A CENSURA NO PARLAMENTO – UM OXÍMORO
Por João de Almeida Santos
O MEU ESPANTO começou quando o então Presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, censurou o deputado André Ventura por ter usado a palavra “vergonha” num discurso parlamentar. Fiquei atónito e incrédulo sobre a natureza das funções do Presidente da Assembleia da República (AR) e muito mais sobre as prerrogativas discursivas dos deputados no legítimo exercício das suas funções. Mas não escrevi sobre o assunto, tendo-o tomado como um mero episódio circunstancial. O que, agora, tomando em consideração o que se seguiu, já me parece não ter sido m episódio isolado. Vou, pois, ao assunto por dever de cidadania.
I.
“O SENHOR DEPUTADO usa a palavra vergonha e vergonhoso com demasiada facilidade, o que ofende todo o Parlamento e ofende-o a si também”, afirmou o Presidente da Assembleia, em Dezembro de 2019, a propósito de uma crítica de André Ventura a um projecto de linha de crédito do Governo. O deputado ainda quis ripostar, em defesa da honra, invocando “a liberdade de expressão”, mas o Presidente impediu-o: “não há liberdade de expressão quando se ultrapassa a liberdade dos outros, que é aquilo que o senhor faz demasiadas vezes. Não tem a palavra“. Mais claro do que isto não é possível. Não é uma norma regulamentar que impede o deputado de falar. É um castigo pelo alegado comportamento verbal do deputado. Castigo infligido por uma paternidade moral: não tens liberdade porque te excedes, o que até a ti envergonha (“ofende-o a si também”). Este episódio mais parece ter acontecido numa escola primária do que num Parlamento de representação nacional.
II.
ESTA ATITUDE do Presidente da AR ultrapassou de longe o código de comportamento linguístico exigível a um deputado pelo bom senso, se é que é admissível algum código que não seja o que lhe dita a consciência e as superiores funções de exercício da soberania em nome da Nação. Na verdade, os deputados são titulares de soberania em nome da Nação (e não do círculo eleitoral que os elegeu, do partido que os propôs ou do Presidente da Assembleia da República) e, por isso, possuem prerrogativas de carácter verdadeiramente excepcional, como, por exemplo, o não poderem ser removidos da função, excepto nos casos previstos pela lei (mandato não imperativo) ou pela constituição (como é o caso da incrível alínea c) do art. 160) e possuírem imunidade, ou seja, não poderem ser perseguidos pela justiça pelo uso da palavra no exercício da suas funções (n.1 do art. 157 da CPR: “Os Deputados não respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das suas funções”). De resto, a constituição fundacional do sistema representativo, a francesa de 1791, já prescrevia o seguinte sobre a natureza do mandato:
“Les représentants de la Nation sont inviolables: ils ne pourront être recherchés, accusés ni jugés en aucun temps pour ce qu’ils auront dit, écrit ou fait dans l’exercice de leurs functions de représentants” (Art. 7, Section V, Cap. I, Título III).
Se combinado, este artigo, com o artigo 10 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aplicável aos cidadãos em geral, note-se (“Nul ne doit être inquieté pour ses opinions, même religieuses, pourvu que leur manifestation ne trouble pas l’ordre public établi par la loi”), o lugar do deputado fica ainda mais blindado no que respeita à liberdade de opinião. “Même religieuses” – atente-se no complemento, vista a importância que a religião tinha na altura em que a Declaração foi redigida, para indicar a insindicabilidade da opinião, não já dos deputados, mas tão-somente dos cidadãos. Pois não parece ser este o entendimento de dois Presidentes da AR, o actual e o anterior, tão empenhados em vigiar o comportamento linguístico dos deputados. Entendimento profundamente errado porque fere gravemente a liberdade e a função de representação.
III.
O TERRENO PRIMORDIAL do combate político é o da sociedade civil, o confronto entre partidos (organismos privados) nas competições eleitorais, em campanha eleitoral ou em “permanent campaigning”, ou seja, na afirmação regular das diferenças em matéria de valores, de protagonistas e de programas, e, depois, já no parlamento, entre os deputados e os grupos parlamentares, num plano onde o estatuto dos protagonistas se alterou em upgrade porque, uma vez eleitos, passaram a ser portadores de um mandato não imperativo e a serem titulares de soberania nacional (a soberania reside na nação – ou no povo, consoante a constituição se aproxime mais ou menos da originária matriz liberal – e o Parlamento é o principal órgão de soberania). O Presidente da Assembleia da República, que é também deputado, o que deve fazer é garantir a regularidade, a normalidade e a eficácia dos debates e o funcionamento do princípio da maioria para a produção de deliberações válidas universalmente. O seu não é um papel de censor moral ou de vigilante da argumentação parlamentar, que é livre. No parlamento, as posições políticas devem ser afirmadas ou rebatidas pelos deputados e pelo grupos parlamentares e não pelo Presidente da AR, que deve ser supra partes, garantindo a sua autoridade por via da isenção e não enquanto paladino de causas ou apóstolo da moralidade parlamentar. Ser eleito Presidente do Parlamento não o investe de uma condição oracular que se sobreponha à moralidade que cada grupo parlamentar exiba, procurando dar voz ao próprio eleitorado e, assim, juntamente com outras e diferentes vozes, cooperar para que o parlamento exprima realmente na sua totalidade o país que representa.
IV.
MAS O QUE SE TEM VINDO A VERIFICAR é uma escalada de controlo sobre a linguagem usada em geral pela cidadania (a cavalgada do politicamente correcto) e agora, ao que parece, pelos próprios deputados, a ponto de já nem poderem usar a palavra “vergonha”, banida da linguagem parlamentar, ou de defenderem livremente os seus próprios programas políticos, os mesmos que propuseram ao eleitorado e que contribuíram para a atribuição de mandatos parlamentares (neste caso, em número, aliás, significativo). Agora é a vez do novo Presidente continuar e aprofundar conceptualmente essa prática dando regularmente lições aos deputados sobre o que é politicamente correcto e o que não é, sobre o que é aceitável e não é, chegando mesmo a pronunciar-se sobre o programa e as propostas políticas dos deputados e das respectivas formações políticas. Em Portugal não há culpa colectiva, diz, e, portanto, os deputados ficam impedidos de se referir politicamente de forma crítica a grupos sociais. Em particular o “Chega”, mas o PCP, partido dos trabalhadores, e o Bloco que se cuidem ao referirem-se criticamente, no Parlamento, por exemplo, aos capitalistas, ao grande capital, aos latifundiários ou a toda uma classe, a burguesia, atribuindo-lhes culpas (numa visão estruturalista da história). Mas o que, verdadeiramente, me parece é que o senhor Presidente, ilustre professor universitário, está a confundir o plano jurídico (onde não há, de facto, culpas colectivas) com o plano político, onde os grupos sociais são objecto de atenção política ou mesmo referência, quer positiva quer negativa, dos partidos políticos, representando, estes (alguns), classes ou grupos sociais ou tendo-os como adversários, como nos exemplos que acima referi. À censura linguística segue-se agora a censura conceptual e programática. Vejamos outro caso.
V.
JULHO DE 2022: uma intervenção política onde o deputado André Ventura expôs os seus pontos de vista sobre uma matéria em debate, a lei de estrangeiros, foi criticada directamente pelo Presidente da Assembleia. Fui ouvir atentamente a intervenção e não considero que ele tenha ultrapassado qualquer limite aceitável na sua intervenção, tendo exposto a posição do seu partido sobre a matéria sem usar na forma palavras ofensivas, mas tão-só de forma clara e firme a sua posição política sobre a matéria. Disso não tenho a mínima dúvida, mesmo discordando de André Ventura. A intervenção de Augusto Santos Silva foi, a meu ver, inoportuna e inaceitável porque violou regras básicas de funcionamento da Assembleia, designadamente a liberdade de palavra de um deputado e, pior do que isso, a liberdade de defesa do próprio programa político do seu partido, que, de resto, é um partido legal, nunca tendo sido a sua existência posta em causa pelo Tribunal Constitucional. A saída do grupo parlamentar do CHEGA, o propósito de este grupo parlamentar censurar na Assembleia o Presidente, a reunião com o Presidente da República e a declaração de Ventura de que este tipo de intervenção do Presidente do parlamento aumentará exponencialmente o conflito parlamentar, bastariam para demonstrar que, de facto, Augusto Santos Silva não está a interpretar bem o papel de Presidente da Assembleia e nem sequer a ganhar autoridade enquanto tal (no sentido romano da auctoritas por virtus). Atendendo às suas anteriores declarações, nomeadamente a de 2009, e que definem bem a personalidade do agora Presidente, não tardará que, seguindo coerentemente o seu trilho, fará o mesmo ao Bloco e ao PCP. Transcrevo, para que não haja dúvidas, as palavras de Augusto Santos Silva em Fevereiro de 2009:
“Eu cá gosto é de malhar na direita. E gosto de malhar com especial prazer nestes sujeitos ou sujeitas que se situam de facto à direita do PS, que são das forças mais conservadoras e reaccionárias que eu conheço e que gostam de se dizer de esquerda, ou plebeia ou chique. Estou-me a referir ao PCP e ao Bloco de Esquerda” (Fev. 2009).
Ainda por cima, estes partidos, na leitura política que fazem da história, atribuem culpas colectivas, ou seja, culpam os capitalistas e até mesmo concretos Estados (o americano) pelo estado lamentável a que o mundo chegou. É, por isso, de esperar que o novo Presidente não tarde a censurar as posições destes partidos quando eles entrarem por estas vias argumentativas. A superioridade moral do actual Presidente da Assembleia da República faz-me lembrar, agora, outras superioridades morais que o próprio PS sempre combateu.
VI.
O QUE PARECE é que o politicamente correcto já entrou no parlamento em grande estilo pela mão dos presidentes da AR, não só enquanto intérpretes institucionais da superioridade moral das suas próprias posições políticas, mas também enquanto actores que a impõem no terreno institucional do máximo órgão da democracia representativa. E não me admiraria se, animados pela verve investigativa da senhora procuradora-geral do progressismo moral, e inspirados no seu inacreditável documento “Acusar a Ucrânia de ‘genocídio’ e ‘limpeza étnica’ é discurso de ódio?” (de Abril de 2022, nas páginas do DN), daí se passasse à tentativa de criminalização das posições políticas dos partidos da ala mais à direita ou da ala mais à esquerda do hemiciclo. Por enquanto, o bombo da festa é o CHEGA, com o resultado que conhecemos, ou seja, com o crescimento eleitoral que em pouco tempo conseguiu, mas, no futuro, a campanha moralizadora poderá chegar ao outro lado do hemiciclo. E nem sei como é que não chegou quando o PCP tomou aquela posição sobre a invasão da Ucrânia.
VII.
O QUE ME ESPANTA é que sobre este assunto não tenha havido até agora uma vaga de críticas implacáveis que levem o Presidente da Assembleia da República a mudar radicalmente de registo, cedendo as críticas e o combate ao radicalismo aos outros 119 deputados do PS. E também me espanta e assusta que estes mesmos deputados, em vez de serem eles a assumir as críticas e o combate, se limitem a aplaudir e a hossanar a ilegítima injunção do Presidente da AR.
De resto, até numa leitura de tipo táctico para defesa da democracia, haveria que evidenciar que o Parlamento é o lugar onde as diferenças de posição devem ter lugar em liberdade, devem ser livremente argumentadas e sujeitas ao veredicto dos deputados. Só assim se evita que a diversidade se transforme em conflito de rua e a diferença de argumentação se transforme em imposição por violência física. Por isso, não me parece que esta seja a melhor forma de defender a democracia representativa e o seu órgão máximo, o Parlamento, a sua capacidade integrativa e de conversão do conflito em livre e responsável debate e deliberação parlamentar.
Por outro lado, ao introduzir a mordaça parlamentar, o que se está a fazer é não só a desqualificação do que se diz querer defender, minando até a sua própria eficácia enquanto instituição integrativa das diferenças políticas, mas também uma ulterior redução do valor do mandato, já tão diminuído pelos próprios critérios de selecção dos candidatos a deputados que têm vindo a ser adoptados pelos partidos, em particular pelos dois maiores partidos.
Bem sei que o politicamente correcto está a chegar a todo o lado, incluindo a partidos políticos que têm na sua matriz a ideia de liberdade, como o PS, e agora ao próprio Parlamento. Parece estar a irromper com grande força uma nova ideologia de cariz moralista com tendências hegemónicas, a restauração de uma “grande narrativa” que pretende determinar, com poderes sancionatórios (em muitos casos já através de dispositivos legais), o nosso comportamento linguístico quotidiano. Pelos vistos, esta tendência já chegou ao topo da instituição parlamentar e já inclui o comportamento dos representantes da Nação. Mas não creio que, assim, esteja a ser respeitada a natureza do próprio sistema representativo e a matriz liberal que o caracteriza desde que foi instituído.
VIII.
MAS A VERDADE é que quem tem vindo a beneficiar de tudo isto são os partidos que são alvos privilegiados (enquanto casos exemplares a combater de todos os modos) desta violência censora, subindo, por esta via, ao topo da agenda pública e aumentando a sua notoriedade. Estes partidos conhecem bem a teoria do agenda-setting e sabem que o que importa é manter-se sempre no topo da agenda, qualquer que seja a razão por que isso acontece. A extrema-direita é a que mais tem beneficiado desta escalada da vigilância moral sobre a linguagem pública e o resultado está a aparecer de forma preocupante. Basta analisar os seus programas, a sua linha de combate e as suas imputações para ver que esta é, a par da crítica do liberalismo, o seu principal alvo. Alvo que identificam erradamente com a matriz liberal da nossa civilização e que está bem mais próxima dos identitários e dos orgânicos do que parece. Por exemplo, em Itália, mas também em Espanha a extrema-direita tem vindo a somar rápidos e inesperados sucessos eleitorais e, num dos casos, Itália, será provavelmente muito em breve governo. E na Rússia do senhor Dugin. E na França de Alain de Benoist, o seguido teórico da extrema-direita. E o mesmo acontecerá em Portugal se esta cavalgada continuar sem que o PS pestaneje ou até aplauda entusiasticamente com todas as mãos que tem no Parlamento.
Muito linear e bem exposto. Concordo com a forma e com o conteúdo.
Parabéns.
Rui Valente
Obrigado, Rui. Um abraço.