O RETRATO
Poema de João de Almeida Santos. Ilustração: “Mulher”. Origina de minha autoria para este poema sobre quadro (fotografia em tela, de autor anónimo) da minha colecção privada. Setembro, 2018.

“Mulher”. Jas. 09-2018
POEMA – “O RETRATO”
ENCONTREI-TE, Por acaso, Na galeria, Em contraluz. Eu não te Reconhecia... ........... Como tudo O que sempre Me seduz. NÃO SEI O teu nome, Quem assim te Desenhou. Só sei que Este teu corpo Brilha, brilha Como luz De quem um dia Te amou! RETOQUEI-TE De cores Com que me Pinto, Dei-te mais vida, Foste musa Do meu cantar, Levei-te comigo À montanha, Fiz do teu corpo A ara do meu Olhar! OLHO-TE Nos meus poemas, Teu silêncio É como o meu, Tu falas-me com O teu corpo E eu com Arte... .......... O que o Destino Me deu! ÉS GIESTA Da montanha, És flor Do meu jardim, Vejo-te Quando regresso, Mas o teu É um silêncio Sem fim... SE ME OLHAS É com o corpo, Eu pra ti Sou um Poema, Não choras Na despedida Esse íntimo Dilema Porque sabes Que o regresso É o sal Da minha vida. ÉS ÂNCORA Da minha arte, Nunca te hei-de Perder, Se parto contigo Prò Monte, Volto ao Anoitecer... DURMO, DEPOIS, Ao relento Sob teu olhar Cerrado, Porta aberta Prà montanha, Sonho-te, ali, A meu lado... ............... E logo que Amanhece É sonho que Me acompanha. A MINHA MUSA É um retrato Que encontrei Na galeria, Olho pra ele, Sou poeta, Não o canto Com alegria... ............. Mas rogo a um Passarinho: "Não sumas Da minha porta, Fica comigo Um dia!"
Belíssimo poema que faz de um encontro casual numa galeria o leitmotiv da tessitura poética. O lugar de encontro marca o fio narrativo do texto, cujo argumentário e discursividade assentam num dialogismo baktiano entre o Poeta –Pintor e o Retrato. Ao personificar o Retrato, o sujeito poético cria com ele uma afectividade cúmplice, deixando transparecer uma mundividência passional e amorosa. Em linha com o título, estão os campos semânticos da pintura (“RETOQUEI-TE/De cores/Com que me/Pinto,”) que se entrelaçam com uma arqueologia do amor com anotações telúricas (“ÉS GIESTA/Da montanha,”) – tão do agrado de Miguel Torga e de Alberto Caeiro. Também os diminutivos carinhosos (“Mas rogo a um/Passarinho:/«Não sumas/Da minha porta,/Fica comigo/Um dia!»”) – a lembrar Vinicius de Morais – evidenciam uma rara sensibilidade poética. A expressiva ilustração parece acentuar as isotopias deste belo texto poético: o silêncio e o desencontro, por um lado, e, por outro, a magia e a alquimia do Amor.