VOAR
Poema de João de Almeida Santos. Ilustração: “Pássaro de Fogo”. Original de minha autoria sobre desenho de Vera Sousa. Abril de 2020.

“Pássaro de Fogo”. Jas. 04-2020.
POEMA – “VOAR”
APETECE-ME VOAR Sobre o teu silêncio, Confinado que estou Entre paredes De um subtil E incerto afecto Que me vai capturando Pela sedução De uma ausência Insinuada... AH, MAS EU SEI Que estas paredes São do tamanho Da minha fantasia E que o voo, Livre como é, Não terminará Até que te sinta Pulsar finalmente Dentro de mim... E SEI TAMBÉM Que as minhas asas Terão sempre As cores Do arco-íris Para com elas Voar Sobre o vale da Tua vida, Montado num Pássaro de Fogo. VER-TE-EI Lá de cima Caminhar distraída, Perdida Nas encruzilhadas Que vais criando No sendeiro inóspito Da tua vida E lançar-te-ei Âncoras coloridas Que dêem mais luz À incerteza Que te vai na alma. E AGORA, Que o pintei, Já tenho um Mensageiro Que te levará, Com o vento (Ou num Inesperado E feliz reencontro De palavras), As cores Com que, docemente, Te vou pintando E as deixará No parapeito Da tua janela. MAS NÃO PRECISARÁS De abri-la De par em par Porque ele não Entrará... ............. Poderia Incendiar-te A fantasia e Engravidar-te A alma Com o fogo Que levará Consigo...

“Pássaro de Fogo”. Detalhe.
Nestes tempos de confinamento, voltei a Roland Barthes que revisito amiúdas vezes. E hoje, agora mesmo, li o poema de João de Almeida Santos (JAS) intitulado VOAR. Voltemos por ora a Barthes: “une œuvre est ‘éternelle’, non parce qu’elle impose un sens unique à des hommes différents, mais parce qu’elle suggère des sens différents à un homme unique, qui parle toujours la même langue symbolique à travers des temps multiples: l’œuvre propose, l’homme dispose (Barthes, 2002, pp. 51-52). A premissa barthiana coloca, pois, a centralidade no leitor sendo este o que produz sentidos sobre o universo textual. É com este dispositivo que me apraz ler o poema de JAS. Não se trata, portanto, de descobrir o sentido ou a(s) verdade(s) no enunciado discursivo mas, antes, revelar as potencialidades de interpretação do próprio texto, neste caso poético. Assim, voltemos à poesia de hoje. É toda uma orquestral sinestesia com uma profusão de cores e de sensações tácteis conotadas com uma subtileza erótica (“Até que te sinta/Pulsar finalmente/Dentro de mim….”). Desfrutemos também destes versos em redondilha menor e maior, em cadência, quase uma balada: “E SEI TAMBÉM/Que as minhas asas/Terão sempre/As cores/Do arco-íris/Para com elas Voar/Sobre o vale da/Tua vida,/Montado num/Pássaro de Fogo”. O sujeito poético parece estar capturado e confinado física e psicologicamente por um afeto com dupla adjetivação “subtil e incerto”, por uma ausência com um epíteto de “insinuada” e por uma amada “distraída,/Perdida”. As metáforas e a hiperbolização são constantes no poema a adensar o tom fantasioso e lírico, numa aposta num “Inesperado/E feliz reencontro/De palavras)/ As cores/Com que, docemente,/Te vou pintando”). Emerge, de novo, a sinergia da arte (seja poética seja pictórica) como sublimação do amor vazado, metaforicamente, em versos e em pintura. Não será a arte que dá sentido a vida? Parafraseando Barthes, diremos que a poesia “fait le sens, le sens fait la vie” (Barthes, 1973, p.51).
Referências
Barthes, R. (2002). Œuvres complètes. Edição de Éric Marty. Paris: Seuil.
Barthes, R. (1973). Le plaisir du texte: Paris : Editions du Seuil.