Artigo

REFLEXÕES SOBRE A CRISE DA POLÍTICA

João de Almeida Santos

"S/Título" - JAS 2025
1.

GIAMBATTISTA VICO (1668-1744), um polivalente intelectual italiano, formulou na sua principal obra (Scienza Nuova, 1744)a teoria que viria a ser conhecida como a dos “corsi e ricorsi” que enquadra a evolução histórica das sociedades numa lógica cíclica entre fases progressivas e fases regressivas, sendo estas conhecidas como o regresso da barbárie, mas pior do que a barbárie originária. Lembrei-me de Vico quando decidi escrever este artigo sobre a crise da política porque considero que, infelizmente, estamos a viver precisamente uma fase regressiva da história contemporânea.

2.

Ou seja, as democracias representativas, que se foram impondo historicamente com o seu património de direitos, de liberdade, de pluralismo, de progressiva igualdade e de promoção pública de bens sociais (sobretudo no chamado mundo ocidental), entraram numa fase regressiva, dando lugar a uma retracção democrática que encontra expressão privilegiada na redução da política ao puro exercício do poder e deste ao exercício da força (militar, económica e tecnológica). O que se está a passar nos Estados Unidos, com a presidência Trump e o MAGA, é exemplar e dá uma ideia muito clara disto – soberanismo americano exacerbado e impositivo, ameaças de intervenção militar ou de anexação (Venezuela, Canadá, Gronelândia), imposição arbitrária de tarifas a todo o mundo, ataque directo à União Europeia no recente documento de estratégia de segurança nacional, xenofobia levada ao extremo e alinhamento político com os defensores de políticas autocráticas. Mas também o outro polo mais poderoso do mundo, o da China, se mantém com uma sólida ditadura, ao mesmo tempo que a Rússia de Putin se tem vindo a reforçar como Estado autocrático em clara contraposição com a tradição ocidental (a que, em parte, ela pertence), de resto, considerada pelo Kremlin e pelos seus ideólogos eslavófilos como estando em fase de progressiva decadência. E inimigo a abater.

3.

Depois, no outro polo do poder, a União Europeia, têm ganhado progressivo protagonismo as forças da direita radical, que já governam alguns países, que fazem parte dos governos de outros e que poderão vir, em breve, a conquistar o poder noutros ainda. Forças políticas que se inscrevem na lógica de um decisionismo político soberanista pouco compatível com a natureza da democracia representativa e com a lógica tendencialmente federal para que apontava a União Europeia, nas visões mais avançadas. Cito, a título de exemplo, em primeiro lugar, a Itália e a Hungria, em segundo lugar, a Suécia, a Finlândia, a Eslováquia e a Croácia e, finalmente, o Reino Unido e a França. Não é coisa de somenos.

4.

Se dermos uma volta pelas sondagens mais recentes nos principais países europeus verificamos que, na Alemanha, o primeiro partido já é o Alternative fuer Deutschland, com 26% (mas a cerca de um ponto da CDU/CSU); no Reino Unido e na média das várias sondagens o Reform UK, de N. Farage, já está 9 pontos acima do segundo maior partido (com previsão de maioria absoluta na Câmara dos Comuns), o Labour; na França, para as presidenciais, o seguro vencedor da primeira volta será Jordan Bardella ou Marine le Pen (se puder candidatar-se) com cerca de 34%, podendo vir a vencer a segunda volta, por exemplo, contra Édouard Philippe, do centro-direita, ou Raphael Glucksmann, do centro-esquerda.

5.

Com uma União Europeia em crise, nas várias frentes – desde as actuais lideranças até a um modelo de gestão política inócua exercida por personalidades que mais parece serem meros altos funcionários da União, mas também pelo atraso que se está a verificar no plano da tecnologia, sem plataformas digitais ou agências de rating  dignas de nota, e apenas concentrando a sua acção numa política regulatória que tem punido fortemente os gigantes tecnológicos americanos (por exemplo, a Google recentemente punida com quase 3.000 milhões de euros por abuso de posição dominante em publicidade) e que tem dado origem a forte contraposição com as autoridades americanas -, se nela se vierem a impor de forma significativa os protagonistas da direita radical, alinhados, no essencial, com a linha trumpiana, ela acabará por ficar reduzida ao mínimo denominador comum e subordinada exclusivamente aos interesses nacionais dos mais poderosos países da União (Alemanha, França, Itália), numa claríssima regressão funcionalista cada vez mais distante da perspectiva federalista ou constitucionalista, que animava os maiores e melhores defensores de uma Europa política. Na verdade, o que hoje se está a verificar é um ataque concentrado à União Europeia, com vista à sua fragmentação ou mesmo ao seu desaparecimento. Ataque proveniente de leste (a Rússia), de oeste (os USA de Trump) e de dentro (a direita radical), todos numa preocupante convergência.

6.

A ideia de uma União em decadência conheceu recentemente um avanço no documento sobre a estratégia de segurança nacional americana e pode ser reconhecida nesta passagem do documento:  “But this economic decline (da Europa) is eclipsed by the real and more stark prospect of civilizational erasure”. Apagamento ou erosão civilizacional que se deve à acção da União Europeia e de outros organismos transnacionais, que minam a liberdade política e a soberania, a políticas migratórias disruptivas, à censura da liberdade de expressão, à supressão da oposição política, à queda das taxas de natalidade e à perda das identidades nacionais e da autoconfiança (TheWH, 2025: 25). Neste aspecto, embora num contexto discursivo diferente (os Estados Unidos não querem acabar com a Europa – digo, Europa, não União Europeia -, mas salvá-la), a posição exposta no documento não difere muito das posições (muito mais radicais) do ideólogo A. Dugin (veja-se Santos, 2024: 92-94) ou de Sergey Karagánov (*), um influente intelectual russo, e da de muitos teóricos europeus, num filão que remonta a Oswald Spengler, ao seu “A Decadência do Ocidente” (1923), tão apreciado por Mussolini, e que no essencial identificam a actual Europa precisamente como estando em situação de decadência.  Vejamos o que diz Karagánov:  

Em condições de decadência moral e política da Europa (ou desse ocidente que “provocou a guerra na Ucrânia”), é necessário começar a siberização o mais depressa possível”-

Mas vale a pena continuar a ler o que diz Karagánov:

Recordo o óbvio, mas que normalmente nos tem sido ocultado: a Europa é o centro de todos os principais males da humanidade, duas guerras mundiais, inúmeros genocídios, colonialismo, racismo e muitos outros ‘ismos’ repugnantes. Nos últimos anos, o totalitarismo liberal, misturado com o transhumanismo, o lgbtismo, a negação da história e, na essência, a antihumanidade”.

Sem mencionar os seus exageros alucinados relativos ao uso do nuclear, ele sublinha a necessidade de dissolução da União Europeia a par de uma viragem decisiva para Oriente, para a “terra prometida” da Sibéria, para a “siberização da Rússia” (Karagánov, 2025). Mais palavras para quê?

7.

Para o filão conservador americano MAGA, para os eslavófilos radicais, como Karagánov ou Dugin, e para a direita radical europeia a União Europeia representa um enorme obstáculo para a implementação de uma política de redução dos direitos de cidadania e do Estado Social e da afirmação do soberanismo assente num nacionalismo serôdio em contraste com uma globalização que, já não sendo possível travar, pode, todavia, ser pilotada e exclusivamente dominada pelas nações mundialmente mais fortes. A União Europeia, tal como ainda é, representa um obstáculo consistente a esta estratégia de confinamento do mundo em “zonas de influência” controladas por países geridos por sistemas autocráticose não só como soft power, de que ainda dispõe, mas também pela sua economia, a terceira mundialmente maior, pela importante quota detida no comércio mundial (só inferior à da China) e pelo poder internacional do próprio euro, hoje a segunda moeda mais forte nas transações internacionais e enquanto reserva mundial de capital.

8.

Neste processo, o que se nota é uma clara exaustão, a nível nacional e comunitário, quer do centro-direita quer do centro-esquerda, que, por um lado, se deixaram adormecer nos braços do modelo social europeu, numa política essencialmente redistributiva e numa prática de alternância governativa sustentada numa insistente dialéctica endogâmica; e que, por outro lado, se deixaram infiltrar por um incomportável maximalismo de direitos com a chancela do politicamente correcto e de um suave, mas difuso, wokismo identitário, como se eles pudessem colmatar a pobreza política e ideológica dos partidos da alternância governativa, alapados comodamente na imensa e generosa máquina do poder estatal. De resto, tem sido esta pobreza ideológica e esta gestão asséptica e sem alma do poder, contaminada gravemente pela ideologia identitária dos novos direitos, que tem servido de alimento essencial à direita radical e permitido um seu enorme crescimento eleitoral.

9.

Por outro lado, esta direita radical em crescimento tem-se afirmado com um projecto cada vez mais claro de exercício do poder: soberanismo, decisionismo político (de que é exemplo o famoso premierato da senhora Giorgia Meloni), políticas anti-imigração, duro combate ao construtivismo social e defesa da componente orgânica natural dos processos sociais e humanos, ataque frontal ao identitarismo da esquerda dos novos direitos e à sua infiltração nas instituições nacionais e internacionais, drástica redução da separação dos poderes a favor do poder executivo (decisionismo exacerbado), minimalismo da União Europeia e alinhamento com as tendências autocráticas dos principais polarizadores políticos internacionais, a começar pelos USA de Trump.   

10.

O que se tem visto é que estas linhas de orientação têm dado bons resultados eleitorais, têm alimentado o seu crescimento e têm constituído a âncora deste processo regressivo, que se espera não venha a ter consequências equivalentes ou piores (Deus nos livre dos Karagánov que por lá, pela Rússia, pululam) do que as que se verificaram nos trinta anos regressivos do século XX (1914-1945).

11.

Como reagir a estas tendências em nome da democracia e da União Europeia – é o desafio que se põe. Precisamos de lideranças à altura, que é o que não temos neste momento na União; a este respeito, é muito sintomático que o “Politico Europe”, 12/2025, pp. 17-47, não inclua nos 28 mais influentes na Europa o Presidente do Conselho Europeu, o português António Costa. Precisamos de dotar a União de uma estrutura política de vértice robusta e legítima que esteja em condições de tomar decisões políticas sustentadas e avançadas e não de agir exclusivamente de acordo com a lógica e os protagonistas das diplomacias nacionais, contra o poder das quais se bateu energicamente Altiero Spinelli. E precisamos de uma profunda renovação da política em vez de continuarmos a agir como se vivêssemos em período de normalidade democrática. Precisamos de um sobressalto cívico da cidadania e não da polarização da atenção social para assuntos política e socialmente irrelevantes e desviantes ou de uma política que apenas funcione por inércia, por incapacidade das classes dirigentes dos países que integram a União. E precisamos de visão para dotar a União de instrumentos de desenvolvimento e de defesa próprios para salvar aquela que ainda é uma forte posição na geopolítica e na economia mundial e que reforcem e revigorem aquela que foi uma sua importante característica na política mundial: o seu soft power e o poder de influência modelar sobre os países em desenvolvimento.

12.

O problema é que isto chegou a um tal ponto crítico que até mais parece que devamos deixar exaurir este processo regressivo para que se verifique uma “destruição criativa” (para usar este curioso conceito da economia) em condições de dar início a uma nova fase progressiva, exactamente como nos sugere a filosofia da história do Giambattista Vico. Mas esta seria uma infeliz esperança que aconteceria no meio e longas e irreparáveis perdas até que uma nova fase de progresso chegasse. Vivemos tempos de difícil composição entre o pessimismo da razão e o optimismo da vontade.

Nota e Referências

* Doutor em História, foi Conselheiro de Yeltsin e de Putin, amigo de Lavrov, professor e  director científico da Faculdade de Economia Mundial e Política Mundial da Universidade Nacional de Investigação Económica, presidente honorário do Conselho de Política Externa e de Defesa.

1. Karagánov, S., 2025, “Europa: Uma Despedida Cruel”.  In: https://sociologiacritica.es/2025/09/04/una-mala-ruptura-con-europa-sergei-karaganov/.

2. The White House, “National Security Strategy”, November, 2025.

3. Santos, J. A. (2024). Política e Ideologia na Era do Algoritmo. S. João do Estoril: ACA Edições. JAS@12-2025

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