Ensaio

UM RASTO DE INQUIETAÇÃO…

Ensaio Breve Sobre a Poesia
 João de Almeida Santos
Ilustração: “O poeta que gosta do amarelo”. Original de
João de Almeida Santos. Abril de 2018.

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 “Saber interpor-se constantemente entre si próprio e as coisas é o 
mais alto grau de sabedoria e prudência”Bernardo Soares

 

A POESIA É DESASSOSSEGO…

Ou nasce dele. Dá forma à dor, (re)vivendo-a ou transmudando-a em palavras como se fosse a sua notação musical e a sua melodia. Dor? Porquê sempre dor? Porque a poesia, sendo sensitiva, também é privação sensorial, porque vive num intervalo. Ou resulta dela, apesar de ser uma linguagem que é quase um sentir puro… mas em “carne viva”. Quase um comportamento, esteticamente desenhado e cantado… em surdina! “Comporta-te poeticamente!”, poderia ter dito o Hans-Georg Gadamer de “Verdade e Método”! Ou o velho Schiller! Vive a vida assim, sem te deixares ir nessa volúpia devoradora dos sentidos que te pode sugar e engolir a alma e a distância contemplativa. Cria distância, intervalos por onde possas ressuscitar do torpor quotidiano! Não corras demais! A velocidade cega, ouviste? Corre só o suficiente para agarrares a vida pelo seu lado mais denso. Aquele que só podes encontrar em ti. E que entenderás e sentirás plenamente quando te aproximares das fronteiras da existência, desses abismos que ameaçam sugar-te irremediavelmente! Se for preciso pára, não vás logo, impaciente, até ao fim. Se fores, que farás depois? Sentas-te à espera que chegue inspiração para novas metas? Não, porque será sempre ilusório chegar rapidamente ao fim desejado. Se o atingiste, esse fim era falso, era uma miragem! Cria, pois, um intervalo entre ti e a vida para melhor a observares sem deixar de a viver. E deixa-te ficar nele, sem tentações perigosas. Era mais ou menos isto o que dizia o famoso Bernardo. Nesse intervalo podes tocar com as mãos o real e fazer a sua notação poética, convertê-lo numa forma que quase o não é, porque pode dizer tudo com quase nada (de forma). Até mais do que a própria imagem. E se alguém disser que uma imagem vale mil palavras, eu digo que um verso pode valer mil imagens, porque nele a palavra soa a melodia do silêncio… que só pode ser ouvida a partir desse intervalo!

PRIVAÇÃO

Na poesia há privação! Há, sim! É um intervalo denso e intenso entre o que não temos e aquilo a que renunciamos: é vida transfigurada em palavras sincopadas ao ritmo de uma difusa e incontrolável dor interior. Uma moinha que só não te devora porque a vais dizendo melodicamente ao ritmo que te impõe. Com uma paradoxal alegria melancólica! É assim que eu a sinto! Foi assim que a senti desde o princípio. E por isso me deixei ir…

“A arte”, diz Bernardo Soares, “é a expressão intelectual da emoção”. E diz mais: “o que não temos, ou não ousamos, ou não conseguimos, podemos possuí-lo em sonho, e é com esse sonho que fazemos arte”. Sim, o sonho, onde vivo o impossível, onde nunca atinjo a meta, nunca chego ao fim… pois quando estou a atingi-lo, acordo! Irremediavelmente. Lembra-me o Calderón de la Barca e o seu “La vida es sueño”! A arte está lá nesse intervalo por onde irrompe o sonho, sob a forma de palavra, risco, cor, som. Quando nos sentimos orquestra. Que bom sentir-se orquestra, com os sentidos a executarem uma sinfonia! E o compositor mais próximo talvez seja Mahler! Tenho a certeza!

Sonho de olhos abertos, sonho sensitivo, mas com alma sofrida por renúncia ou impossibilidade. Neste intervalo também se constrói a liberdade, sob forma de arte: não me pode ser tirado o que eu reconstruí neste intervalo sofrido, como arte, diria, de certeza, Bernardo Soares. Sim, porque o reconstruí em ausência. E neste estado de privação “nada me pode ser tirado nem diminuído”. Bem pelo contrário, sou eu que lanço ao mundo essa vida revisitada e reconstruída, a partir desse sentimento (doloroso) de privação. Dou música ao mundo. Como dizia o Italo Calvino, nas famosas “Lições Americanas”: “creio que seja uma constante antropológica este nexo entre levitação desejada e privação sofrida. É este dispositivo antropológico que a literatura perpetua”. Diria mais, com ele: a poesia é uma “função existencial” que procura a leveza como reacção ao peso do viver. A leveza dos sonhos a olhos abertos, cantados em palavras e lançados ao vento que há-de mover, como chamamento, as copas das árvores… ou dos arbustos! Ou talvez não!

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RENÚNCIA

Comprei, pois, uma nova edição do “Livro do Desassossego” do Fernando Pessoa ou, se quiserem, do Bernardo Soares. Gosto deste livro. Deste Fernando Pessoa. Filósofo, sim, filósofo. Revisito-o com regularidade. Por necessidade interior. Irmanado nessa renúncia que é privação sofrida… à procura de leveza. Que vou encontrando à medida que caminho entre o silêncio e o sonho, movido por palavras, riscos e cores intensas que me vão desenhando e iluminando esta vereda tão estreita da minha vida. E porque compreendi que Pessoa chegou perto dos nexos fundamentais da existência, naquilo que ela tem de mais sublime, de mais elevado. E neste livro anda por lá essa ideia que tanto me fascina, do ponto de vista estético: a ideia de renúncia. Sim, essa ideia de renúncia (ou mesmo de impossibilidade) que, um dia, me pôs em intervalo criativo. Não a do eremita, daquele que foge da vida para se aproximar de deus, da natureza ou da eternidade. Não, essa não, mas a daquele que foge da vida para entrar nela com mais profundidade, compreendê-la e vivê-la numa dimensão que está para além do imprevisível tempo do acaso, do presente efémero e circular, da volúpia orgástica ou império dos sentidos. Claro que não sou tão radical como ele. Nem tão pesado nos juízos. Mas sei bem que só radicalizando poderemos compreender o essencial. Mas não como mero exercício intelectual. Nestas condições, a arte permite isso. Porque não é do domínio do pragmático e do útil. Porque não serve, aparentemente, para coisa alguma, a não ser como adereço. Mas não! Ela serve noutra dimensão. Encontra-se num dispositivo que, sendo universal, procede em registos únicos, com aura. “Subjectividade universal”, diria o Kant dessa extraordinária “Crítica do Juízo”. Assunto tão relevante que, um dia, Schiller, nas “Cartas sobre a Educação Estética do Homem” (1795), haveria de propor um “Estado Estético” que fundasse a harmonia social na educação estética, ou seja, na celebração quotidiana do belo!

SILÊNCIO

É uma grande obra, esta, a do Desassossego. Desta vez li uns textos sobre a relação entre a poesia e a prosa. O Bernardo Soares preferia a prosa ao verso, pela simples razão de ser “incapaz de escrever em verso”. Que era o que eu próprio sentia até há cerca de três anos. Até que se deu o clique. Ao olhar para um arbusto. Uma espécie de “fissão poética”, com libertação de energia criativa e até com potência destrutiva! Ah, sim. Sei bem do poder de um poema! E sei quase tudo sobre quem o não sabe ler como resultado do tal intervalo e fica ao pé da letra! Como se de prosa se tratasse, nem sequer ficcional!

Percebi que o que não é possível dizer em prosa pode ser dito em poesia, sendo também claro que a prosa não tem o mesmo poder performativo. Aumenta o espaço de liberdade e até pode adquirir um carácter substitutivo. E não só porque o poeta é um fingidor que sente pelo menos metade do que diz, fingindo que mente só porque o diz num poema. Ou seja, não só porque a poesia nos torna mais livres. Porque dizemos o que sentimos de forma livremente auto-referencial, embora nesse registo universal com que traduzimos, em arte, o nosso próprio registo sensorial ou a nossa experiência vivida. E, deste modo, porque o que sob esta forma se diz tem a pretensão de ser mais do que o que simplesmente se comunica sob qualquer outra forma: ser simplesmente belo. Indo para além do registo sensorial, denotativo, conotativo ou conceptual. Mas não só por isso. Sobretudo porque é uma linguagem plena que pode dizer quase tanto como o que diz o silêncio. A poesia é a linguagem mais próxima do silêncio. Quase como se fosse só silêncio murmurado, balbuciado, mas composto, musicado, conservando ao mesmo tempo uma dimensão polissémica, sem pretensões denotativas, tal como a música. Mesmo que haja referentes (e há sempre) que nela se possam vir a reconhecer. Mas ela é mais do que isso: aspira a um reconhecimento subjectivo universal, filtrado, claro, pelo dispositivo sensorial de todos e de cada um. A arte, sendo universal, interpela singularmente cada um de nós, através da sensibilidade!

MÚSICA

O Bernardo Soares diz que o verso é uma passagem da música para a prosa. Genial intuição. Ou seja, a poesia não só está entre a música e a prosa como permite a passagem de uma para a outra, sem se transformar em simples meio ou instrumento. Tem elementos de ambas. E vive nesse intervalo com corporeidade própria. Mas julgo ser possível dizer também que entre o silêncio e a poesia talvez esteja a música. A música é a voz do silêncio, porque ainda não diz, mas deixa espaço à poesia para dizer, como melodia cantada, o que é (quase) indizível. E é nesta quase indizibilidade melódica que reside o poder da poesia. É por isso que o silêncio e a música se podem exprimir de forma larvar na poesia, sendo cada poema a borboleta que esvoaça sobre as nossas vidas e a nossa imaginação para interpelar a fundo o nosso pólen, a nossa sensibilidade individual. Sim, cada poema é uma borboleta à procura de pólen…

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EM SUMA, UM RASTO DE INQUIETAÇÃO…

É nestes intervalos que o poeta se coloca ao cantar a música da vida. Um canto sofrido, porque fruto do desassossego, da privação, da dor, mas por isso mesmo obra de jograis vadios, nómadas, sempre em movimento, atravessando fronteiras à procura do que nunca encontram e não querem encontrar. E a poesia é o seu modo de comunicar a partir desse intervalo perpétuo em que vivem: em permanente privação. Sem tempo nem lugar. O seus poemas são cantos com que querem encantar para logo partir, deixando um rasto de inquietação, que é ao que de mais belo a poesia pode aspirar. ###

 

1 thought on “Ensaio

  1. Que magnífica reflexão, Professor, muito obrigada!

    Uma reflexão que a todos nos põe a pensar… Pelas muitas as parecenças com a vida…e, até, coincidências perfeitas.

    Em suma, um Desassossego constante!

    Ou não seja Fernando Pessoa o meu autor favorito, acerca do qual estudei em tempos o niilismo…

    1 beijinho e bom domingo:) fp

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