Artigo

2025

João de Almeida Santos

"S/Título" - JAS 2025
A POLÍTICA

Há quinze dias, publiquei aqui um pequeno ensaio sobre a crise da política, onde, no essencial, dizia que a política está hoje reduzida a mero exercício do poder e, este, a puro uso da força, seja ela militar, económica ou tecnológica. Pois o regresso ao poder de Trump, neste ano de 2025, pode muito bem representar a consagração mundial desta lógica, considerando o impacto da política dos Estados Unidos em todo o mundo. Não foi por acaso que o americano Nobel da economia, Joseph Stiglitz, em artigo no “Le Monde”, considerou o regresso de Trump como um “ingrediente particularmente tóxico” (28/29.12.2025, p. 20). Sem dúvida.

O DECISIONISMO

No mundo já temos, segundo V-Dem (ISCTE-CEI), mais autocracias (91) do que democracias (88) e a chegada ao poder da direita radical nos países de democracia representativa, como é o caso, precisamente, dos USA ou da Argentina e do Chile e, na Europa, da Itália ou da Hungria, representa, em geral, uma regressão democrática que se exprime através de um forte decisionismo centrado no poder dos executivos e no controlo férreo dos outros poderes institucionais e dos meios de informação. Uma alteração profunda dos mecanismos do sistema representativo que remontam a Montesquieu, à Primeira Emenda da constituição americana e à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, ambas de 1791. Ou seja, uma alteração profunda da matriz liberal da nossa civilização. É uma evidência difícil de refutar.

TRUMP

Com Trump, consequentemente, está a verificar-se uma autêntica ruptura no chamado “mundo ocidental”, naquele cuja união permitiu vencer a segunda guerra mundial. A conversa da anexação do Canadá ou da Gronelândia diz tudo, ainda que possa parecer pura fanfarronice. Afinal, trata-se de parceiros e aliados, não de inimigos. Os USA são hoje controlados politicamente por uma direita radical que tem como seu ponta de lança um personagem totalmente atípico, egocêntrico e imprevisível, próprio para uma deriva que desqualifica radicalmente a própria política e a democracia. A ideia de pós-verdade e de que se pode dizer tudo e o contrário de tudo já está para além do próprio discurso clássico das ditaduras, que ainda se preocupavam em procurar consenso em torno de ideais com alguma base histórica. Mas o que se passa hoje nos Estados Unidos é algo absolutamente impensável para o mais poderoso país do mundo e que, para muitos, era visto precisamente como o modelo ideal de democracia.  O partido democrata americano parece ter entrado em letargia profunda à espera que chegue a primavera e, por cá, na Europa, já muitos defendem que é preciso dizer um rotundo “não” ao senhor Trump e aos próceres do MAGA, mostrando-lhes que o mundo não é uma mera projecção do seu doentio ego, nem sequer dos Estados Unidos, por mais poderosos que sejam. A fúria em pôr o seu nome em tudo o que mexe está a atingir níveis absolutamente inacreditáveis e que mancham a honorabilidade institucional dos Estados Unidos. O respeito pelos seus predecessores na Casa Branca desapareceu. 2025 foi, pois, profunda e negativamente marcado pelo regresso ao poder deste senhor. O preço a pagar será elevadíssimo, apesar de já ter havido processos de impeachment por muito menos. Mas a mudança tem causas profundas e talvez obedeça à dialéctica dos ciclos históricos. E, todavia, ela poderia ser relativamente pilotada se houvesse, nas mais influentes democracias mundiais, incluída a americana, protagonistas à altura do desafio e capazes de dar luta. Até o Brasil puniu judicialmente Bolsonaro pela tentativa de golpe, coisa que os americanos foram incapazes de fazer, aquando da invasão do Capitólio pelos seguidores de Trump. Bem pelo contrário, elegeram-no de novo Presidente. Mas talvez também essa carência de protagonistas com gravitas faça parte do próprio ciclo regressivo que estamos a viver. A verdade é que o que está a acontecer acaba por dar razão àqueles radicais que sempre consideraram os Estados Unidos como uma espécie de império do mal. E não só. Ao lado de Trump, Xi Jinping  parece elevar-se como um modelo de acção política institucional. Quem poderia prever tais mudanças?

ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS

Por cá, em Portugal, este foi um ano de eleições, praticamente três, se considerarmos que a campanha eleitoral presidencial ocorreu quase toda neste ano (as eleições presidenciais serão no dia 18 de Janeiro, com a segunda volta no início de Fevereiro). Aliás, andamos nisto há quase dois anos, para consolo das televisões e das audiências. Não se tem falado de outra coisa. Um teatro que já enjoa. Um excesso para tão exíguas competências (excepto a do poder de dissolução). Um processo que promove publicamente muitos protagonistas de papel. Pouco ajustados à função. A democracia precisa de gravitas, de seriedade e de dignidade ritual, que não existe neste processo. Quem perde é a figura institucional do Presidente, a dignidade da função e a própria democracia. Se é verdade que o actual PR pouco contribuiu para dar densidade ou gravitas à função presidencial, este longuíssimo cortejo de personagens sem consequência ainda a degrada mais. Mas é o que temos. É por isso que eu defendo que o PR deveria ser eleito por um colégio eleitoral alargado. Ainda por cima, surge agora este episódio inacreditável dos boletins de voto com candidatos que, afinal, não o são (veja a Nota no final do artigo).

A DIREITA

As legislativas de Maio aconteceram, mas nunca deveriam ter acontecido e as autárquicas vieram confirmar a queda aparatosa do PS (terceiro partido no parlamento), ainda que em menor grau do que nas legislativas. A direita tem hoje em Portugal uma confortável maioria absoluta, politicamente ziguezagueante, é certo, mas tem. Só lhe falta conseguir de novo a Presidência da República. Quando tudo conseguir só lhe faltará alinhar descaradamente com a idiossincrasia trumpiana, em homenagem ao tão celebrado eixo atlântico. Personagens que o queiram fazer não faltam por aí. Até porque a regressão europeia também já aponta claramente nesse sentido. E é precisamente esta regressão em larga escala que me faz pensar numa viragem epocal da política.

THE ECONOMIST

Parece que  “The Economist” classificou Portugal em primeiro lugar mundial (dentre os 36 países mais ricos do mundo) na performance económica (“A Economia do Ano”)  segundo uns certos critérios: crescimento do PIB, desemprego, inflação e comportamento da bolsa. Se cá não vivesse ficava impressionado com tanto sucesso deste nosso tão pequenino país. Como vivo cá, também fico impressionado pelo teor da notícia e pergunto-me seriamente se o governo português financiou (ou não) o estudo da revista “The Economist”. Fatia importante no crescimento do PIB é atribuída ao turismo, um sector economicamente muito instável e frágil. E fala-se de impostos atractivos para os estrangeiros, mas não para os nacionais. Querem um exemplo? Os portugueses, para aquecerem as casas onde vivem, pagam 23% de IVA. Que digam os do interior e das zonas altas o que isso representa no seu orçamento familiar. E fala-se de inflação, o que me provoca espanto perante as evidências que se impõem a quem vai às compras ou a quem recorre a serviços. E também se fala, imagine-se, da bolsa de valores portuguesa e da sua excepcional performance. Quais London Stock Exchange, qual Dow Jones, qual Bolsa de Milão ou de Frankfurt, qual Nasdaq! Nada disso – bolsa de valores de Lisboa! Esta, sim, para os da “The Economist”. Tudo muito compreensível, até porque a macroeconomia é hoje um verdejante pasto para as políticas de fachada, alimentando o discurso de uma classe política que mais nada tem para dizer. A ponto de, por cá, até dizer que se os portugueses no concreto sofrem dificuldades no seu dia-a-dia, os dados macroeconómicos são excelentes, incluída a bolsa de valores, pelo menos para a “The Economist”. Na macroeconomia há operações para todos os gostos, como parece ser a que fez esta revista, podendo os números ser alegremente torturados até dizerem o que nós queremos. 

LEÃO XIV

Também tivemos, em 2025, a eleição de um novo Papa, depois da experiência do popular Papa Bergoglio, “Francisco”. O novo Papa assumiu o nome de Leão IV, sabendo-se que Leão XIII ficou famoso pela célebre “Rerum Novarum”, a magna carta social dos católicos. Um sinal? O que parece ser certo é que houve com o novo Papa uma inversão de rota relativamente à que ia sendo introduzida pelo Papa Francisco. A recuperação do Palácio Apostólico como residência papal é disso sinal, como também o são outros sinais, por exemplo, o crucifixo que traz ao peito, em ouro, diferente do que o anterior pontífice exibia, de prata. Parece pouco, mas na simbologia usada pelos papas muito se pode saber acerca das suas posições nas matérias fundamentais. As religiões, afinal, vivem disso mesmo, de sinais.

UCRÂNIA

Continua a guerra da Rússia contra a Ucrânia. Fará 4 anos no próximo Fevereiro e julgo interessante lembrar que o senhor Putin pensava que numa semana se apoderaria deste país com 44 milhões de habitantes e com uma extensão equivalente à de França e da Alemanha juntas. Não se sabe como irá terminar, mas provavelmente alguns territórios passarão a ser russos. Não bastava a Putin ser a Rússia o maior país do mundo em extensão territorial, que ainda teve de roubar mais uns territórios à Ucrânia (embora se trate da conquista de um corredor directo russo para o Mar Negro). O que, todavia, se espera é que a guerra convencional em curso não evolua para a dimensão nuclear, como parece ser desejado por alguns lunáticos russos, como o senhor Karagánov  ou o papagaio de serviço Medvedev. Entretanto, a posição do senhor Trump continua a ser, neste aspecto, muito ambígua, variando com o vento (e com os seus gigantescos interesses pessoais). Tal como em relação à Venezuela: primeiro era só o combate ao narcotráfico, agora é também a reivindicação do direito a controlar o petróleo venezuelano, não se sabendo se continua interessado em construir a famosa Riviera na Faixa de Gaza. Tudo coisas mais próprias de um programa televisivo como o “The Apprentice” do que de política internacional.

O NOBEL DA PAZ

O Nobel da Paz foi entregue este ano à líder oposicionista venezuelana María Corina Machado. A oposição liderada por ela, de acordo com fontes credíveis internacionais, ganhou as últimas eleições presidenciais. Ela sempre foi perseguida pelo regime de Maduro. Regime que está apoiado nos militares. Muitas fontes referem que as forças armadas venezuelanas têm dois mil generais e que os militares ocupam parte importante da administração do Estado. Este Nobel vem valorizar o papel das eleições no destino das democracias e tem como fundo implícito que a oposição venezuelana ganhou efectivamente as eleições. Tem, pois, também o valor de uma crítica ao regime de Maduro. Um regime que gere um país em situação de descalabro e de uma gigantesca emigração, cerca de 8 milhões de pessoas, 25% da população da Venezuela, por falta de condições para a sobrevivência, num país que tem, ao que parece, a maior reserva natural de petróleo do mundo, mas que se revelou incapaz de a explorar convenientemente. Isto bem o sabe o senhor Trump, que aspira, entre tantas outras coisas, ao Nobel da Paz e que quer tomar conta dessa imensa riqueza, como em parte acontecia (através da Standard Oil e da Mobil) antes da sua nacionalização.

CONCLUSÃO

Não são, pois, tempos grandiosos os que estamos a viver. E o que se espera é que 2026 não venha piorar o que já não está bem. É sempre bom lembrar que a Europa viveu no século XX duas guerras mundiais, com mais de 60 milhões de mortos, e um tenebroso período de 30 anos. Depois, seguiu-se um período de 80 anos de paz, avanço social e progresso. A União Europeia, dando sequência ao processo iniciado, depois da primeira grande guerra, com a  “Sociedade das Nações”, foi uma resposta de paz a este período tão conturbado da história mundial e, em particular, da história da Europa. Não foi por acaso que se chamou, no início, em 1952, “Comunidade Europeia do Carvão e do Aço”. Mas agora está sob forte ataque, depois de ter conseguido avanços dignos de um registo especial na história da humanidade. A própria democracia, que regista ainda uma história muito curta, igual à do próprio sufrágio universal, encontra-se numa fase claramente regressiva. São menos as democracias do que os regimes autocráticos. E por isso mesmo a defesa dos ideais democráticos parece dever ser posta, de novo, no topo da agenda pública, sem deixarmos de reconhecer que a gestão das democracias (o mais difícil, justo e delicado dos regimes políticos) se revelou insuficiente, com os partidos da alternância a instalarem-se cómoda e displicentemente nos generosos braços do Estado,  e que ela só pode ser defendida se colocarmos no topo da agenda aquelas a que Norberto Bobbio, em “O Futuro da Democracia”, chamou “promessas não cumpridas da democracia”: a soberania do indivíduo, o primado do interesse geral, a derrota das oligarquias, o alargamento do espaço democrático, a eliminação do poder invisível, a educação do cidadão. Pois o que agora temos perante nós é precisamente a desforra das corporações e das oligarquias sobre o indivíduo singular, o triunfo do poder invisível e sem “accountability”, a imposição do interesse privado sobre o interesse geral, a pós-verdade como intoxicação da informação e da educação do cidadão. É isto que é preciso derrotar nesta fase da história da democracia.

NOTA SOBRE AS PRESIDENCIAIS

Sobre o recentíssimo e gravíssimo episódio dos boletins de voto com candidatos (três) inseridos no boletim sem serem efectivamente candidatos, só há uma coisa a fazer: corrigir os boletins de voto, para que o cidadão não seja chamado a exercer a sua soberania sobre um documento falso. Não importa agora falar da incompetência de quem não soube prever os tempos de decisão e o respectivo calendário, pois há um valor superior que se sobrepõe a tudo: o da correcta relação entre o cidadão e o Estado, naquele que é o momento decisivo da renovação do contrato entre ambos. JAS@12-2025

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