CONSIDERAÇÕES SOBRE A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. JAS. 08-2023
SIM, TODOS FALAM DELA, DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL (IA). A propósito e a despropósito. Mas o facto é que já todos a usam, embora muitos, a maior parte, não saibam. As tecnologias já a incorporam. Sobre ela há, como sempre, optimistas e pessimistas. Estes, são os que alertam para os perigos da inteligência artificial. Sobretudo, agora, que o perverso algoritmo nos estuda, nos desenha o perfil e nos comanda a partir da e na rede. Agora, que nos vigia e nos vende ao marketing 4.0 e às grandes companhias para nos transformarem em compradores involuntários, porque sabem quem somos, o que fazemos e do que gostamos. Porque conhecem os nossos perfis individuais, fornecidos pelas grandes plataformas digitais e criados a partir da nossa vida na rede. Um serviço que vai dos produtos industriais à política. Alguns até já falam, a propósito da troca de direitos por serviços e vantagens tecnológicas, de “mercantilização da cidadania”. E outros, também a propósito, falam de “engenheiros do caos” e de “política quântica”. Uma realidade que está ao alcance de todos, os que, de um modo ou de outro, armados de smartphone, já a frequentam, misturando o velho mundo com o novo mundo digital ao alcance de um clique. Há deslumbramento, mas também já há queixas. Por exemplo, a de perda de privacidade.
1.
É verdade. Mas o que é curioso é que são os que estão permanentemente a exibir-se nas redes sociais, publicando o que comem, o que bebem, o que vestem, onde vão, onde estão, com quem andam, o que fazem e o que não fazem, que se queixam, clamando pela protecção da privacidade violada e exigindo medidas duras contra o “capitalismo da vigilância”. Depois, há os que falam, entusiastas, da chamada arte robótica produzida pela IA, esquecendo o papel do sentimento na arte (veja-se o último livro de António Damásio, publicado recentemente em Portugal), designadamente do sentimento de perda, de melancolia, de paixão, de dor. Alguns, instalando-se nuns riscos feitos por uns bonecos movidos a pilhas, e a que chamam robots, não dão atenção à porcaria estética que daí pode resultar, mas tão-só à importantíssima e robótica assinatura, a única coisa que interessa: coisa feita por “robot” vale por si, não importa a qualidade do produto (ou até a qualidade dos bonecos desenhadores). A coisa nem é tão estranha como parece, depois de um tal Maurizio Cattelan ter colocado, com adesivo, uma banana numa parede, chamando-lhe obra de arte e recebendo por isso 107 mil euros. E, tão importante como isso, seguido logo pela crítica, inclusivamente portuguesa, a confirmar que o importante, o que conta, é a assinatura. Se para uns “l’important c’est la rose”, para outros, sim, o importante é a assinatura. Não importa de quê ou em quê. Mas, na verdade, o que resulta desta posição é uma transferência do valor da obra de arte para o autor, transformando a autoria em autoridade. Mas autoridade baseada em quê? Numa banana colada numa parede ou numa sanita feita em ouro de 18 quilates? Se o que vale é a assinatura, trate-se de uma banana, de uma sanita de ouro ou de uns riscos feitos ao calha por uns bonecos que se movem no interior de uma caixa, então, no limite, até se poderia prescindir da própria obra de arte. Bastaria, para tal, simplesmente uma assinatura numa folha em branco. Como o filme do outro, “Branca de Neve”, só que em vez de ser o negro do ecrã seria o branco. “Tive uma branca”, dirá alguém depois de visitar uma exposição de assinaturas. Nada. Uma exposição de nada. Fossem, ao menos, as assinaturas bonitas. Mas nem a forma da assinatura conta. Esta questão também se põe para a chamada arte robótica, onde o que nela vale é a autoria, é o processo de execução e não o produto final. A coisa vale logo pela adopção do próprio nome. Arte robótica, mesmo que não se trate sequer de robots, mas simplesmente de uns coisos alimentados a pilhas. Como no outro caso da avaliação da obra, a banana, somente pela assinatura. Ou até pelo material de que a obra é feita: a sanita de ouro de 18 quilates (“America”) da autoria de Maurizio Cattelan, entretanto roubada do Palácio Bleinheim, não certamente pela beleza, mas pelo valor do material, cerca de 5,5 milões de euros. A coisa não é muito nova desde que o Duchamp, em 1917, apresentou como obra de arte um mictório, um urinol, um “vespasiano”, como se diz em Roma. Coisas de escatologia. Como o livro da outra, que está cheio de narrativas fecais.
O nome do artista, seja ele humano ou robot, é que decide do valor e até do significado da obra. A aura transmigrou da obra para a singularidade irrepetível do autor. E a autoria transformou-se em autoridade. A autoridade do nome, conhecido e reconhecido, é o selo de reconhecimento do que quer que seja. Ou até do que quer que não seja. Levando isto à suas consequências, seríamos levados a concluir por mais uma transmigração: da arte para a publicidade. Não interessa o produto, mas a marca, a autoridade reconhecida da marca. Sim, vivemos no mundo do branding e isso é que conta. O mesmo vale para os autores, que são, afinal, marcas. A obra de arte reconhecida como pertencendo à comunidade da marca. United Colors of Benetton (veja o meu Homo Zappiens – Santos, 2019: 100-114). Se for um desconhecido a produzir essa obra, apontam-lhe o dedo e dizem: este gajo é tonto. A marca é sinal de garantia, de qualidade e de sentido. E a publicidade faz a marca.
2.
Mas regressemos à IA.
“GPT-4 is more creative and collaborative than ever before. It can generate, edit, and iterate with users on creative and technical writing tasks, such as composing songs, writing screenplays, or learning a user’s writing style”.
A IA faz música, escreve guiões, aprende estilos de escrita dos utilizadores, edita e desenvolve tarefas de escrita técnica e criativa, interagindo com os usuários. Estamos, pois, no plano sofisticado da inteligência e da criatividade. Algo verdadeiramente novo. Sim, mas daí a mudar o paradigma vai uma longa distância. Deixou a tecnologia de ser um meio, um instrumento do ser humano para passar a substituir-se-lhe e a ser ele a ditar os próprios fins? Não creio.
Mas o debate sobre o papel da tecnologia na história já é antigo. Houve sempre quem defendesse a centralidade da tecnologia na história e a fizesse mesmo depender dela. Por exemplo, em campo marxista, Bukhárine, o mais sofisticado dos marxistas ortodoxos, que Lukács, outro marxista, viria a criticar por ele atribuir à “tecnologia uma posição demasiado determinante”. O mesmo vale para a posição crítica de Gramsci, também em relação a Bukhárine, em relação ao papel da tecnologia na história (Santos, 1986: 40-55). A verdade é que a tecnologia, mesmo na era do algoritmo, da inteligência artificial, é resultado da obra humana e está subordinada à finalidade humana, por mais sofisticada que aquela seja. Marx, sobre a sociedade industrial emergente em Inglaterra, colocou o problema no plano da contradição entre a crescente e concentrada propriedade privada dos meios de produção e a crescente e alargada socialização do trabalho. Não era na tecnologia que residia a contradição que haveria de mover a história, mas a apropriação privada dos resultados do trabalho socializado. Mas não há dúvida de que a tecnologia é muito importante e pode ser progressiva ou regressiva. Exemplo: a energia atómica – a da bomba ou a que nos fornece energia. Os fins são postos pelo homem. E o mesmo vale para a arte. E numa escala de muito maior intensidade. Quem viu o filme de Stanley Kubrick, “2002 – Odisseia no Espaço” teve nele uma amostra deste tema, com o que aconteceu com a rebelião do supercomputador Hal e com o triunfo dos humanos, ao conseguirem desligá-lo, revelando-se, todavia, neste final, uma sua qualidade emergente que nos deve pôr a pensar e de sobreaviso: o sentimento (medo) que acabou por se revelar quando Hal já estava a sentir os efeitos da sua morte, por desconexão. Mas também o filme “AI – Inteligência Artificial”, de Spielberg, é um filme sobre robots e sentimentos: David, o robot, decide morrer com a amada mãe. Mas são filmes feitos por seres humanos que se projectam nas máquinas como antes se projectavam nos deuses, pondo neles as suas próprias qualidades, positivas e negativas.
3.
É, pois, um pouco estranho que um artista possa identificar-se com uma arte que não seja sua, nem por si assinada, reduzindo-se a simples capataz da fábrica robótica de arte, vivendo disso, enquanto artista, ou seja, vivendo do trabalho artístico dos chamados “robots”, os novos “gorilas amaestrados” da arte. Sim, claro, ele é o proprietário dos meios de produção estética. Então, é proprietário, não artista. Este (aparente) retirar-se do processo, entregando-o a uns bonecos movidos a pilhas, significa que retira a essa arte aquilo que o Nietzsche chamava “espírito apolíneo”, o sentimento, a libido, a emoção, o instinto, a perda, o fracasso, a nostalgia, a melancolia, tudo aquilo que move o ser humano a procurar uma resposta superior para o desajustamento existencial sofrido nas circunstâncias de vida. Se visitarmos as vidas dos maiores poetas e pintores de sempre é isso que encontraremos. Emil Cioran propunha uma poética do fracasso, coisa que os robots não conhecem. Não foi o Hal que atribuiu o erro, não a ele, mas aos humanos? É claro que a tecnologia tem hoje um papel fantástico na arte, na música ou na pintura, por exemplo. É cada vez mais frequente grandes pintores trabalharem com o IPad. Por exemplo, David Hockney. E muito mais na música, que pode ser gerada por computador ou pelo já mencionado GPT-4. Outra coisa é retirar-se do processo deixando que sejam as máquinas a conceber e a executar a obra de arte. Arte não humana. Mas talvez isso seja um oxímoro. Talvez seja mesmo a negação da própria ideia de arte quer no sentido etimológico quer no sentido histórico. A questão pode pôr-se, por exemplo, em relação à poesia. Um robot que faz poesia. Sim, faz, mas recorrendo à base de dados e recombinando poesia já existente. Faltar-lhe-á sempre o húmus onde a poesia germina, nasce, e que é sempre do foro humano. A poesia não é simples artifício, um exercício simplesmente retórico cuja eficácia dependa da beleza das suas formas. Não, ela responde a imperativos existenciais do poeta. Imperativos que não existem numa máquina por mais sofisticada que ela seja. A não ser que comecem a aparecer por aí outros Hal ou outros David. E aí o caso muda de figura.
4.
Mas é verdade que a inteligência artificial hoje já constitui uma gigantesca frente de atenção social. O ChaGPT ao alcance de analfabetos que se transferem para esta realidade e que julgam já estar a viver no século XXII. Escrevem textos como os outros produzem obras de arte. A lógica é a mesma. Só falta, uns e outros, assumirem-se também como intelectuais, escritores, artistas e produzirem arte por “outsourcing”. O ChatGPT faz e eles exibem as obras como se fossem eles os autores, dizendo que a parte da execução é não humana, escrita não humana. A IA liberta-nos de tudo, até de pensar e de fazer. Estes são os integrados. Mas há também os apocalípticos, que vêem na IA a catástrofe, o fim do mundo e uma nova escravatura onde os senhores serão as máquinas. Uma nova dialéctica senhor-escravo. Pelo caminho já vão detetando um progressivo domínio do algoritmo na chamada “sociedade algorítmica”, o que determina, desenha e controla comportamentos. Chamam-lhe “capitalismo da vigilância” e nele só vêm o negativo, a exploração, o domínio e a manipulação. São os novos apocalíticos, os sucessores dos que viam nas tecnologias uma ameaça mortal para o mundo humano. Aconteceu com a industrialização, aconteceu com a televisão e acontece agora com a inteligência artificial.
Qualquer destas reacções são negativas, embora ambas chamem a atenção para aspectos que há que ponderar. Arte não humana? Sim, mas não é para levar muito a sério. Arte com uma importante componente digital e de novas tecnologias? Sim. E é para levar a sério. Integrados? Sim, mas é preciso dizer-lhes que têm de aprender muito, até a usar as novas tecnologias, a controlar o seu uso e a posicionar-se em relação a elas. Apocalípticos? Sim, muito do que dizem é real e é necessário proceder a um “constitucionalismo digital” que estabeleça fronteiras ao uso das tecnologias digitais pelas grandes plataformas. Mas também é preciso dizer aos queixosos digitais que não podem lamentar-se de as plataformas digitais tomarem conhecimento e desenharem perfis com base no que eles exibem permanentemente e sem qualquer pudor nas redes sociais. Exibicionismo digital nas redes sociais e que tem um preço.
5.
Posto isto, que viva o progresso científico e tecnológico e que se reconheça que a tecnologia se verifica hoje numa esfera altamente sofisticada como é a da inteligência, do tratamento e do processamento de dados a um nível que nunca se viu. A rede e as TIC talvez representem a mais extraordinária revolução tecnológica que se verificou na história da humanidade. Mas do que se trata é de tecnologia ao serviço do homem. Como todas as tecnologias, também esta pode ser utilizada para fins bons ou para fins maus. Pelos humanos. E é preciso lembrar que as TIC nasceram como tecnologias da libertação, mas que, depois, tiveram um desenvolvimento que, sim, poderá ter aspectos negativos ao transformar aqueles que eram os clientes originários em pura matéria-prima que, depois de trabalhada, é vendida às grandes companhias que colocam produtos nos mercados mundiais e até às forças políticas que aspiram a governar os respectivos países. Já há exemplos disso, como se sabe.
A questão que agora se põe, e que o filme de Kubrick suscita, é se as máquinas poderão um dia ser elas a pôr-se os fins, eventualmente por exigências existenciais, prescindindo da vontade dos humanos. E aí, sim, teríamos o apocalipse e a confirmação dos receios dos apocalípticos numa dimensão que, nos anos ’60, nunca Umberto Eco poderia prever. Sim, então, poderia haver arte não humana e o mundo seria mesmo outro – um mundo não humano, sim, mas onde os robots não aceitariam trabalhar em “outsourcing”. Até lá não me parece.
Referências
SANTOS, J. A. (1986). O Princípio da Hegemonia em Gramsci. Lisboa: Vega.
SANTOS, J. A. (2019). Homo Zappiens. O Feitiço da Televisão. 2.ª Ed. Lisboa: Parsifal.

Gostei imenso do artigo. Boa reflexão sobre o tema! Como sempre as grandes invenções, ou descobertas historicamente sempre tiveram defensores e detratores; quem profetizasse êxito e fracasso ou desastre.
Parabéns!
FF
Obrigado, Senhor Engenheiro. Em breve (Outubro) publicarei um livro, “A Política na Era do Algoritmo”, onde retomo este tema. Gostei de o ver por aqui. Um abraço.
Doutor Almeida Santos, muito bom dia! Eu estou sempre atento às suas eruditas publicações. Abraço