SOBRE A MINHA PINTURA
A propósito da Exposição no Centro Cultural de Cascais 23.07/25.09
João de Almeida Santos

“O Desejo”. JAS. 2021. Quadro exposto no Centro Cultural de Cascais até 25 de Setembro de 2022.
I
A PINTURA está associada à poesia. Nasceu em terreno poético, o seu húmus. Para cada poema, um quadro. Para cada quadro, um poema. Há muitos anos que venho regularmente publicando aos Domingos, no meu site, poesia associada à pintura, em torno de um tema ou de uma história, que até pode ser a expressão de um breve, mas intenso, instante. É um delicado processo de sinestesia, perseguido com determinação, um diálogo entre duas artes, mas onde cada uma das expressões estéticas conserva a sua própria autonomia de linguagem e de narrativa. A pintura explora, com as suas categorias estéticas, ângulos de visão que resultam de uma intencionalidade temática originariamente associada à poesia, funcionando também como uma sua especial extensão ou projecção, onde a semântica conta. Por isso, é possível manter na pintura um registo semântico claramente identificável, ainda que sob forma mais ou menos alusiva a uma originária intencionalidade poética.
II
GOSTO DE EXPLORAR sobretudo cores quentes, as que melhor exprimem a carga semântica e o tónus da poesia com que a pintura converge, e de usar fundos negros, como recurso que permite evidenciar, com maior pregnância, as formas e as cores. Até porque o negro tem, no tipo de papel que utilizo, uma textura e um tom muito especiais. Parto sempre de uma mancha original, que capto através de prótese fotográfica, sempre accionada tendo em vista explorar plasticamente um determinado ângulo de visão, seja de um rosto, de um corpo, de uma flor ou de uma paisagem. E, para além do traçado central que dá forma e pregnância ao tema, procuro dar vida às figuras que nela se insinuam, originariamente ainda sob forma larvar, como se estivessem a pedir que lhes desse uma identidade definida. Um processo de gestação estética de formas inscritas originariamente num tecido ainda vagamente definido. Rostos, corpos, flores, paisagens, sim, em todas as formas ainda informes (para o fim em vista) procuro animação, vida, movimento. Parto à descoberta de figuras que, à primeira vista, são de difícil percepção, porque de pequena dimensão e de contornos indefinidos, mas que vão ganhando forma no processo de desenvolvimento da pintura. Como se se tratasse de uma construção a partir de uma estrutura molecular. E é esta animação interna da pintura que sugere os desenvolvimentos posteriores. É aqui que se centra a autopoiese plástica.
III
HÁ, NA VERDADE, UMA CONSTANTE – a presença e a influência do discurso poético na pintura. Como se o real de que parto fosse já o que a própria poesia propõe, apresentando-se a pintura como discurso metapoético, marcado originariamente, na génese, na origem pelo olhar poético sobre o mundo, sobre a vida. O mesmo mecanismo que determina a relação entre a génese dos processos noéticos e a sua ulterior formalização, a que os valida, universaliza e autonomiza. Assim acontece na pintura. Uma estética da cor e do traço geneticamente marcada pela semântica poética. A poesia funciona, assim, como uma espécie de mediação entre o pintor e o real. Um real oferecido pela sensibilidade poética. Uma “second life” de natureza poética como ponto de partida. Todas as pinturas têm, por isso, um poema associado, sem excepção. Assim, é possível detectar também uma sua função orgânica – a de tornar visível o discurso oculto da poesia, dar-lhe cor, prolongá-lo até ao ponto em que se desprende, transportando consigo, sim, a intencionalidade poética, mas exibindo-a em total autonomia, com a própria plasticidade e a própria hermenêutica. Uma relação sensorial com a realidade enriquecida pela sensibilidade poética. Poderia exemplificar com alguns quadros, nos quais se desenvolve e converte a própria fala poética. Mas essa sinestesia pode ser consultada livremente aqui, no meu site, no separador “Poesia-Pintura”, onde se encontra publicada a maior parte da minha obra poética, associada à pintura. E, todavia, não é possível dizer que a pintura seja a ilustração plástica da poesia, porque o mesmo poderia ser dito da poesia, dizendo que ela seria a ilustração discursiva da pintura. O efeito sinestésico resulta da convergência intencional e livre das duas artes em torno de um mesmo tema ou de uma história, tratados com a linguagem própria de cada arte. Também no meu livro de poesia (João de Almeida Santos, Poesia, Lisboa, Buy The Book, 2021, 438 pág.s) é possível encontrar treze exemplos desta sinestesia, estando os treze poemas associados a treze pinturas (entre as pág.s 98-99, 106-107, 114-115, 126-127, 194-195, 252-253, 256-257, 262-263, 298-299, 302-303, 306-307, 328-329, 340-341 e, finalmente, para toda a poesia, entre as pág.s 52-53). Mas nele também se encontra desenvolvida a minha concepção de arte num ensaio de estética e de introdução à poesia e à pintura ou, ainda, nas respostas aos meus leitores digitais.
IV
HÁ UM LUGAR INSPIRADOR central: o meu jardim na montanha e os horizontes que o enquadram. Ali colho grande parte da inspiração, mas interceptando sempre, por um lado, remotos, mas intensivos, fragmentos de memória e, por outro, as figuras que se insinuam na mancha original de que parto. Depois acontece o livre desenvolvimento da pintura em obediência aos meus próprios critérios de beleza e de harmonia, mas também às exigências semânticas que respondem ao chamamento poético. Não concebo a arte sem semântica, tal como não concebo a poesia sem música, mas também não compreendo a subordinação da forma e da totalidade estético-expressiva às puras exigências da semântica. É como se se tratasse de camadas que se desprendem de uma mesma matéria orgânica, ganhando autonomia e sentido próprio, embora contaminadas pelo próprio processo criativo e pela sua palingénese.
V
NÃO ME FILIO em nenhuma corrente estética (que me perdoem os encartados), por uma única razão: o real é o centro do meu discurso estético, ainda que, na pintura, seja um real já portador de sentido conferido pelo olhar poético do pintor. Conjugando pintura e poesia procuro interceptar e interpelar o observador, o fruidor, com uma clara intencionalidade. É uma interpelação complexa onde poesia e pintura cooperam para intensificar o chamamento e a convocação para a experiência estética. Mas também é possível detectar alguma intertextualidade na pintura. Por exemplo, a presença, em alguns quadros, de citações, de fragmentos klimtianos (“Uma Casa no Jardim”). Um autor, Gustav Klimt, que me seduz, desde sempre.
VI
MAS O MELHOR é deixar que a pintura fale por si, nestes trinta e dois quadros que agora exponho no Centro Cultural de Cascais, até 25 de Setembro, e que convido a visitar (e com visita guiada se me for solicitada).