REFLEXÕES SOBRE A ARTE
JOAO DE ALMEIDA SANTOS
A Janela. Tríptico. 12/2017
I. UM COMENTÁRIO SOBRE…
"A JANELA"
Tríptico de Filipa Oliveira Antunes
A JANELA é uma mina infindável de inspiração. Picasso, Dalí, Matisse e tantos outros pintaram janelas. De dentro para fora. Porque, de dentro, ficamos mais envolvidos. O pintor convida-nos a olhar na sua perspectiva, pilotando e mapeando a viagem, uma visão do mundo a experienciar com todos os sentidos. Da janela vemos o mundo e não só o exterior. Também vemos o nosso. Como projecção de desejos e de liberdade, às vezes sufocados. A janela é vida e sonho! E Peter Pan, quando voou da janela para a Terra do Nunca, não queria crescer por fora para crescer muito por dentro. Uma dinâmica entre o exterior e o interior da nossa própria humanidade. Mas a janela também ilumina e sinaliza vida: nela projectamos a nossa visão imaginária do que se passa no seu interior. As janelas dialogam entre si e como comunidade, por exemplo, em torno de um pátio. São espelho umas das outras. Vimos com Hitchcock como se desenvolve esta dialéctica entre janelas!
Filipa Oliveira Antunes retomou aqui este tema, deixando a janela aberta para a praça circunstante e inspirando-se na de Palazzo Adriano, tão bem evocada por Tornatore em “Cinema Paradiso”. Duplo acesso: directo ou indirecto, através dos reflexos da praça na vidraça. Estar na praça sem sair da janela… sequer com o olhar! Incluída a visita à árvore, em explosão de cores, ou ao feixe de luz que atravessa a janela para se reflectir nessa porta luminosa evocativa do Velázquez de “Las Meninas”. Riqueza intertextual, portanto, com vestígios de classicismo e com algum sabor a De Chirico. Não se trata, pois, de uma janela abandonada à força evocativa ou invocativa das formas ou à pregnância das cores. Na janela há um diálogo quase imperceptível entre uma transparência feminina e uma silhueta em fuga reflectida na vidraça, um adeus indiciado na sobreposição em reflexo e forma das duas silhuetas! Nele domina esse perfil feminino em posição estática, quase hierática, sobre a silhueta que se esfuma, dinâmica, num horizonte que se vislumbra apenas como reflexo. O ambiente é algo desértico, silencioso e melancólico, iluminado por uma multiplicidade difusa de cores, e de rigorosa proporção – ancorada na “secção áurea” fibonacciana – de formas e figuras. A linguagem estética e a semântica estão ancoradas nas transparências impressas na vidraça e na centralidade do perfil feminino. O vidro funciona como transparência e espelho. Toda a obra parece, pois, estar ancorada neste diálogo, abraçado pela tonalidade variegada das cores e pela exacta geometria das formas, e sobretudo nesse perfil de mulher em relação polissémica com o conjunto.
Transparências, cores múltiplas em diálogo, reflexos baços, silêncio induzido por formas “frias” em rigorosa proporcionalidade e pela nudez do ambiente, uma certa planeza do conjunto, mas também por uma relação humana que, na dinâmica das transparências e reflexos, parece desfalecer – tudo poderia aludir a uma visão fria e melancólica do mundo não fosse o jogo policromático que se insinua e dissemina na geometria do espaço. Nota-se na dialéctica das superfícies planas a presença de algum pós-modernismo. Mas é na Gestalt cromática e geométrica do Tríptico que reside a beleza, na proporção das formas e no suave equilíbrio policromático donde se desprende uma certa melancolia crepuscular. Esta janela, na sua beleza “fria”, é um pouco simulacral e por isso devolve ao nosso olhar uma visão do mundo plana, sem fugas ou profundidade, apesar da praça e da velazquiana porta que indicia uma saída/fuga – Ausgang. A própria silhueta em fuga vive apenas como reflexo…
No “fim” do percurso, assistimos a uma suave explosão cromática, manto explosivo que invade como chuva o conjunto, transformando essa frieza aparente em exuberante performance sensorial que “resolve” o processo construtivo e analítico da obra, conferindo-lhe forte unidade expressiva. Este discurso sensorial revela-se, com autonomia, também em cada secção, num exercício que aspira simplesmente à beleza, tornando-se, além de belo – pela leveza, exactidão das formas e harmonia policromática -, muito expressivo pela multiplicidade relacional dos seus elementos compositivos, referenciais e intertextuais. Este resultado, assente em camadas sobrepostas que evoluem para uma forte unidade expressiva, reforça uma característica essencial da obra de Filipa Oliveira Antunes: a exigência de mediação reflexiva para um acesso integral do observador ao valor expressivo e polissémico da obra.
(Estoril, 11 de Dezembro de 2017)
II. UM POEMA SOBRE…
"A JANELA"
João de Almeida Santos
Pormenor de “A Janela”
A JANELA
NOS VIDROS
Desta janela
Se espelha
Todo o meu ser,
É neles que
Eu te revejo
Quando deixo
De te ver…
DA JANELA
Vejo o mundo
E o mundo
Vê a janela,
Debruçada
No parapeito
Olho a rua
E o céu
Para ver
Se passas nela…
NOS VIDROS
Desta janela
Há reflexos
Da vida
Olho p’ra eles
Pensativa
E não me sinto
Perdida
Se puder
Falar contigo
Quando te vir
De partida…
NOS VIDROS
Da minha janela
Se espelha
Todo o teu ser
Quando passas
Nesta rua
E me sinto
Estremecer
Da falta que tu
Me fazes
Por ainda
Não te ter…
SE TE AFASTAS
Da janela
E vislumbro
Silhueta
Lá ao fundo
Longe dela,
Eu sofro
Por te perder...
.........
É uma dor
Tão profunda
Que logo
Se me revela.
VOA P’RA LONGE
Essa tua
Silhueta
Que s’esgueira
Na esquina
Como se fosse
Cometa
A passar
Na minha rua...
.............
Mas também eu
Me diluo
E me sinto
Um pouco nua
Na imagem
Transparente
Dos vidros
Desta janela
Como se fosse
Já tua...
FOSTE EMBORA
Do meu mundo
Onde eu
Te queria ter
Ao alcance
De um olhar
Para nunca
Te perder...
MAS NÃO DEIXEI
A janela,
Esperei sempre
Por ti,
Hora-a-hora,
Dia-a-dia,
Até que, por fim,
Eu te vi...
VI-TE
Da minha janela,
Desenhei-te
Com alma
E olhar
De devoção,
Pintei-te todo
A vermelho
Na cor da minha
Paixão...
...............
Mas mesmo assim
Tu partiste
Sem me dar
A tua mão.
DA JANELA
Sempre te vejo
Mesmo ausente
Da nossa rua,
Nos vidros
Fica imagem,
Perfeita
Como a tua,
Mas é sempre
Transparente
E não lhe posso
Tocar,
Guardo-a, então,
Com ternura
No meu inocente
Olhar.
E GOSTO
Da primavera,
Confundir-te
Com aromas
Que me chegam
À janela,
Anunciando
A chegada
Do melhor
Que sinto nela...
A JANELA
Não tem cortinas
P’ra te ver
Na nossa rua,
Ver-te chegar
E partir,
Ficando um pouco
Mais nua,
Querer que
Me vejas
Assim
Tão brilhante
Como a Lua...
AH! QUANTAS VEZES
Eu desci
Da janela
Para a rua
...............
Olhava de baixo
P’ra cima,
Mas eu nela
Não me via,
E, assim,
Não era tua…
O MEU MUNDO
É a janela,
O da rua
É o teu,
É dela que
Eu te vejo,
Na rua
Já não sou eu.
DA JANELA
Do meu mundo,
Olho p’ra ti
Com calor,
Sem ela
Eu não me sinto,
Fica um muro,
Meu amor...
III. UM COMENTÁRIO SOBRE…
"O TRÍPTICO" de Filipa Oliveira Antunes"O Tríptico". 25.11.2017
HÁ MUITO QUE DIALOGO com a arte de Filipa Oliveira Antunes. Semana a semana. Quase sempre em linguagem poética. Com esses belíssimos rostos que saem das suas mãos como espelho da alma ou como desafio ao estro do poeta. Desafios estimulantes porque deles jorra beleza sempre impressiva que surpreende pela plasticidade imaginativa da autora. Num interminável repto a reinventar-se em rostos para poemas que espreitam, inquietos, à esquina, os seus riscos e as suas cores para depois desabarem neles como torrentes tumultuosas de rios em cheia. Mas, outras vezes, diálogos em prosa, como recentemente, em torno de um seu Pessoa, muito parecido no perfil identitário com o Bernardo Soares. Ou reflectindo, em ensaio, sobre o belo, o infinito e a linha elíptica. Um longo desafio dialogado, suscitado por uma afirmação de Johann Winckelmann (1717-1768), o fundador da história da arte, que teve como resposta textos e belíssimas ilustrações da autora. Agora veio este para descodificar uma sua magnífica obra, um desafio a leituras múltiplas em chave referencial e intertextual. De que se trata, pois, neste caso, numa obra criada, uma vez mais, como desafio a um contexto que se cruza, julgo, com a sua própria história pessoal?
Estamos perante um tríptico onde os elementos estruturantes convergem numa unidade expressiva intensa e coerente pela força explosiva da sua mancha cromática e pelo abraço elíptico envolvente, mas também pela semântica de um discurso estético que se propõe, ao mesmo tempo, como reflexivo e meta-sensorial. Uma explosão de cor, pela intensidade e aparente fragmentação provocada por riscos de luz, como fogo de artifício… é o que parece impor-se, como síntese, logo a um primeiro olhar. Mas as cores são parte integrante de uma exigente semântica da obra porque representam elementos referenciais que a autora propõe ao nosso dispositivo sensorial, sim, mas também cognitivo. São elementos que resultam, numa linguagem velada, da reinterpretação do espaço em que se inscreve, inspira e alimenta, gerando, ao mesmo tempo, uma interessante dialéctica intertextual no discurso estético.
Na verdade, trata-se da reconstrução conceptual de espaços diferenciados numa unidade imaginária que convoca múltiplas referências de contexto, repropondo-as em linguagem estético-expressiva e ancorando-as numa técnica apurada e numa intertextualidade que também evoca o melhor da história da arte. Cabe, pois, ao observador, com os seus recursos sensoriais, estilísticos e cognitivos, evoluir da impressão sensorial imediata para uma hermenêutica dos sinais inscritos, e quase velados, na mancha cromática. Quase um esforço analítico.
O tríptico está construído em camadas semânticas que reforçam e enriquecem a sua solidez estética. E algum realismo que ainda se possa oferecer, como código de leitura, a um olhar menos apurado e intelectualmente exigente é ultrapassado por uma hermenêutica do contexto mais atenta, minuciosa e empenhada que evolua para um diálogo com os fragmentos da semântica da obra quer em chave referencial que em chave intertextual, com a história da arte. Por exemplo, pode-se evocar uma obra de Paula Rego (“A dança”, de 1988) a partir desta praia em meia-lua, ao luar, e desta saia-dançante, em ocre, do terceiro elemento do tríptico! Ou evocar a arte de Pollock neste extenso leque de pavão que anuncia, como passadeira de honra, a casa das histórias, ali mesmo ao lado! Tudo numa intensa unidade expressiva que integra os seus elementos sem lhes anular a autonomia e a identidade. Refiro-me aos três elementos do tríptico.
Alicerçado num poderoso esforço analítico de construção figurativa, conceptualmente composta e, depois, cromaticamente transfigurada, este tríptico ganha ainda uma dimensão anímica inspirada nesse quase imperceptível murmúrio feminino que aflora, como suave beijo, à praia-meia-lua, parecendo evocar o tímido regresso da mulher que, um dia, por irresistível beleza, fora raptada pelos deuses marinhos, quem sabe se por Poseidôn. Tudo é muito velado e subtil neste tríptico exuberante que solicita leituras in progress por camadas de significado, recobertas, como seu manto, por mil cores em explosão. Com o surpreendente resultado de nos oferecer também uma intertextualidade que a devolve à história da arte e aos seus mais fascinantes protagonistas. Na verdade, quem pisar o chão deste espaço onde se inscreve o tríptico poderá certamente descodificar-lhe a semântica em traço e cor de sofisticada e sedutora textura. Mas quem o visitar com os códigos da história da arte não deixará de ver nele marcas intertextuais que aludem a Vieira da Silva, Kandinsky ou, sobretudo, Pollock (por exemplo, em “Gótico”, de 1944). Por isso, a beleza formal, mas explosiva, deste tríptico é enriquecida pela abundância semântica que timidamente, sob forma velada, exibe, elevando-se àquela que, para mim, talvez seja a verdadeira essência da obra de arte: a impossibilidade de a capturar e esgotar na mera mecânica do dispositivo sensorial, porque ela imporá sempre, teimosamente, um progressivo e infindável processo de desvelamento. É aqui que reside a universalidade, a intemporalidade e a beleza da obra de arte. E ouso até dizer que, neste tríptico, ao impressivo registo sensorial induzido pela sua explosiva intensidade cromática corresponde um outro desafio hermenêutico, induzido pela sua rica e complexa carga semântica. O que o torna uma obra não só complexa, mas também completa e muito bela. Para mim, esta obra tem a densidade e a beleza próprias das obras que resistem à voracidade do tempo.
(Estoril, 25.11. 2017)
IV. ENSAIO
"DESASSOSSEGO"
“Fernando Pessoa”, de Filipa Oliveira Antunes. 2017.
ESTE ROSTO parece-me, por dentro e por fora, o do Bernardo Soares. O da renúncia. Que não se ajeita com a poesia. Espírito franzido pela aspereza e contingência do existir. E que até se gaba da sua dissidência com a vida. Ele move-se para dentro, fala de si para si e o seu olhar é como que devolvido pelos óculos que se lhe colam ao rosto como sua pele. Óculos como espelho da alma, apesar da transparência. Ou, melhor, do espírito, que não é a mesma coisa, pois este é culto e aquela pode não ser. A alma sente e o espírito pensa! Mas pode haver um sentir inteligente, uma alma que pensa? Talvez não, porque a inteligência tende a embaciar o sentimento. Tal como o sentimento embacia a inteligência. Pelo menos em parte, porque não fluem, ambos, livremente, turvando-se mutuamente. É como o amor. Não há amor inteligente, mas amor feliz. O amor é mais da ordem da alma do que do espírito! E por isso o espírito é perigoso para o amor…
HOMEM AMARELO
Pois, com este rosto amarelo que o torna aparentemente mais irreal e, por isso, mais perdurável, é mesmo ele, o homem da renúncia, o que nunca se deixa ir para não se perder, o que quer perdurar… à força de sentimentos desvitalizados e transfigurados! O que olha – o olhar deveria ser tudo – para a vida como para uma galeria de arte! E que não toca nela nem com a ponta dos dedos…
O homem amarelo tem o corpo confundido com a alma. As palavras viram-se para dentro dele, dobradas sobre si, e o bigode é a porta fechada da sua fala. Uma fala espiritual. Resistente e fechada, à força, não vá a tentação abri-la e deixar escapar um reles sentimento carnal. Não! Para renunciar é preciso força de vontade e alguma crispação. Lábios apertados até se anularem na superfície lisa do rosto.
ÓCULOS
“Indiferença sentimental”, diz: essa eu até a reconverto em palavras ao rubro com a alma aos pulos, livremente, à minha vontade e até contra mim e tudo o que eu próprio planeei para ser eventualmente feliz. Ah!, como é bela a indiferença, se for minha e a converter em autêntica diferença. Ser indiferente de forma original é cultivar a diferença e afirmá-la perante os iguais. Até a gravata me torna mais encrespado com o exterior de mim. Agarra-me pelo colarinho e não me deixa ir. Sou livre à força… quase à forca. Morrendo para fora à medida que vivo para dentro… de mim! E depois destes óculos me terem protegido quando “uma rajada baça de sol turvo (quase) queimou nos meus olhos a sensação física de olhar”. Passei a olhar quase só para dentro, olhando de través para fora. Só o suficiente. Cedendo apenas um pouco à exigência desse objecto transparente que tenho no meu rosto amarelo e a que chamam “óculos”. Nome tão estranho como o de “olho”, no singular e com a sonoridade seca que tristemente exibe! Coisa quase supérflua porque não me serve para ver o essencial. Que está dentro de mim. Tudo o resto é puro pretexto.
METAMORFOSE
“Que os teus actos sejam a estátua da renúncia, os teus gestos o pedestal da indiferença, as tuas palavras os vitrais da negação” – é isso que sentes, ó rosto amarelo, quando falas da vida? A vida é só metamorfose espiritual? Com a fixidez desse teu olhar metabolizas e suspendes a vida, para a viveres interiormente de forma mais intensa?
QUESTÃO DE LUZ!
“Um amarelo de calor estagnou no verde preto das árvores”, dizes tu, com esse ar sisudo, de caso! Mas foi por baixo que estagnou… sim, no teu rosto, quase te queimando para a vida. Estagnou em ti e sob esta copa pouco frondosa que é esse teu chapéu verde. Foi por isso que o teu rosto se pintou de amarelo. Sim, sim, o amarelo está perto de ti porque não é humanamente real e faz de ti um ser livre. Foi o sol que te queimou a alma e te pôs amarelo por fora. Questão de Luz, meu Caro!
RENÚNCIA
Acho, pois, que te chamas mesmo Bernardo Soares e que gostavas de ter jeito para a poesia. Mas, claro, a poesia está perto demais do sentimento, da emoção, da vida e corres o risco de te deixares ir na onda da sua perigosa e insignificante fugacidade…! O amarelo ajuda à renúncia, sim, logo, ajuda a procurar a beleza intemporal, a que não é corrompível, degradável. É melhor conservares-te amarelo e não saíres de ti a não ser o estritamente necessário. De qualquer modo, esse pouco de vida de que precisas está sempre lá, não desaparece! Assim ainda serás maior do que o tamanho do que vês. Porque vês com os teus sentidos interiores, apesar desse engano dos teus óculos…
(Um Desenho de Filipa Oliveira Antunes – Fernando Pessoa. Tinta acrílica, grafite e verniz sobre tela. 70×50. Outubro de 2017).
V. ENSAIO
"UM RASTO DE INQUIETAÇÃO..."
Reflexões sobre a Poesia
“O Poeta que gosta do amarelo”. Jas. 2018
“Saber interpor-se constantemente entre si próprio e as coisas é o
mais alto grau de sabedoria e prudência”.
Bernardo Soares
A POESIA É DESASSOSSEGO…
Ou nasce dele. Dá forma à dor, (re)vivendo-a ou transmudando-a em palavras como se fosse a sua notação musical e a sua melodia. Dor? Porquê sempre dor? Porque a poesia, sendo sensitiva, também é privação sensorial, porque vive num intervalo. Ou resulta dela, apesar de ser uma linguagem que é quase um sentir puro… mas em “carne viva”. Quase um comportamento, esteticamente desenhado e cantado… em surdina! “Comporta-te poeticamente!”, poderia ter dito o Hans-Georg Gadamer de “Verdade e Método”! Ou o velho Schiller! Vive a vida assim, sem te deixares ir nessa volúpia devoradora dos sentidos que te pode sugar e engolir a alma e a distância contemplativa. Cria distância, intervalos por onde possas ressuscitar do torpor quotidiano! Não corras demais! A velocidade cega, ouviste? Corre só o suficiente para agarrares a vida pelo seu lado mais denso. Aquele que só podes encontrar em ti. E que entenderás e sentirás plenamente quando te aproximares das fronteiras da existência, desses abismos que ameaçam sugar-te irremediavelmente! Se for preciso pára, não vás logo, impaciente, até ao fim. Se fores, que farás depois? Sentas-te à espera que chegue inspiração para novas metas? Não, porque será sempre ilusório chegar rapidamente ao fim desejado. Se o atingiste, esse fim era falso, era uma miragem! Cria, pois, um intervalo entre ti e a vida para melhor a observares sem deixar de a viver. E deixa-te ficar nele, sem tentações perigosas. Era mais ou menos isto o que dizia o famoso Bernardo. Nesse intervalo podes tocar com as mãos o real e fazer a sua notação poética, convertê-lo numa forma que quase o não é, porque pode dizer tudo com quase nada (de forma). Até mais do que a própria imagem. E se alguém disser que uma imagem vale mil palavras, eu digo que um verso pode valer mil imagens, porque nele a palavra soa a melodia do silêncio… que só pode ser ouvida a partir desse intervalo!
PRIVAÇÃO
Na poesia há privação! Há, sim! É um intervalo denso e intenso entre o que não temos e aquilo a que renunciamos: é vida transfigurada em palavras sincopadas ao ritmo de uma difusa e incontrolável dor interior. Uma moinha que só não te devora porque a vais dizendo melodicamente ao ritmo que te impõe. Com uma paradoxal alegria melancólica! É assim que eu a sinto! Foi assim que a senti desde o princípio. E por isso me deixei ir…
“A arte”, diz Bernardo Soares, “é a expressão intelectual da emoção”. E diz mais: “o que não temos, ou não ousamos, ou não conseguimos, podemos possuí-lo em sonho, e é com esse sonho que fazemos arte”. Sim, o sonho, onde vivo o impossível, onde nunca atinjo a meta, nunca chego ao fim… pois quando estou a atingi-lo, acordo! Irremediavelmente. Lembra-me o Calderón de la Barca e o seu “La vida es sueño”! A arte está lá nesse intervalo por onde irrompe o sonho, sob a forma de palavra, risco, cor, som. Quando nos sentimos orquestra. Que bom sentir-se orquestra, com os sentidos a executarem uma sinfonia! E o compositor mais próximo talvez seja Mahler! Tenho a certeza!
Sonho de olhos abertos, sonho sensitivo, mas com alma sofrida por renúncia ou impossibilidade. Neste intervalo também se constrói a liberdade, sob forma de arte: não me pode ser tirado o que eu reconstruí neste intervalo sofrido, como arte, diria, de certeza, Bernardo Soares. Sim, porque o reconstruí em ausência. E neste estado de privação “nada me pode ser tirado nem diminuído”. Bem pelo contrário, sou eu que lanço ao mundo essa vida revisitada e reconstruída, a partir desse sentimento (doloroso) de privação. Dou música ao mundo. Como dizia o Italo Calvino, nas famosas “Lições Americanas”: “creio que seja uma constante antropológica este nexo entre levitação desejada e privação sofrida. É este dispositivo antropológico que a literatura perpetua”. Diria mais, com ele: a poesia é uma “função existencial” que procura a leveza como reacção ao peso do viver. A leveza dos sonhos a olhos abertos, cantados em palavras e lançados ao vento que há-de mover, como chamamento, as copas das árvores… ou dos arbustos! Ou talvez não!
RENÚNCIA
Comprei, pois, uma nova edição do “Livro do Desassossego” do Fernando Pessoa ou, se quiserem, do Bernardo Soares. Gosto deste livro. Deste Fernando Pessoa. Filósofo, sim, filósofo. Revisito-o com regularidade. Por necessidade interior. Irmanado nessa renúncia que é privação sofrida… à procura de leveza. Que vou encontrando à medida que caminho entre o silêncio e o sonho, movido por palavras, riscos e cores intensas que me vão desenhando e iluminando esta vereda tão estreita da minha vida. E porque compreendi que Pessoa chegou perto dos nexos fundamentais da existência, naquilo que ela tem de mais sublime, de mais elevado. E neste livro anda por lá essa ideia que tanto me fascina, do ponto de vista estético: a ideia de renúncia. Sim, essa ideia de renúncia (ou mesmo de impossibilidade) que, um dia, me pôs em intervalo criativo. Não a do eremita, daquele que foge da vida para se aproximar de deus, da natureza ou da eternidade. Não, essa não, mas a daquele que foge da vida para entrar nela com mais profundidade, compreendê-la e vivê-la numa dimensão que está para além do imprevisível tempo do acaso, do presente efémero e circular, da volúpia orgástica ou império dos sentidos. Claro que não sou tão radical como ele. Nem tão pesado nos juízos. Mas sei bem que só radicalizando poderemos compreender o essencial. Mas não como mero exercício intelectual. Nestas condições, a arte permite isso. Porque não é do domínio do pragmático e do útil. Porque não serve, aparentemente, para coisa alguma, a não ser como adereço. Mas não! Ela serve noutra dimensão. Encontra-se num dispositivo que, sendo universal, procede em registos únicos, com aura. “Subjectividade universal”, diria o Kant dessa extraordinária “Crítica do Juízo”. Assunto tão relevante que, um dia, Schiller, nas “Cartas sobre a Educação Estética do Homem” (1795), haveria de propor um “Estado Estético” que fundasse a harmonia social na educação estética, ou seja, na celebração quotidiana do belo!
SILÊNCIO
É uma grande obra, esta, a do Desassossego. Desta vez li uns textos sobre a relação entre a poesia e a prosa. O Bernardo Soares preferia a prosa ao verso, pela simples razão de ser “incapaz de escrever em verso”. Que era o que eu próprio sentia até há cerca de três anos. Até que se deu o clique. Ao olhar para um arbusto. Uma espécie de “fissão poética”, com libertação de energia criativa e até com potência destrutiva! Ah, sim. Sei bem do poder de um poema! E sei quase tudo sobre quem o não sabe ler como resultado do tal intervalo e fica ao pé da letra! Como se de prosa se tratasse, nem sequer ficcional!
Percebi que o que não é possível dizer em prosa pode ser dito em poesia, sendo também claro que a prosa não tem o mesmo poder performativo. Aumenta o espaço de liberdade e até pode adquirir um carácter substitutivo. E não só porque o poeta é um fingidor que sente pelo menos metade do que diz, fingindo que mente só porque o diz num poema. Ou seja, não só porque a poesia nos torna mais livres. Porque dizemos o que sentimos de forma livremente auto-referencial, embora nesse registo universal com que traduzimos, em arte, o nosso próprio registo sensorial ou a nossa experiência vivida. E, deste modo, porque o que sob esta forma se diz tem a pretensão de ser mais do que o que simplesmente se comunica sob qualquer outra forma: ser simplesmente belo. Indo para além do registo sensorial, denotativo, conotativo ou conceptual. Mas não só por isso. Sobretudo porque é uma linguagem plena que pode dizer quase tanto como o que diz o silêncio. A poesia é a linguagem mais próxima do silêncio. Quase como se fosse só silêncio murmurado, balbuciado, mas composto, musicado, conservando ao mesmo tempo uma dimensão polissémica, sem pretensões denotativas, tal como a música. Mesmo que haja referentes (e há sempre) que nela se possam vir a reconhecer. Mas ela é mais do que isso: aspira a um reconhecimento subjectivo universal, filtrado, claro, pelo dispositivo sensorial de todos e de cada um. A arte, sendo universal, interpela singularmente cada um de nós, através da sensibilidade!
MÚSICA
O Bernardo Soares diz que o verso é uma passagem da música para a prosa. Genial intuição. Ou seja, a poesia não só está entre a música e a prosa como permite a passagem de uma para a outra, sem se transformar em simples meio ou instrumento. Tem elementos de ambas. E vive nesse intervalo com corporeidade própria. Mas julgo ser possível dizer também que entre o silêncio e a poesia talvez esteja a música. A música é a voz do silêncio, porque ainda não diz, mas deixa espaço à poesia para dizer, como melodia cantada, o que é (quase) indizível. E é nesta quase indizibilidade melódica que reside o poder da poesia. É por isso que o silêncio e a música se podem exprimir de forma larvar na poesia, sendo cada poema a borboleta que esvoaça sobre as nossas vidas e a nossa imaginação para interpelar a fundo o nosso pólen, a nossa sensibilidade individual. Sim, cada poema é uma borboleta à procura de pólen…
EM SUMA, UM RASTO DE INQUIETAÇÃO…
É nestes intervalos que o poeta se coloca ao cantar a música da vida. Um canto sofrido, porque fruto do desassossego, da privação, da dor, mas por isso mesmo obra de jograis vadios, nómadas, sempre em movimento, atravessando fronteiras à procura do que nunca encontram e não querem encontrar. E a poesia é o seu modo de comunicar a partir desse intervalo perpétuo em que vivem: em permanente privação. Sem tempo nem lugar. O seus poemas são cantos com que querem encantar para logo partir, deixando um rasto de inquietação, que é ao que de mais belo a poesia pode aspirar.
VI. INTRODUÇÃO A UM CATÁLOGO
MARIA OLIVEIRA: "OBJECTOS VAGOS".
Um dos artefactos aqui analisados.
Introdução ao Catálogo da Mostra no Palácio Nacional de Mafra,
em 2014. Ilustração: "Quadrado em Cobre", um dos artefactos em
exposição.
“OBJECTOS VAGOS” é o título de uma mostra de artefactos em cobre, o material de eleição usado nos últimos trabalhos de Maria Oliveira. Segue-se a “Chama-me de preposição”, a sua última mostra no Centro Cultural de Cascais, em 2013.
“Preposição”: artefactos que nos reconduzem a um momento orgânico anterior ao concretismo das formas reais, tridimensionais e imediatamente disponíveis ao olhar humano.
“Objetos vagos”: mesmo quando a reconstrução estética do tridimensional parece estar concluída o que fica é ainda algo indeterminado ou vago perante a recorrente exigência humana de formas acabadas e imediatamente disponíveis. Objectos vagos são, pelo contrário, fragmentos que escapam a uma apreensão sensorial imediata. Como os cinco artefactos (em exposição) que se replicam em progressão aparentemente linear, mas que, afinal, não repropõem integral e sequencialmente a identidade replicada e se desdobram lateralmente em duplos (em acrílico) ao serviço da afirmação dessa mesma identidade em aparente processo de repetição e progressão linear (em cobre).
Coerente com estes artefactos, mas mais complexo ainda o processo inscrito nos dois quadrados de cobre. Porquê? Porque eles não se propõem directamente, no essencial, à sensibilidade estética.
Aqui, parece que a autora se inspirou no mito de Medusa e de Perseu e na implícita ideia de leveza que o envolve. O escudo-espelho de Perseu, que impedia a petrificação de quem ousasse olhar directamente a cabeça da Medusa, é aqui representado pelo chão espelhado que nos dá acesso indirecto ao centro oculto da proposta estética, a um trabalho em filigrana totalmente recoberto por esse manto de cobre que se oferece directamente ao nosso olhar, sinalizando a essencialidade do seu reverso. Um espelho que nos solicita a múltiplas e diversificadas incursões observativas por ângulos de acesso múltiplos e que nos levam ao centro da proposta: um quadrado em cobre em perfeita levitação, suspenso no ar, em posição de “ballon”, num efeito de subtracção de peso a um hipertexto (uma textura “endobrada” atravessada por sulcos) a que só temos acesso por via indirecta. Através de um espelho. E aqui deparamo-nos, de facto, com uma categoria bem transversal no universo das várias formas de arte, da literatura (Calvino) à arquitectura (Renzo Piano), ao bailado (dança clássica). Mas aquilo que no bailado é uma luta contra o efeito da gravidade, na escultura ou na literatura é uma luta contra a captura do olhar pelo imediato, a aparência. A proposta é muito clara: não há acesso imediato e linear ao centro do discurso estético para evitar a petrificação da leitura, tornando-a literal. E quando parece que os quadrados se afundam no solo, o que na verdade acontece é a sua elevação/levitação, convocando-nos a projectá-los no ar para podermos ler o que neles está inscrito como seu código de acesso. O que nenhuma leitura directa tornaria possível. É assim que o trabalho de Maria Oliveira volta a revisitar esse processo de reconstrução da máquina do mundo através de um esforço de descodificação da sua proposta.
Estes dois artefactos estão construídos com base num dispositivo que “sobredetermina” a leitura da proposta estética em cada uma das suas componentes. O verso e o reverso dos quadrados funcionam no interior deste dispositivo, sendo certo que o verso funciona como sinalizador do conjunto da proposta, constituindo-se o reverso como o seu centro, já que é aí que nos conduz a centralidade do espelho no interior de todo o dispositivo. O espelho, por um lado, permite-nos o acesso ao reverso de forma indirecta, como o escudo-espelho de Perseu à cabeça da Medusa; por outro lado, este acesso não é linear, na medida em que só por sucessivas aproximações é possível aceder à totalidade da proposta. O espelho é também condição da própria levitação do quadrado, sendo, pois, compreensível que ele ocupe a centralidade no dispositivo estético: levitação, modulação e chave de acesso, mediação da leitura e “empobrecimento” do valor facial dos quadrados de cobre. E é o espelho que nos conduz a essa valorização estética do mito de Medusa e Perseu, ou a exigência de uma aproximação reflexiva e não puramente sensitiva à arte. E, já agora, a essa dialéctica entre levitação desejada e privação sofrida de que falava Calvino, ou seja, a recusa consciente da captura do olhar e da mente pelo imediato como condição de acesso pleno à universalidade da arte.
VII. INTRODUÇÃO AO UM CATÁLOGO
CHAMA-ME DE PREPOSIÇÃO
Peças da Exposição em Cobre e em Acrílico
«La mia operazione è stata il più delle volte una sottrazione di peso». «Il cristallo, con la sua esatta sfaccettatura e la sua capacità di rifrangere la luce, è il modello di perfezione che ho sempre tenuto come un emblema». Italo Calvino («Six memos for the next millennium», 1984/1988)
«CHAMA-ME DE PREPOSIÇÃO» é um trabalho de Maria Oliveira que integra 18 artefactos (dos quais 17 estão em exposição) distribuídos por cinco unidades e materializados a partir de um princípio que evolui como repetição da estrutura construtiva, mas também dos próprios artefactos, nas unidades 1 e 2. À excepção da unidade 5, todos eles se desdobram em outros, anulando essa condição de unicidade da obra de arte singular. Os trabalhos estiveram em Exposição, em 2012, no Centro Cultural de Cascais.
E este é um primeiro aspecto que gostaria de sublinhar nesta fascinante exposição de Maria Oliveira: a ideia de unicidade da obra de arte. Sem invocar o mil vezes invocado Walter Benjamin que viu na reprodutibilidade o fim da aura, da unicidade da obra de arte. Mas a verdade é que a autora também se socorre da ideia de reprodução para romper com a ideia de aura. Só que se trata de uma reprodução que é, ao mesmo tempo, um duplo desdobramento do único, por repetição, mas também por quase simulacro, que é o que resulta de uma espécie de projecção em acrílico do original em cobre. Projecção: como se se tratasse de uma «sombra», de uma contraposição, em segundo plano, que evidencia o original, em primeiro plano. De um duplo ao serviço da pregnância do original. Dupla reprodução, sim, como se a autora tivesse receio de não ser compreendida naquele seu esforço de desdobramento do único in progress, linear e em quase imperceptível metamorfose.
É assim que a estrutura construtiva se processa, replicando-se por justaposição dos diferentes fragmentos, reconstruindo, deste modo, o tridimensional e garantindo a sua sustentabilidade. E este é o segundo aspecto que merece uma pausa reflexiva. O tridimensional, que pertence à esfera do nosso vivido e que a arte clássica reproduzia desdobrando o real em simulacro, por imitação, surge aqui reconstruído à vista desarmada, como que desarticulado e em recomposição progressiva segundo um movimento quase linear e geométrico. Linear porque se trata de uma progressão quase imperceptível. Geométrico porque exprime essas formas moleculares da estrutura orgânica da matéria com as quais se processa o acesso ao tridimensional. Ou seja, o que encontramos neste processo é uma desestruturação radical de formas até à sua estrutura mais simples, seguida de uma recomposição permanentemente inacabada, diria, sempre «em sangue vivo», por onde irrompe a própria ideia de arte da autora. Como se ela, no seu processo criativo, jogasse em permanência com a mecânica reconstrutiva do mundo, desarticulando-a e rearticulando-a, e centrando nisso o génio artístico e criador. Mas, agora – e creio que isto é, nela, inovador -, desdobrando esse processo linear in progress também em registo simulacral, ou melhor «simulacrílico», embora permeado com microfragmentos da matéria original, o cobre, ou de outras matérias menos nobres.
Como se se tratasse de uma réplica instrumental cujo único objetivo seria o de valorizar o original. Mas isto em registo sequencial, onde o único e original perdem a «virgindade», a aura, a unicidade. A autora intervém com planos recortados, dobrados, manufacturados um a um e ao infinito pormenor, com incisões milimétricas impressas durante ou após a sua fundição que acentuam a sua natureza fragmentária. A cor e as incisões são elementos integrantes e naturais de cada fragmento, mas também
elementos estruturais que intervêm na desconstrução e construção das várias relações. Trata-se de um jogo complexo, intenso, milimétrico, onde no interior de uma geometria orgânica linear e facilmente detectável se combinam e desmultiplicam estruturas geométricas dominantes e texturas orgânicas complexas com composições internas em filigrana que dão ao mesmo tempo densidade e leveza ao artefacto. Leveza, consistência e, sobretudo, exactidão – talvez sejam estas as categorias que, seguindo o Calvino das seis propostas para o próximo, este, Milénio, melhor identificam as peças de Maria Oliveira presentes nesta exposição. A exactidão é sem dúvida a categoria que melhor identifica toda a sua obra. A própria ideia de repetição, central nesta obra, é filha da obsessão pela exactidão – o mesmo que se repete no plano da estrutura construtiva, mas que difere em composição interna. fragmentária. A cor e as incisões são elementos integrantes e naturais de cada fragmento, mas também elementos estruturais que intervêm na desconstrução e construção das várias relações. Trata-se de um jogo complexo, intenso, milimétrico, onde no interior de uma geometria orgânica linear e facilmente detectável se combinam e desmultiplicam estruturas geométricas dominantes e texturas orgânicas complexas com composições internas em filigrana que dão ao mesmo tempo densidade e leveza ao artefacto. Leveza, consistência e, sobretudo, exactidão – talvez sejam estas as categorias que, seguindo o Calvino das seis propostas para o próximo, este, Milénio, melhor identificam as peças de Maria Oliveira presentes nesta exposição. A exactidão é sem dúvida a categoria que melhor identifica toda a sua obra. A própria ideia de repetição, central nesta obra, é filha da obsessão pela exactidão – o mesmo que se repete no plano da estrutura construtiva, mas que difere em composição interna.
Mas a repetição dos artefactos também – sobretudo – visa sublinhar o diferente. E este é o terceiro aspecto sobre o qual deveremos deter-nos – a repetição, a identidade e a diferença. Repete para sublinhar o diferente, o que é um aparente paradoxo, já que a repetição parece existir para sublinhar o que lhe preexiste como igual, seleccionando-o e prolongando-o no tempo e no espaço. A repetição parece só desdobrar a identidade. Só que esta não é uma repetição mecânica e identitária. Ela é aparente porque cada artefacto evolui semanticamente na sequência de uma repetição material permeada de microvariações menos perceptíveis. Ou seja, quando a repetição parece sublinhar a identidade, o que, na verdade, ganha força semântica e expressividade são as microvariações, a própria dinâmica do desdobramento linear in progress, mas também lateral e em forma quase simulacral. A repetição/desdobramento em microvariação parece ser, aliás, uma técnica, mas também uma forma de expressividade da autora, sendo nela recorrente desde há muito tempo. Mas eu creio que só com a categoria da exactidão nos poderemos aperceber de que a diferença é isso mesmo: na aparente identidade revela-se ao pormenor a diferença, com a exactidão do trabalho em filigrana. Lembro-me de uma sua gravura de 1979 onde esta era a sua técnica expressiva, com se estivéssemos em moviola. De resto, ao procurar a tridimensionalidade reconstruída segundo a dinâmica – de tipo molecular – da natureza é compreensível que também o seu ritmo expressivo seja esse, porque, afinal, é esse o ritmo dela. Nela, na natureza, tudo se repete, mas em permanente variação ou singularidade. Em retorno cíclico, tudo se repete (reproduz), mas de forma diferente, em consonância com as microvariações
que o tempo irrepetível produz. A singularidade da obra – se esta for uma ideia ainda aplicável -, de resto, é fortemente expressiva, não só pela dupla intensidade cromática e semântica do material, ou seja, quer como fulgor simplesmente cromático que se desprende das entranhas do cobre em ferida quer como suave manto expressivo, não intenso e não em ferida, que envolve o material quando o implacável tempo nele se inscreve e persiste, mas também pelo registo artesanal, minucioso e geométrico nela inscrito por vontade humana, sim, mas vontade despida e discreta até quase à anulação. Como se se tratasse quase de um registo não humano, mais próprio da implacável máquina do mundo do que de uma subjetividade. É também por tudo isto que o conjunto dos artefactos não se constitui simplesmente como sucessão unidireccional de cópias, mas sim como variação semântica num movimento aparentemente linear, algo mecânico e aparentemente despojado de registo de vontade humana.
O cobre, material utilizado quase em exclusivo, escolhido não pelo simbolismo que ganhou ao longo do tempo, fruto da mecânica da história, mas pela sua ductilidade e ambivalência estética e expressiva, foi assumido como um alfabeto não composto que é capaz de (re)absorver a inscrição plástica devolvendo-lhe novos significados.
Em suma, este trabalho parece ter-se centrado nessa ideia de dar corpo a artefactos que pudessem ser lidos como resultado de um processo que nos devolve um outro olhar sobre a identidade e a diferença, o seu próprio movimento, em fluxo ou refluxo. Estamos, pois, perante fragmentos polissémicos em sequência ordenada que não só demonstram como a diferença se pode ir desprendendo das identidades, mesmo quando elas são muito intensas, mas que também remetem intensamente para o primordial e para esse geometrismo orgânico das formas simples ou matriciais. Ou seja, estamos perante fragmentos polissémicos em interação que se replicam no signo da diferença, de forma autónoma, onde a inscrição da vontade humana parece estar ausente, deixando que o primordial se exprima e se converta em objecto artístico, colocando em transparência e em registo estético-expressivo a mecânica da produção da tridimensionalidade.
A exposição inclui ainda três estudos, à escala de 1:6 (maquete 1) e de 1:10 (maquetes 2 e 3), elaborados para o projeto «Cascais – Cidades Geminadas», como propostas para colocação em espaço público. Trata-se de trabalhos desenvolvidos num registo dinâmico de fragmentação e união, com sustentabilidade garantida por justaposição e inter-relação dos seus vários fragmentos. São objectos públicos que se propõem como novos seres emergentes e que, pela sua versatilidade semântica, convocam ao diálogo. No signo de Calvino, eu diria que estas três maquetas são de tal modo a leveza em forma de artefacto que nos convocam intensamente a esse sempre difícil exercício de subtracção de peso à nossa própria identidade para melhor captarmos o diferente. E é este exercício que permite essa rapidez que Calvino também adoptou como categoria nuclear para este Milénio. Ou seja, geminar por subtracção de peso e por rapidez. E é também essa a vocação de Cascais.
João de Almeida Santos
Maria Oliveira licenciou-se na Faculdade de Belas Artes de Lisboa, em Artes Plásticas – Pintura. Trabalha e vive na Guarda. Os trabalhos estiveram em Exposição, em 2012, no Centro Cultural de Cascais. ##
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