ELAS FOGEM, AS PALAVRAS…
Poema, em dois andamentos, de João de Almeida Santos. Ilustração: “Letras”. Original de minha autoria para este poema. Agosto de 2019.

“Letras”. Jas. 08-2019
POEMA – “ELAS FOGEM, AS PALAVRAS…”
I. QUERIA FAZER-TE UM POEMA, Sentir-te nele À vontade E as palavras Endoidaram Quando, Feliz, Lhes falei Da minha Quente Saudade. FUGIRAM Numa revolta Sentida Sem conhecer A verdade Deixando-me Só, Sem palavras, À deriva, Sem dó Nem piedade... EU ESTAVA A MENTIR Sem pensar Na crueldade De as usar Como queria Só porque Tinha saudade... ESGUEIRARAM RUA FORA, Cada uma Por seu lado, Em fugas No horizonte Deste poema Tentado... SÓ JÁ AS VIA AO LONGE, Ao fundo Da tua rua, Num ponto Do infinito Desta minha Alma nua. UMAS ESVOAÇAVAM No fio Do horizonte, Outras Aninhadas No passeio... ................... E eu a tentar O versejo Capturado No enleio Desta prisão Do desejo! PALAVRAS EM CORRERIA, Letras Perdendo forma Como fios De novelo Já desfeito De sentido Como a água Do gelo... SÂO FIOS EMARANHADOS, Letras Que se deslaçam E procuram Outras formas Para lá da minha Rima, São riscos Na tua tela A subir Por ela acima... II. QUERO FAZER-TE UM POEMA Com palavras Desenhadas, Mas elas fogem Pra longe, Correm, correm, Assustadas, Não vá mesmo Ser verdade Que as quero Alinhadas Neste recanto Feliz Onde resisto À saudade. ELAS GOSTAM DE CANTAR Esta minha Triste dor E gostam De me dizer Em intensa Emoção, Mas se me vêem Feliz Fogem de mim, Dizem “não!” O POEMA PASSARINHO Procura-te Para cantar Mas se já Não sentes nada É ele que foge A voar... E HOJE É mesmo assim Fogem todas As palavras Sem procurar Um destino, Já não consigo Agarrá-las Num poema Genuíno... NÃO SABEM Da minha dor E por isso Vão embora Estou sem palavras, Amor, Estou muito triste, Agora!

“Letras”. Detalhe.
Professor!
Lindíssimo Poema… Jogo brilhante do Poeta com as suas Palavras…
E a ilustração, absolutamente fantástica… de cores belíssimas. As Letras que nela sobressaem, mesmo que genialmente integradas, não deixam de oferecer ao leitor possibilidades de combinações diferentes… ao sabor da sua própria interpretação…
De novo, muito obrigada!
Com admiração, Fernanda
Obrigado, Fernanda, pelas suas palavras. Só agora acabei as versões definitivas do poema e do desenho. Mas, claro, as versões que apreciou são idênticas. Este desenho levou-me muitas horas devido aos imensos pormenores e ao trabalho sobre a cor. Espero que volte cá para ver o resultado final. Um abraço.
Eis um belo poema de João de Almeida Santos (JAS), construído com base na semiótica da Palavra, habitada, neste território poético, por uma miríade de personificações e animismos, alinhados, em mise-en-abîme, de forma metafórica, hiperbólica e oxímora. É, pois, o lexema palavra – conjugada sempre no plural – que comanda, semanticamente, toda a tessitura poética, do início ao fim do texto. Descodifiquemos esta construção, por si só, produtora de sentidos: “E as palavras/Endoidaram”; “PALAVRAS/EM CORRERIA”; “Com palavras/Desenhadas”; “Fogem todas/As palavras”. A estes levantamentos lexicais acresce a alusão, implícita, ao lexema palavras, usado de forma elíptica e subentendida: “SÓ JÁ AS VIA/AO LONGE, ESGUEIRARAM/RUA FORA,; UMAS/ESVOAÇAVAM; Outras/Aninhadas; FUGIRAM/Numa revolta”. Apesar desta isotopia, as palavras – confessa o sujeito poético – “fogem/Pra longe”; “Correm, correm, Assustadas”, de tal modo que o poeta termina, paradoxalmente, este seu poema com os versos: “Estou sem palavras,/Amor,/Estou muito triste,/Agora!”. O deíctico “agora”, enfaticamente acompanhado de um ponto de exclamação, transpõe para o poema uma presentificação da dor e duma ausência muda que faz sofrer o sujeito poético. É nesta intersecção que refulge o sentido da poesia como experiência emocionada do mundo interior. Parafraseando Gonçalo M. Tavares (2017), direi “que os versos mais fortes que lemos muitas vezes funcionam como bússola, mapa que orienta” e que “ler poesia, como toda a boa leitura, é uma forma de deslocação. Nos olhos, desde há muito se sabe, é que estão localizados as maiores das viagens”. As viagens que JAS nos proporciona, com os seus poemas, são viagens que evocam a saudade, a solidão, o turbilhão emocional, a introspecção sofrida…
Referência
Gonçalo M. Tavares (2017). SPA. Mensagem para o Dia Mundial da Poesia 2017 (21 de Março)
Mise-en-abîme, sim, que cada vez gosto mais, como se me tivesse mudado para dentro da poesia para me sentir melhor, para ter o que não tenho, experimentar o que sinto, dizer o que calo, comunicar o que não posso, experimentar um diálogo com o silêncio reiterado, quase sob a forma de um inocente protesto, olhar nos olhos sem ver, fingir que sinto o que deveras me dói… Sinto-me irresponsável a viver dentro de um poema ou, melhor, só responsável pelo valor estético do que faço, do que digo e do que sinto. Sim, as viagens são para a terra da saudade, da solidão, para a terra onde me sinto renascer das cinzas de um fogo que nunca acaba. Para dentro de mim, que já estive fora tempo demais. As palavras são minhas amigas e dão-me mais do que algum dia eu já dei a alguém. Por isso, também gosto de brincar com elas, de correr atrás delas, até com riscos e com cores para ver se as enlaço. Mais uma vez o meu obrigado pelo seu sofisticado comentário, querida professora Maria Neves. Um abraço e votos de boas férias.