O LEGADO DE MAQUIAVEL
Por João de Almeida Santos
NOS INTERVALOS DA LONGA LEITURA da “Guerra e Paz” (nunca a tinha lido), do grande Lev Tolstoi, fui lendo o livro de Louis Althusser “Maquiavel e Nós” (Lisboa, VS Editor, 2021, 167 pág.s), que não conhecia. O interesse, naturalmente, era Maquiavel e não tanto o pensamento do marxista estruturalista francês, que conheço muito bem. Havia também um interesse subordinado por António Gramsci, pela proximidade que, há muito, tenho com ele e sobre o qual, há muito, escrevi o livro “O Princípio da Hegemonia em Gramsci” (Lisboa, Vega, 1986) e vários outros ensaios. Razão: as suas interessantes reflexões sobre Maquiavel, ao ponto de terem dado origem a um seu volume intitulado precisamente “Note sul Machiavelli, sulla Politica e sullo Stato moderno” (Torino, Einaudi, 1949). As reflexões sobre o novo príncipe – que, para Gramsci, é o partido político – justificavam plenamente este minha expectativa. E até porque o pensamento de Althusser é muito, mas mesmo muito, influenciado por ele. E, todavia, as incursões no pensamento de Gramsci são, aqui, a propósito de Maquiavel, diminutas, ainda que sempre muito significativas.
As duas obras que servem de referência a esta análise de Althusser, são, como não podia deixar de ser, “O Príncipe” (1513) e os “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio” (1513-1519).
I.
Se dúvidas houvesse sobre o papel de Maquiavel na fundação da moderna ciência política, a leitura deste livro resolvê-las-ia. Porque ele foi, sim, o primeiro a desenvolver a análise política do ponto de vista da “realtà effettuale”, abandonando definitivamente a imensa ganga ideológica em que sempre se ambientou a análise política anterior, muito em particular durante a Idade Média; e até, como diz Althusser, colocando a sua proposta na óptica de um começo sem compromissos com a realidade política vigente nessa Itália de que se ocupava. Uma reflexão que parte, pois, mais da experiência do que de pressupostos filosóficos ou teológicos. Na verdade, Maquiavel antecipou em muito a exigência de construir um Estado-Nação em Itália, o que, como se sabe, só viria a acontecer com o Risorgimento italiano, em 1861, no qual tiveram relevante influência personagens como Garibaldi, Cavour e Mazzini, decisivos para este importante período da história italiana. Althusser chama, e bem, a atenção para a posição de Hegel relativamente a Maquiavel e para a simetria de ambas as posições relativamente à construção do Estado-Nação, agora, num país que também só mais tarde, com Bismarck, várias décadas depois, se viria a concretizar, materializando-se, assim, na Alemanha, essa poderosa antecipação teórica do filósofo sobre o Estado representativo moderno (o II Reich, em 1871, com Guilherme I e Bismarck). Esta ideia de Estado-Nação em Maquiavel, três séculos antes, é, pois, o centro destas reflexões.
II.
Do que se trata, então, é da questão da construção do principado novo e da emergência do príncipe novo, a que acresce, depois, uma extensa análise sobre como este, em nome do Estado, se deve comportar (politicamente) e quais as condições para construir e conservar esse principado novo. Esta análise (mas também muitos outros aspectos) interessou-me porque veio juntar-se à análise que eu próprio tinha desenvolvido num capítulo do livro organizado por António Bento Maquiavel e o Maquiavelismo (Coimbra, Almedina, 2012), ou seja, no capítulo “Viagem pelas Releituras de Maquiavel”, mas também no meu livro “Os Intelectuais e o Poder” (Lisboa, Fenda, 1999), no pequeno subcapítulo sobre “Maquiavel, Frederico II e o Neomaquiavelismo”.
III.
Outro aspecto relevante, sempre muito discutido ao longo dos tempos, que merece justamente atenção particularizada de Althusser é o da relação entre a moral e a política, estabelecendo uma nítida distinção entre moral e virtù, ou seja, entre princípios morais e sabedoria ou competência política, separando-as precisamente para não contaminar, com comportamentos guiados pela moralidade, a eficácia política na gestão do poder. Ou seja, trata o poder do ponto de vista da sua concreta mecânica, independentemente do valor moral. Sabemos bem como esta separação lhe viria a merecer fortíssimas críticas e acusações, como, por exemplo, acontece no “Antimaquiavel” (1741), de Frederico II (Maquiavel, segundo ele, tem a “intenção de destruir os princípios de uma sã moral” e “o autor ignora até o ABC da justiça e conhece só o interesse e a violência” – veja-se Santos, 2013 e 1999).
Althusser, além disso, detém-se na análise das relações entre a “Fortuna” e a “Virtù” e o seu papel na construção e na conservação do principado novo, ou seja, quando ambas se conjugam virtuosamente, permitindo, assim, a instalação e a duração no tempo do governo do príncipe novo. O modelo de Maquiavel, se de modelo se pode falar, é Cesare Borgia, apesar de, a certo momento, a “Fortuna” o ter abandonado, fazendo fracassar o seu projecto e deixando, pois, de corresponder ao seu modelo: a harmonia entre o bafejo da “fortuna” e a Virtù do príncipe. Virtù que, como disse, não se confunde com rectidão moral, mas sim com capacidade e competência política na construção e no exercício do poder.
IV.
Já sobre os elementos que integram uma política virtuosa, ou seja, competente, o livro ocupa-se deles longamente (mas veja-se também Santos, 2012 e 2013), havendo que sublinhar que, para ele, a política nacional se deve apoiar sempre num exército próprio (nacional, em vez de mercenário ou estrangeiro), em leis, em astúcia e na busca permanente do consentimento popular, lá onde o príncipe deve ser virtuoso, ou seja, ser capaz de assumir, em função das necessidades, comportamentos (não pessoais, mas que visam exclusivamente a estabilidade do poder) independentes das exigências morais, exigindo-se-lhe até que seja, ao mesmo tempo, respeitado e temido. E até mesmo mais temido do que amado. Para Maquiavel, nenhum príncipe que se baseie somente na força (“in sul lione”) se poderá manter no poder, devendo, pelo contrário conjugar a força com a astúcia próprias do leão e da raposa. A palavra virtù, não no sentido moral, mas de capacidade política do príncipe, ou seja, de obediência a todos estes princípios na sua acção, é, pois, central em toda a análise, pois só ela pode garantir o sucesso na gestão do poder, desde que a fortuna não o abandone, como aconteceu com Cesare Borgia.
V.
Na verdade, Maquiavel partia de um pessimismo antropológico que derivava do seu profundo conhecimento da psicologia humana, considerando que a boa política está lá precisamente para responder às tendências e aos desvios que possam pôr em crise um eficaz exercício do poder, neste caso o principado novo, o Estado. Maquiavel integra-se, de facto, e aqui refiro a posição de Carl Schmitt, numa fileira de nomes do pessimismo antropológico que contribuíram de forma significativa para o desenvolvimento da teoria política: Hobbes, Fichte, De Maîstre, Hegel, entre outros. Este pessimismo antropológico (embora aqui, curiosamente, fosse um pessimismo de género) está bem ilustrado na sua fábula “Il demonio che prese moglie”, quando Roderigo, o arquidiabo que visitou a terra para saber a verdade sobre as relações entre homem e mulher teve de regressar subitamente ao inferno quando temia, já em França, um inesperado encontro com Onesta, a sua terrível e vaidosa ex-mulher. Uma visão também ela terrível do ser humano e em particular da mulher: melhor o inferno do que a vida terrena. Debrucei-me profundamente sobre este aspecto, o pessimismo antropológico, no meu ensaio “Da Carl Schmitt a Niccolò Machiavelli. La Politica o il Pessimismo Antropologico”, publicado num número especial sobre Maquiavel da Revista que dirigi durante oito anos, ResPublica (13, 2013, 43-61, acesso livre em http://cicpris.ulusofona.pt/pt/respublica/respublica-13/). Ora é precisamente este pessimismo antropológico, ou seja, o reconhecimento “effettuale” e analítico da natureza humana que o leva a formular os princípios e a mecânica a que todo o exercício do poder deve obedecer para obter sucesso na sua gestão.
VI.
A leitura de Maquiavel por Althusser é feita sobretudo ex parte populi, apesar de se concentrar no essencial sobre o príncipe, que até pode ser não nobre, mas simplesmente virtuoso. Esta ideia, que, de resto, defendo no ensaio sobre o pessimismo antropológico, resulta do facto de no centro do seu discurso estar a problemática da construção do Estado-Nação, só possível tendo como suporte central a ideia de povo-nação, e da consequente necessidade de o príncipe manter sempre o seu suporte. Mas também é verdade que este aspecto tem sido muito discutido, chegando-se a defender a ideia de que Maquiavel quis dar a conhecer ao povo a natureza do poder e o modo como ele era gerido ou mesmo promovendo um poder de natureza popular, sendo por isso criticado pelo seu amigo Francesco Guicciardini (Santos, 2013: 56). Ou seja, ainda que em “O Príncipe” ele diga que para se conhecer o príncipe tem de se ser povo e que para se conhecer o povo tem de se ser príncipe, numa dialéctica que parece reconhecer uma autêntica simetria de posições em relação ao poder, a interpretação de Althusser parece de facto sugerir que a sua posição seja de facto ex parte populi. E isto porque o fio condutor da obra de Maquiavel e também deste livro de Althusser é precisamente essa ideia de que a Itália necessitava de superar as divisões de carácter feudal ou as ocupações estrangeiras de parte dos seus territórios criando um Estado-Nação que a unificasse, mas que não reproduzisse à escala nacional nenhuma das formas de governo até então existentes. De algum modo, Maquiavel antecipa os contratualistas, dando um palco político inédito à ideia de povo. Daí que Althusser sublinhe, como central no pensamento de Maquiavel, essa ideia de começo.
VII.
Vale mesmo a pena ler este livro porque ajuda a melhor compreender essas duas obras fantásticas de um autor imortal que têm por título “O Príncipe” e “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio”, esta última escrita durante anos, desde o ano em que escreveu o primeiro (1513) até 1519.
VIII.
Parabéns, pois, ao Vasco Santos, não só por esta sua iniciativa editorial, mas também, como sempre acontece com as suas publicações, já desde o tempo da Fenda, pela qualidade estética da obra publicada. #Jas@12-2021.