando se fala do seu Paraíso.

11.

O que explica a minha cumplicidade com “O Meu Paraíso” é precisamente” isto: fomos todos avassaladoramente atingidos, fisicamente e na alma, ao vermos o Paraíso em chamas. Foi o que o autor sentiu e foi o que eu senti. E é assim que este livro nasce: como um grito de alma de alguém que viu destruído o seu paraíso por um gigantesco incêndio florestal que ceifou tudo aquilo por que passou, reduzindo-o a cinzas. Esse incêndio incompreensível que deflagrou na encosta leste da Serra da Estrela, lá para os lados da Covilhã, e que durante intermináveis dias foi progredindo, sem nada que o travasse, por ali, serranias afora, até às portas das povoações, ameaçando vidas e bens. Incluída Valhelhas. Incluído Famalicão da Serra. Uma coisa verdadeiramente incompreensível. O autor – que, pela voz de José Abraão, diz “este inferno a arder em todas as frentes só poderá ter sido inspirado pelo Diabo” (2025: 83) – sofreu esse incêndio como golpe profundo em carne viva e não hesitou em confrontar-se de imediato com essa dor através da escrita, como que tentando, pela palavra, pela narrativa, exorcizar, curar o sofrimento interior que lhe parecia não ter fim, tal a grandeza e a profundidade da devastação: “O Paraíso estava todo queimado”, diz, com incontida tristeza (2025: 87). O poder terapêutico da palavra, sim, não só porque através dela é possível esconjurar a dor, relativizá-la, controlá-la ou até mesmo metabolizá-la, para a neutralizar, mas também porque, ao partilhá-la, em forma de livro, se pode materializar a reacção interior à tragédia, como se, mostrando-a, se esteja a pedir solidariedade para remediar o que ainda se possa remediar, para além do que já ficou como dano físico inelutável. Só pela palavra isso é possível – restaurar de imediato o verde dos campos sem ter de esperar que chegue o seu “verdor” e interpelar a comunidade para que novas catástrofes sejam evitadas, ainda que, hoje, tudo se conjugue para que elas voltem a acontecer: alterações climáticas, desertificação, abandono dos campos. Tudo aquilo a que o autor dá voz, de forma expressiva, na parte sobre “O Inferno”. “Tudo  contribuiu”, diz, “para levar o Inferno ao meu Paraíso”.  Mas o autor, pela voz de José Abraão, o narrador, bem sabe que a pujança da natureza acabará por repor aquela exuberância perdida por tantos anos e, por isso, já no fim do livro, fala de renascimento, bem consciente de que os seres humanos são também eles natureza, não ‘donos dela’, num misto de desencanto, mas também de optimismo. “Eu acredito que o meu Paraíso vai renascer e voltará a ser belo e deslumbrante com ou sem a participação humana”, diz José Abraão, embora saiba que já não será ele, nem a sua Leia, a mulher, a assistir ao renascimento, porque já carrega muitos anos sobre si. Serão os seus amigos Samuel e Ester, Sara e Malaquias e Ezequiel e Beatriz, seus filhos e netos, a poder celebrar esse milagre que não deixará de acontecer. Mesmo assim, este livro não deixa de ser um grito de alma, um grito de dor que fica lavrado para memória futura. E sei bem do que falo, porque também eu, que nasci ali, a cinco quilómetros da sua terra, senti essa dor em directo, naqueles momentos dolorosos, sem nada poder fazer a não ser o desejo de que aquele inferno passasse rapidamente e não voltasse nunca mais. Os sentimentos nunca são iguais, é verdade, mas podem ser equivalentes em intensidade”. Uma dor colectiva que soa, singularmente, no interior de cada um de nós.

JAS@11-2025
 

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