Artigo

A TEOLOGIA POLÍTICA DE LUÍS MONTENEGRO

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”.JAS. 11-2023

TRÊS VEZES INVOCOU o nome de Deus (em vão) para esconjurar a ameaça do maléfico, travestido de radicalismo, de imaturidade e de geringonça. Cristãos-novos perante os verdadeiros cristãos, os que o são por convicção. Uma imagem enigmática nos tempos que estamos a viver, no Médio Oriente. E também o inesperado regresso do gonçalvismo sob forma de neogonçalvismo, primeiro, pela mão do radical António Costa e, agora, pela do ainda mais radical Pedro Nuno Santos, que já fora ajudante na obra. A infame traição ao PS de Mário Soares. Tudo comunistas e radicais dos quais o Divino haverá de proteger os portugueses. Já bastaram quatro anos de neogonçalvismo apostado em varrer para o lixo da história o magnífico património deixado por Passos Coelho, Paulo Portas e por si próprio! McCarthy não diria melhor.

1.

O líder do PSD, partido liberal (em economia) e personalista (em atitude), Luís Montenegro, tentou ultrapassar, com este seu neomaccartismo, André Ventura pela direita, ciente de que corre um enorme risco de ser ver eleitoralmente acossado pela direita radical (ele tem visto as sondagens, a última das quais dá ao CHEGA 16%), arriscando-se, caso ganhe as eleições, a não conseguir formar um governo sem o apoio do partido de André Ventura. Criou dois muros (à direita e à esquerda) e elevou o 10 de Março a uma exigência equivalente à de um novo 25 de Novembro, com o PSD a salvar a democracia dos empedernidos comunistas, bloquistas e socialistas – todos eles, afinal, farinha do mesmo saco, o saco gonçalvista. Os que também, e ainda por cima, irão fazer como o outro que, antes, exibia um sorrisinho de plástico para, depois de ter o poder na mão, mostrar o que efectivamente era: um “animal feroz”. Já não bastava a Pedro Nuno Santos ter encarnado na figura de Vasco Gonçalves como agora ainda lhe acrescem as garras do “animal feroz”.  Já uma vez se falara da chegada do diabo. Agora volta-se a falar do mafarrico, mas de um ser ainda mais feroz e infernal, numa conversa que cheira mesmo a mofo. E quanto maior for o mal maior terá de ser a cura. Mas, serenemo-nos, Luís Montenegro até é bastante alto (parece que tem 1 metro e 86 cms). E não sei se, também ele, foi ungido pelo Senhor.

2.

Depois, lá mais para o fim do dia, antes do encerramento do Congresso, e depois da unção (essa, sim) de dois dos santos padroeiros do PSD, Leite e Cavaco, chega o discurso de enamoramento eleitoral para os jovens, os idosos e pensionistas, os agregados que pagam IRS, os professores. Temos muito para redistribuir e até já fizemos as contas. Não vos dizemos quanto poupareis em IRS, a não ser aos jovens, mas ficai seguros de que até ao oitavo escalão os vossos bolsos serão (ainda assim) menos esvaziados pelo fisco. E vós, Professores, tereis o que não vos foi dado. E vós, pensionistas, acabareis lá mais para a frente a ter na pensão o mesmo que os do salário mínimo irão receber. Com carreira contributiva ou não, tereis uma pensão decente. Todos. Ou quase todos. Pensando melhor, só alguns, os que mais precisarem. Veremos caso a caso. Mas agiremos no signo de santo Abrunhosa – a quem agora pisco o olho – iremos “fazer o que ainda não foi feito”.

3.

Portanto, o que temos é, em primeiro lugar, um discurso neomaccartista, que prescindiu do facto de Portugal ter tido, sem convulsões sociais, durante quatro anos, um governo do PS (digo, do PS), apoiado no Parlamento pelo Bloco e pelo PCP, que procurou corrigir o virtuosismo neoliberal do governo de Passos Coelho e de Paulo Portas; de, em seguida, o PS ter ganho as eleições (2019) e de, pouco depois, em 2022, os eleitores até terem dado ao gonçalvista António Costa a maioria absoluta. Tudo excessos que só um novo 25 de Novembro, capitaneado pelo oficial-político Jaime Luís Neves de Montenegro, poderá corrigir definitivamente.

4.

O PS, com Pedro Nuno Santos, entrou definitivamente na era da revolução e só Deus poderá salvar os portugueses de o ter a chefiar um governo.  As eleições internas acabaram antes de começar, para Montenegro. Como quem diz:  elejam-no e verão o que vos espera! Mesmo assim, qualquer um dos três que as disputam é farinha do mesmo saco, ou seja, está irremediavelmente contaminado pelo neogonçalvismo que entrou prepotentemente nas casas dos portugueses e que urge esconjurar com um novo 25 de Novembro.

5.

Se isso for feito, a 10 de Março os portugueses serão objecto de fartas prebendas do Estado, numa vasta redistribuição de recursos financeiros aos jovens, aos idosos, aos reformados, aos professores e, como dizem os italianos, “chi più ne ha, più ne metta”. Vota em mim e eu recompenso-te financeiramente, nem que seja preciso voltar aos 130% de dívida pública (como no tempo das contas certas da dupla Passos&Portas).

6.

Confesso que o que aqui vejo é mais do mesmo, mas em excesso: neomaccartismo, que julgava ter sido enterrado no final dos anos 50, quando o seu artífice se finou; “justiça distributiva”, por um partido que se diz liberal em economia (disse-o Montenegro) e que, por isso, o que deveria propor era uma “justiça comutativa”. Mas, claro, em período eleitoral a regra de ouro é anunciar farta redistribuição, em homenagem ao Estado-Caritas e à hegemónica ideologia da caridade. É exibir uma atitude altamente personalista, a verdadeira identidade do PSD de Montenegro. Depois se verá, analisadas melhor as contas que os neogonçalvistas, os cristãos-novos das “contas certas”, nos deixaram.

7.

O discurso de Luís Montenegro confirma aquilo que vinha demonstrando ao longo da sua liderança: estar subordinado a um discurso pela negativa, exibindo aquilo a que chamo “política tablóide”, agora temperado por anúncios de “bodo aos pobres” para captação de votos em sectores sociais muito relevantes e numerosos. Vários anúncios: novo contrato social, ética pública, eficiência do Estado, recuo do Estado na economia, harmonia entre fronteiras abertas e fronteiras fechadas, gratuitidade e universalidade das prestações do Estado em relação às creches e ao pré-escolar. Sem dúvida, boas intenções. Mas o canto da sereia está lá na política redistributiva, para fins eleitorais… por um partido liberal em economia. A neblina na identidade política deste partido teima em persistir…

8.

O segundo discurso, no meu entendimento, poderá ser descodificado a partir de uma leitura atenta do primeiro: quem assim fala (no primeiro) não é credível (no segundo). Por uma simples razão: não há seriedade no discurso. E não há seriedade porque ao fazê-lo se esquece que Portugal foi governado entre 2015 e 2019 por um governo neogonçalvista sem que Deus se tenha dado ao trabalho de livrar os portugueses de tamanha calamidade. E a prova cabal da tolerância divina reside na atitude benevolente e até (muito) comprometida de um crente fervoroso que tinha o poder e o dever de o fazer, em nome do Divino, se fosse realmente o caso: o Presidente da República. Como se sabe, a cólera divina não se abateu sobre esse governo apóstata e, mais grave ainda, por duas vezes permitiu que o povo o mandasse governar o país. Uma das vezes até com maioria absoluta.  Amen. JAS@11-2023

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PS – ENTRE O PASSADO E O FUTURO

Por João de Almeida Santos

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“S/Título”. JAS. 11-2023

O PS FEZ EM ABRIL CINQUENTA ANOS, se não considerarmos como início da sua vida a iniciativa política de Antero de Quental, de Azedo Gneco e de José Fontana, entre outros, em 1875. Fixemo-nos, pois, em Abril de 1973, em Bad Muenstereifel, para concluirmos que ninguém poderá esquecer o papel que o PS teve na construção da democracia representativa que hoje temos e o rosto que o protagonizou: Mário Soares. Mais, os avanços significativos da nossa democracia tiveram sempre o PS como seu protagonista essencial. O seu espaço político foi e é um espaço virtuoso porque procura combinar de forma harmoniosa a liberdade e a igualdade, o papel fundamental do Estado e a  vitalidade da sociedade civil, o público e o privado, a convivência das forças mais conservadoras com as forças mais radicais, desde que se inscrevam nos valores constitucionais, ou seja, desde que pratiquem aquilo que um dia Habermas designou, falando da União Europeia, como “patriotismo constitucional” (1).  O passado deste partido é algo de que os portugueses se devem orgulhar. Os erros também aconteceram, mas o legado é altamente positivo, durante os cerca de 25 anos em que o PS governou este País.

E AGORA, PS?

E, hoje? Respondo, nesta inesperada crise que derrubou o governo e uma maioria absoluta do PS, com considerações sobre o estado da arte, mas também numa lógica prospectiva, olhando mais para o futuro do que para o passado, sendo, todavia, certo que é necessário corrigir o que nele persiste de errado ou insuficiente. De resto, é disso mesmo que se trata no processo de escolha do secretário-geral que irá suceder a António Costa.

Se o diagnóstico é sobre o passado, o bom e o mau, o objectivo, todavia, é a resposta aos desafios que temos pela frente e a mudança para melhor, como forma de honrar esse passado de prestígio. O balanço deve ser sobre o partido, mas também sobre a sociedade portuguesa, onde ele teve uma impactante intervenção, sobretudo durante os anos em que governou.

A primeira observação que me parece dever avançar é a que resulta do reconhecimento das profundas mudanças que estão a acontecer nas sociedades contemporâneas e, consequentemente, da pergunta que se impõe: está o PS a mover-se tendo realmente em conta estas mudanças? Temo que a minha resposta não possa ser inteiramente positiva se olharmos para o passado mais recente. Não me parece que o PS tenha estado a responder com criatividade, eficácia e empenho prospectivo aos desafios que estão aí à nossa frente. E se não o fez ou fizer, enquanto partido, dificilmente o poderá fazer enquanto governo, por razões que são fáceis de compreender. Enquanto partido, sofre, em geral, as dificuldades que todos os partidos socialistas e sociais-democratas estão a sentir e que já se estão a traduzir em resultados eleitorais (refiro-me a resultados eleitorais e às recentes sondagens disponíveis) pouco entusiasmantes, na Espanha, na França, na Alemanha, na Itália ou na Grécia. Sofre as dificuldades que os partidos do chamado establishment – os da alternância democrática, os do centro-esquerda, mas também os do centro centro-direita – estão a sofrer e que se estão a traduzir na progressiva fragmentação dos sistemas de partidos. Esta fragmentação já está em curso também em Portugal e de forma acelerada pelo que nos dizem as mais recentes sondagens, a ponto de os dois partidos da alternância, PS e PSD, já só exibirem cerca de 50% do eleitorado, em conjunto. Veremos nas próximas eleições. Ou seja, o próprio PS está a sofrer os efeitos da progressiva redução da política à sua dimensão de puro “management”, à identificação de governo com governança (“governance”),  a uma prática política sem alma e à perda de uma vocação hegemónica que possa conduzi-lo à formação de um bloco histórico (Gramsci), envolvendo as forças sociais com maior capacidade de propulsão histórica, capaz de conduzir o país para um futuro sólido, em vez de promover cada vez mais um discurso de comiseração e caritativo ao mesmo tempo que mantém taxas de sobrecarga fiscal sobre a classe média absolutamente incomportáveis. Ou seja, o PS tem vindo a praticar uma política de movimento por inércia, fundada num pragmatismo táctico que não prenuncia tempos de esperança, como devia ser sua vocação enquanto partido de esquerda. Também o PS sofre de “algebrose”, o discurso obsessivo dos grandes números, a obsessão pelas contas certas e uma visão puramente contabilística da político económico-financeira.

Internamente, o PS mantém uma estrutura orgânica pouco dinâmica ou mesmo inadequada aos tempos que vivemos: totalmente dependente do Estado; paralisado nas suas estruturas orgânicas (por exemplo, no Gabinete de Estudos, na Fundação “Res Publica”, no – lamentavelmente desaparecido – “Acção Socialista”, nas revistas de pensamento político); presença diminuta e apagada no universo sindical e, em geral, nas organizações da sociedade civil (veja-se o que tem acontecido na área do socorro de emergência, nos bombeiros), designadamente nos novos movimentos por causas, na comunicação social, nas universidades;  alheamento em relação ao papel das grandes plataformas digitais e ao seu papel na mobilização da cidadania (lembro que um dos pontos fortes da fracassada liderança do Labour de Jeremy Corbyn, foi a plataforma “Momentum”); posição incerta sobre o futuro da União Europeia (a opção seria ou pela constitucionalização da União ou pela lógica simplesmente intergovernamental ou funcionalista).  O PS parece ter estado a mover-se exclusivamente concebendo a política como pura comunicação instrumental para o consenso, em linha com a sua visão de puro pragmatismo governamental e com a sua dependência do aparelho de Estado, incapaz de metabolizar as profundas mudanças que estão a acontecer no plano da sociedade civil, designadamente graças à rede, à inteligência artificial e à globalização, sobretudo a globalização financeira, migratória e das grandes plataformas digitais.

A POLÍTICA DEMOCRÁTICA 
E A QUESTÃO DAS FONTES DO PODER

Num ensaio que aqui publiquei, “A Política na Era do Algoritmo” (2), falava de três “constituencies” que hoje estão na origem constitutiva do poder, mesmo no plano do Estado-Nação: a do cidadão contribuinte (a original), a dos credores financeiros internacionais que financiam, através do mercado financeiro internacional, as dívidas soberanas e a das grandes plataformas digitais que contratualizam informalmente com a cidadania a prestação de serviços e acesso à informação e à produção de conteúdos, numa dimensão que é profunda, individualizada e simplesmente gigantesca, com fortes efeitos sobre o comportamento político da cidadania, como se sabe. Esta composição das fontes do poder e da soberania deverá ser objecto de cuidada ponderação pelas forças de governo e pela União Europeia de forma a evitar a erosão definitiva da “constituency” originária, a única sujeita a “accountability” pela cidadania, e, com isso, evitar a destruição da própria democracia representativa. O recente episódio dos Certificados de Aforro dá-nos uma ideia muito precisa da desvalorização da centralidade do cidadão contribuinte na política financeira do Estado a favor do capital financeiro, nacional e internacional (3).

A não assunção crítica destes factores implicará um esvaziamento da política democrática e da deliberação pública, grave sobretudo ao nível de partidos que têm o particular dever, enquanto se reivindicam de esquerda, de garantir a promoção da política democrática e representativa, ou seja, de garantir que a soberania do cidadão contribuinte não é definitivamente confiscada por poderes não sujeitos a “accountability” política. Bem pelo contrário, é seu dever promoverem a evolução para uma democracia deliberativa, a única que, mantendo a representação, pode resolver o problema da cisão entre representantes e representados (4).

A INFILTRAÇÃO IDEOLÓGICA 
E A IDENTIDADE DO PS

Acresce a tudo isto que a este desvio para um excessivo pragmatismo (eleitoral) de governo, sem alma nem clareza ideológica, sem uma cartografia cognitiva exigente ou sem o suporte de uma grande narrativa ou de uma utopia mobilizadora (5), que até pode ser a de uma democracia deliberativa (Camponês, Ferreira e Rodrígues-Díaz, 2020) que confira mais poder ao cidadão no interior do sistema representativo, se veio a juntar a importação de perigosos produtos ideologicamente tóxicos, assumidos como se neles pudesse acontecer a redenção ideológica de um partido que deixou de cuidar das questões doutrinárias e da sua própria identidade político-ideal. Refiro-me à ideologia woke, ao politicamente correcto, à conversa enjoativa da linguagem inclusiva e neutra, ao radicalismo da ideologia de género, que vê a relação homem-mulher como uma mera relação de poder, e ao revisionismo histórico (6). A forma como estas ideologias têm vindo a evoluir, designadamente galgando os espaços partidários dos partidos do establishment e os espaços institucionais, assumindo cada vez mais dimensão normativa nas instituições nacionais e internacionais e impondo-se na opinião pública e na sociedade através de estereótipos com força de coacção moral, em muito tem contribuído para alimentar a ideologia iliberal da direita radical que as identifica, embora errada e instrumentalmente, com a própria mundividência liberal, sua inimiga jurada, desde os tempos do romantismo do século XIX. A intrusão daquelas ideologias – que de liberais, afinal, nada têm, sendo, pelo contrário, suas adversárias – na mundividência dos partidos socialistas e sociais-democratas, que, pelo contrário, radicam e se filiam no iluminismo, é facilitada por uma ideologia de tipo orgânico que, por um lado, rejeita o próprio património liberal (que está na matriz da nossa própria civilização – veja-se a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789) e, por outro, se afastou da tradição marxista, sem se  preocupar em encontrar uma consistente mundividência alternativa em linha com os novos tempos. Eu próprio tentei uma redefinição da doutrina em Política e Democracia na Era Digital (7), desenvolvendo e actualizando, neste livro, a que já apresentara na Universidade de Verão do PS, em Santarém, em 2015. Os trabalhistas ingleses tentaram esse aggiornamento nos anos cinquenta, com Hugh Gaitskell, mas somente em 1985, com Neil Kinnock, e, depois, com John Smith e Tony Blair, viria a ser desenvolvido na forma de New Labour ou de Terceira Via, tão execrada pelos sociais-democratas tradicionais e, mais tarde, até pelo próprio Labour de Jeremy Corbyn, com os “magníficos” resultados que se conhece (e que aqui critiquei várias vezes, durante o período da sua liderança). O recomeço do Labour a partir de 1997 (data em que, após a consolidação interna do New Labour, Blair iniciou a sua caminhada governativa), assumido explicitamente pela liderança de Keir Starmer, está a projectar o Labour de tal modo que poderá vir a ser vencedor absoluto nas próximas eleições (com mais de 20 pontos acima dos conservadores, em recente sondagem de Outubro). Por sua vez, o SPD fez, em 1959, esta operação de libertação da tradição marxista e de regresso ao iluminismo no famoso Congresso de Bad Godesberg. Um e o outro, na sequência destas mudanças, viriam a conquistar o poder e a exercê-lo durante bastante tempo. Na verdade, tratou-se do abandono da sua identidade como partidos-igreja para assumirem mais a forma de catch-all-parties, na sequência do crescimento da “middle class” e da necessidade de lhe corresponder politicamente.  O PS de Abril manteve, todavia, na sua Declaração de Princípios de 1974, uma posição, certamente por força da conjuntura que então se vivia, muito alinhada com as teses e os princípios marxistas (“sociedade sem classes” e colectivização dos meios de produção e de distribuição), só mais tarde evoluindo paulatinamente para posições mais moderadas, mas sem grandes rupturas de fundo, designadamente em dois aspectos essenciais: na manutenção da sua rejeição do património liberal clássico (e apesar de, como disse, o iluminismo ser a filosofia em que necessariamente se inscreve), que sempre considerou como sendo de direita (apesar de existir um filão chamado socialismo liberal, que vai de Stuart Mill a Hobhouse, Hobson, Capitini e Calogero, Rosselli, Dewey, Bobbio e o Partito d’Azione italiano) (8), e na assunção orgânica do predomínio da ideia de comunidade sobre a ideia de sociedade, um velho resquício sobrevivente do marxismo, e não tanto da teoria de Toennies ou de Max Weber. Uma coisa é certa: não se deve confundir o património liberal clássico com a sua reinterpretação pelos partidos liberais, que sempre se colocaram à direita, por razões que são historicamente explicáveis.

AGGIORNAMENTO

Na verdade, o PS, ocupado regularmente nas tarefas da governação durante cerca de 25 anos nos 49 da nossa democracia (em rigor, mais 47 do que 49), nunca chegou a efectuar um verdadeiro aggiornamento de fundo da sua doutrina no sentido de um esclarecimento ideológico equivalente ao que o Labour ou o SPD fizeram, sobretudo nestes dois aspectos que referi, o da compatibilidade da tradição liberal com a sua própria tradição e identidade (o que tem implicações muito relevantes sobre o modo como são vistos os direitos individuais) e o da remoção desse resquício comunitário (com o equivalente sentimento de pertença, que neste partido ainda é quase exclusivo), que persiste. Falta clareza sobre os limites da intervenção do Estado e sobre uma estratégia para uma maior eficácia da Administração Pública (que não seja a da máquina fiscal); sobre o papel dos partidos políticos na sociedade; sobre a dinâmica da relação entre o princípio da liberdade e o princípio da igualdade (não se sabendo, hoje, bem qual destes dois princípios tem a primazia, embora o discurso acentue cada vez mais o da igualdade, quando o PS de Mário Soares acentuava o valor da liberdade); sobre a chamada classe “gardée” ou a referência social dominante no discurso do PS; sobre a questão do peso fiscal sobre a cidadania (que está ligada à questão do papel e funções do Estado, que, sendo Estado Social, não é seguramente um “Estado-Caritas”, amigo caritativo dos “pobrezinhos”) (9); sobre a questão da hegemonia ético-política e cultural (que não se reduz a hegemonia política); sobre a relação proactiva com os movimentos sociais por causas; sobre uma estratégia para a projecção no futuro do país e da própria União, entre tantas outras coisas. Mas também sobre a política de justiça, que tem ficado colonizada (ou paralisada) por uma indiferença política centrada na célebre fórmula “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça”, como se a justiça fosse coutada de uma corporação blindada relativamente a qualquer tentativa de ordenação ou reordenação por parte da representação política, directa expressão da soberania popular. O que a actual crise parece sublinhar é que a separação dos poderes só vale efectivamente para um dos poderes, precisamente o poder judicial.

O PS VISTO MAIS DE PERTO

A recente tentativa feita por um centro de investigação do ISCTE, encomendada pelo PS, sobre o partido e o poder local não veio alterar no essencial as coisas, nem, de resto, parece ter tido grande sucesso ou sequer divulgação interna como documento fundamental. Por outro lado, a tentativa de criar uma (bela, de resto) revista semestral de pensamento político, Portugal Socialista – Revista Política, bilingue (português-inglês), na altura dirigida pelo actual presidente da Câmara de Ferreira do Alentejo, Luís Pita Ameixa, parece ter ficado pelo caminho, creio que pelo seu número dois. A própria Revista Finisterra (que era propriedade da Fundação José Fontana e que agora é propriedade da Fundação Res Publica), que há muito parece estar um pouco abandonada, mas agora dirigida por Fernando Pereira Marques, em dez anos limitou-se a publicar onze números, acabando por ter somente uma periodicidade anual e não desempenhando, designadamente com iniciativas de mobilização, uma função orgânica e propulsora para a revitalização do universo intelectual e doutrinário em que se inscreve o PS. O Acção Socialista, que tive a honra de dirigir durante três anos e de informatizar, e que, há anos, é dirigido pela deputada Edite Estrela, pouco ou nada contribuiu, nesses anos, para promover o aggiornamento doutrinário do PS, limitando-se a ser um repositório de artigos de pura política interna e de propaganda, sem ambições doutrinárias e ideológicas, até pura e simplesmente desaparecer, ao ser convertido em mero espaço noticioso do site do PS, embora com a designação de Acção Socialista Digital. Na verdade, Edite Estrela, ao tornar o Acção Socialista um “jornal” diário ou uma Newsletter semanal, o que fez foi acabar mesmo com ele. Se já era pouco, agora é mesmo nada. O PS deixou de ter um jornal próprio. Restam o nome e a Directora. Dois nomes, somente, porque a coisa já não existe. E julgo mesmo que do fim do “AS” a generalidade dos militantes ainda nem se apercebeu. A própria Fundação Res Publica, dirigida por Pedro Silva Pereira, que absorveu a Fundação José Fontana e a Fundação Antero de Quental, pouco ou nada tem feito, estando certamente o seu presidente mais ocupado com o Parlamento Europeu, de que é Vice-Presidente, do que com a gestão e a programação da Fundação. Mas ainda houve tempo para criar, entretanto, em Abril de 2021, uma Revista, Res Publica – Revista de Ensaios Políticos, dirigida por si, que publicou, até ao momento, três números. A Fundação Res Publica tem, pois, neste momento, duas Revistas de pensamento político (Finisterra e Res Publica), ambas, na realidade, de periodicidade anual.  Uma abundância redundante que, na prática, se converte em nula função orgânica, quando a revitalização ideológica e doutrinária é aquilo de que o PS mais precisa.  Em tempos, e é um mero exemplo, a Fundação Antero de Quental, dirigida por Jorge Lacão, foi um importante centro de estudos e de actividade dirigidos ao poder local. Mas, hoje, o que me parece realmente é que o PS, nesta área, anda ao sabor das idiossincracias ou dos humores pessoais de certos seus dirigentes, numa vaga que não se entende.

AFINAL, O QUE É A POLÍTICA?

Tudo isto, que não é pouco, porque se trata de instrumentos preciosos para o robustecimento cultural, ideológico e doutrinário do PS e para a promoção da literacia política dos seus militantes, deveria ser objecto de uma profunda reflexão por aqueles que agora disputam a liderança do pós-António Costa, preparando um futuro que não seja simplesmente o de fazer cálculos tácticos e eleitorais para a conquista do poder político institucional e para a ocupação do aparelho de Estado, deixando como mero adereço o trabalho no campo estritamente político, ideológico, doutrinário e cultural. Viu-se ao que conduz uma política displicente do ponto de vista doutrinário, ético-político e cultural e até programática – ver desbaratado um capital político adquirido com a obtenção de uma maioria absoluta. Isso é o que se tem verificado, estando o PS transformado num mero partido-veículo (para conduzir ao Estado) e tornando residual a sua relação com a sociedade civil, a não ser numa lógica exclusivamente eleitoral e de redução da política à sua dimensão puramente táctica e instrumental. O que acontece é que a política é algo mais vasto e mais denso do que a mera competição eleitoral e, seguramente, também é muito mais do que uma mera “arte  do  equilíbrio”, como a definiu Fernando Medina, até porque é ela que deve ser a base sobre a qual devem ser construídos os projectos políticos, as próprias competições eleitorais e as soluções de governo. Mas essa função só pode ser desempenhada por um partido que seja já um pequeno universo onde se desenvolve uma vida autónoma e plural capaz de vir a alimentar as forças necessárias para a conquista da hegemonia ético-política e cultural, para a construção de um sólido bloco histórico e para a formação de governos competentes, densos e movidos exclusivamente pela ética pública. Sim, pela ética pública. A política não é, de facto, uma arte para equilibristas talentosos, mas muito mais. Ou para “temperadinhos” que a transformem em arte de sobrevivência. E não é desvitalizando e tornando anémico o partido que depois se pode esperar sucesso na relação com a sociedade civil, nas políticas a desenvolver e nos agentes que têm por missão executá-las e promovê-las.

QUE DOUTRINA PARA O FUTURO 
DA UNIÃO EUROPEIA?

O mesmo vale para a política internacional e, sobretudo, para a política europeia, onde não se vê preocupação em posicionar o PS sobre as grandes questões que se põem à União Europeia no plano da sua evolução institucional como entidade política e como protagonista à escala mundial, vendo-se, isso sim, designadamente no Facebook, uns ou umas eurodeputadas a fazerem alegremente turismo pelo mundo fora. Nem se vê também preocupação da Foundation for European Progressive Studies, sediada em Bruxelas e dirigida por uma portuguesa, Maria João Rodrigues, produzir doutrina de fundo sobre o futuro da Europa para responder com novas ideias e propostas à crise por que estão a passar os partidos socialistas ou sociais-democratas da União Europeia, o que  contribuiria para que o PS viesse a ter uma posição mais clara e sólida (que não tem) sobre o futuro da União. O que é grave, conhecendo nós a matriz europeísta do próprio partido, para a qual muito contribuiu o seu fundador Mário Soares.

Estamos, pois, numa situação que mereceria, agora que o PS tem meio século e disputa a liderança com jovens quadros com alguma experiência política no terreno, uma atenção particular, fazendo um aggiornamento  profundo que toque em todos estes aspectos e superando essa ideia que começa a singrar na opinião pública de que este partido já mais não é do que uma enorme federação de interesses pessoais em busca de colo na gigantesca máquina do Estado e uma boa plataforma para descolar em direcção a Bruxelas e a Estrasburgo. Mas não é essa a vocação do PS, nem o seu passado é compatível com essa condição.

O FUTURO DO PS É TAMBÉM O FUTURO 
DA DEMOCRACIA EM PORTUGAL

Por ocasião do aniversário dos seus cinquenta anos o PS foi chamado a escolher um novo secretário-geral na sequência da queda de um governo que dispunha de uma maioria absoluta na Assembleia da República. Uma vida curta e cheia de peripécias pouco abonatórias para o partido. A última deu origem a uma ruptura que levará a uma mudança interna profunda. O meu desejo, qualquer que seja o novo secretário-geral, é a de que o PS saiba sair desta situação algo pantanosa em que se encontra para que o seu passado seja honrado com um futuro que seja também digno também de boa memória. Fico a aguardar as moções de estratégia dos candidatos para conhecer as linhas de orientação de cada um quer sobre o partido quer sobre o País. JAS@11-2023

NOTAS

(1) Habermas, J. “Cittadinanza e Identità Nazionale”, In Micromega, 5/91, 123-146.

(2) “A Política na Era do Algoritmo”: https://joaodealmeidasantos.com/2023/04/11/ensaio-29/

(3) Veja o meu artigo “Confissões de um Aforrador”: .https://wordpress.com/post/joaodealmeidasantos.com/13068).

(4) Veja o meu texto sobre a Democracia Deliberativa em Camponês, Ferreira e Rodríguez-Díaz,  Estudos do Agendamento, Covilhã, Labcom, 2020, pp. 137-167:  https://labcomca.ubi.pt/estudos-do-agendamento-teoria-desenvolvimentos-e-desafios-50-anos-depois/

(5). Recentemente, em artigo em “El País”, o presidente de Más País, e um dos fundadores de Podemos, Iñigo Errejón, falava da necessidade de regressar a uma “política que volte a ser ingénua e utópica”, 14.04.23, pág. 11.

(6) Veja a minha crítica a estas ideologias em “Manifesto – A Lavandaria Semiótica e ouras coisas do mesmo jaez”: https://joaodealmeidasantos.com/2023/04/04/manifesto/ e em “O Desafio Woke”, de 18 de Outubro de  2023: https://wordpress.com/post/joaodealmeidasantos.com/13906

(7) Lisboa, Parsifal, 2020, pp. 15-47 e 133-153.

(8) Veja o meu livro Paradoxos da Democracia, Lisboa, Fenda, 1998, pp. 65-68.

(9) Veja o meu artigo sobre “O Estado-Caritas”: https://joaodealmeidasantos.com/2023/03/21/artigo-96/)

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