Poesia

EM CERTOS DIAS…

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Beija-Flor 
em Magnólia Branca”. 
Original de minha autoria 
para este poema. Junho de 2022.
Colibri2022-cópia

“Beija-Flor em Magnólia Branca”. JAS. 06-2022

POEMA – “EM CERTOS DIAS…”

EM CERTOS DIAS,
Teu macio rosto 
De veludo
Alterna
Entre suave doçura e
Vincos marcados
Como sulcos,
Aspereza de
Sensualidade
Sustida 
À flor da pele
Para que não
Transbordes
Em excesso
De ti.

COMO SE FOSSES DUAS
MULHERES,
As faces de Janus,
Decidida
E evasiva,
Passado e futuro,
Espartilho
Que quase anula
O teu fértil
Húmus anímico
Que remotamente 
Te inspira,
Desde a raiz.

MAS TU ÉS UMA SÓ,
Aquela que
Ficou
Sentada
Na soleira da tua
Alma
Quando, em solidão,
Saíste, decidida,
 Para a rua
Da tua vida
À conquista
Do mundo...

ACORDA, MULHER,
Vai à procura
De ti
Na fronteira
Do teu destino,
Olha o mundo
Da janela,
Mas sai
Pela porta da tua
Alma
De braço dado
Com o sol que 
Tantas vezes 
Te ilumina
O olhar
Com as cores
Do arco-íris.

HÁ TANTAS MAGNÓLIAS
(Como tu)
No meio do caminho
Da tua vida
Que basta olhá-las
Pra que ela
Te sorria.

AH, NÃO SABES
Quanta metafísica
Há numa magnólia
Branca!
Fala-lhe com os teus
Olhos,
Acende-a com
Teu sopro quente,
Acaricia-a com
Mãos macias
E verás que ela
Te apontará o caminho
Do reencontro
Contigo
Na brancura
De suas pétalas.

E VERÁS TAMBÉM
Que tu vives
(Como eu)
Num intervalo entre ti
E o mundo
De onde te podes
Reconhecer 
No regresso
À tua soleira vital,
Para repartires
Aconchegada,
Contigo no regaço.

NA FRONTEIRA
- Sabias? -
Vemos melhor
Para dentro
e para fora
De nós,
Vemos 
Os demónios 
E os anjos...

VÁ, CANTA A VIDA
Com teus olhos,
Demora-te um pouco
Na janela sobranceira
Do teu íntimo
A ver passar
Aquela que já
Não queres ser
Porque apaga
O rasto do teu
Acontecer...
....................
E sai com o vento
Pela porta do
Teu destino.

E VAI AO JARDIM
Falar com as magnólias
E come chocolates
E canta
E dança
E grita se for preciso
Até que o eco
Te devolva
Identidade
E teus olhos
Se cubram
Daquele verde
Que nasce nas
Encostas,
Nos verões
Das nossas vidas,
Quando o sol
Já brilha no horizonte...

MAS BRILHA?
- Perguntarás.
E eu digo-te 
Que sim
Se o brilho 
Se acender também
No teu inquieto
Olhar!
MagnoliaRec

“Beija-Flor em Magnólia Branca”. Detalhe.

2 thoughts on “Poesia

  1. A cada leitura dos poemas de João de Almeida Santos (JAS), o leitor descobre novos dispositivos discursivos e imagéticos. O diálogo entre o poema e a ilustração: “Beija-Flor em Magnólia Branca” transpõe para a tessitura poética a metáfora energética da magnólia e a luminosidade e o brilho do branco, com toda a simbologia inerente a esta cor e a esta flor. Também não deixa de surpreender o leitor, o pormenor – colocado em destaque – do beija-flor, que, de forma intratextual, dá cor à ilustração e interage com o Poeta incitando-o a interpelar a narratária com versos impressivos e imperativos:

    “ACORDA, MULHER,
    Vai à procura
    De ti
    Na fronteira
    Do teu destino,
    (…)
    “VÁ, CANTA A VIDA
    Com teus olhos,
    Demora-te um pouco
    Na janela sobranceira
    Do teu íntimo”
    (…)
    “E sai com o vento
    Pela porta do
    Teu destino.
    (…)
    E VAI AO JARDIM
    Falar com as magnólias
    E come chocolates
    E canta
    E dança
    E grita se for preciso”.

    Ouve-se, no decurso do poema, a voz do Poeta em solilóquio a interpelar a destinatária, que parece estar envolta em torpor e em mutismo: “TU ÉS(…)/ Aquela que/Ficou/Sentada/Na soleira da tua/Alma”; “Aquela que já/Não queres ser/Porque apaga/O rasto do teu/Acontecer…”. O acutilante polissíndeto (“E come chocolates/E canta/E dança/E grita “) carrega o tom enfático do Poeta.
    A juntar a esta interpelação incisiva, o sujeito poético convoca a destinatária a visualizar, com ele, a similitude das suas vidas: …(“Nos verões/Das nossas vidas,/Quando o sol/Já brilha no horizonte…” “E VERÁS TAMBÉM/Que tu vives,/ (Como eu) /Num intervalo entre ti/E o mundo/De onde te podes/Reconhecer/No regresso” ( itálicos e sublinhados meus). De notar, neste segmento textual, o pronome pessoal (nossas) e a carga semântica do parênteses (como eu) quase dito em surdina, criando, deste modo, empatia e proximidade com a destinatária e dialogando com ela… Esse diálogo perdura na última estrofe mantendo-se o solilóquio inicial do Poeta consigo mesmo e com a narratária. Esta, é impulsionada a ver o brilho do sol, brilho esse, conotado com criatividade, originalidade, élan passional e emotivo. Contudo, esse brilho está aposto a uma oração condicional o que contamina, semanticamente, a metáfora do brilho à vontade de quer olhar (“Se o brilho/Se acender também/No teu inquieto/Olhar!”).
    E é com este verbo “olhar” que o poema termina – um olhar para as magnólias brancas e para o beija-flor, mas um olhar também para o interior e para o self do poeta, da destinatária e dos leitores.…

    • João de Almeida Santos. – Obrigado, Cara Prof.ra Maria Neves. O seu comentário eleva o poema, densifica-o, acrescenta-lhe sentido e propõe ao leitor novas vias interpretativas. Poeta em solilóquio. É isso. E é isso que o conceito de “narratária”, que aqui usa, significa. O poeta reinventa-se como “ser de papel” para outro “ser de papel”. Ah, ser “de papel” que também pode ser “no papel”. Porque também somos “no papel”. Ás vezes mais do que fora dele. Gosto que tenha usado este conceito que põe “preto no branco” o sentido de um poema, quando tantas vezes se confunde um poema com uma “carta aberta”. Não, não é assim! A poesia mergulha no real, pois claro, procura exprimir as profundezas da alma, mas fá-lo procurando a universalidade e falando com uma linguagem “autopoiética”, com o seu próprio código, que sempre impõe uma lógica discursiva que só responde a si própria. Um poeta nunca pode poetar a pensar no que os outros irão pensar… Os personagens vivem dentro dele, na sua fantasia e procura recriá-los com os instrumentos expressivos de que dispõe e que a poesia permite (e até exige, sim, exige). É verdade, quando uso os parênteses é isso mesmo que quero: dizer quase em surdina, num tom inferior ao do poema, normalmente mais íntimo. Depois o beija-flor. Esta ave é amiga da poesia porque é agente especial de polinização quando faltam (no ambiente) os agentes normais do processo. Como a poesia, que também procura polinizar. Alguém aqui falou em hino à vida. E procura ser. Não à vida rotinizada, mecânica, “banáusica”, para o dizer com a excelente Arendt, mas à vida que nos diz em autenticidade, que sai do que somos (e não do que parecemos). Essa vida que nos convida a recomeçar sempre, partindo de nós, do que somos (e não do que temos)… Eu verei brilho no mundo se os meus olhos também brilharem. Ao contrário, “le malheur interieur” só vê escuridão fora, negatividade no mundo… O meu poema pretende o contrário. Lembro-me sempre do “Liolà” (da Sicília) do meu adorado Pirandello: “Angustie, fame, sete, crepacuore?/ Non m’importa di nulla: so cantare!/ Canto e di gioja mi s’allarga il cuore,/ È mia tutta la terra e tutto il mare”. É isso! Sei cantar! E cantarei sempre melhor enquanto tiver a sorte de poder ler estes seus belíssimos comentários. Um abraço e a minha gratidão.

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