CASTA DIVA
Poema de João de Almeida Santos Ilustração: “S/Título”. Original de minha autoria para este poema. Junho de 2020

“S/Título”. Jas. 06-2020.
POEMA – “CASTA DIVA”
SONHEI-TE Nesta noite de Verão. Eras casta. Podias ser Casta Diva. Ou não. Casta, sim, De onde nasce O meu vinho, Milagre Da natureza, Sob forma de Mulher, Mas serás Diva também Se ao poema Te trouxer. SONHO-TE Muitas vezes, Voo contigo À procura Do passado, Mas nunca eu Te sonhei Como casta Em pecado, Trepando, Pela latada, No meu Jardim Encantado. AH, A LATADA, Essa sim, Que um dia Trepou por ti Pernada acima Nesse enlace Fatal Onde me nasceu A rima, O canto Que te invoca Quando me torno Jogral. AGORA SONHO-TE ASSIM, Mulher-Rufete, Crescendo Bem alto Nas terras Do meu Jardim... ................. As voltas que O mundo dá, Neste recanto Encantado Com aroma Perfumado Da ramagem do Jasmim. CRESCES-ME Na alma Sob a forma de Enlace, Mas se agora És videira E ontem eras Jasmim, Amanhã Serás arbusto Mesmo que eu O não queira Por seres diva Para mim.

“S/Título”. Detalhe.
Num curioso ensaio sobre «Qu’est-ce que la poésie ? ou que dire de la poésie ?» Jean-Michel Maulpoix (1) apresenta uma estimulante reflexão sobre o trabalho poético: «Il est es aussi dans la vocation de la poésie de travailler sans cesse à se définir, se redéfinir». Maulpoix refere-se, nesse seu trabalho ensaístico, a diversos poetas e críticos literários que, no devir histórico, têm estudado e analisado esta temática. Neste sentido, cita Michel Déguy: «L’inquiétude de la poésie sur son essence habite la poésie dès son commencement grec. (…) Elle est étrangement ce travail à la fois aveugle et inquiet du langage qui ne peut que chercher toujours à en savoir plus sur ce qu’il fait et sur ce qui se joue en lui. À travers les propositions formelles du poème, elle remet à la fois la langue en jeu et sa propre existence en question».
Esta reflexão justifica-se, a meu ver, no comentário (singelo) que estou a esboçar sobre o poema de João de Almeida Santos (JAS) intitulado “Casta Diva” devido ao seguinte:
(i) pela reflexividade interna do poeta JAS sobre a linguagem e o seu processo criativo (“Diva/também/Se ao poema/Te trouxer”).
(ii) pelo recurso ao intratexto: na poética de JAS há elementos isotópicos (jasmim, meu jardim, perfume, arbusto, … ).
(iii) pela polissemia e intertextualidade que esta poesia convoca (o sentido plurívoco de casta, i.e,) e o tratamento dado em diversas manifestações artísticas a este tema.
(iv) e pelo trabalho meticuloso colocado na escolha da rima certa (rima toante- “Que um dia/Trepou por ti”; rima consoante: “Encantado/Perfumado”), dos lexemas apropriados, do ritmo e sonoridades que criam uma espécie de sortilégio.
É, pois, numa sinestesia de cores e de odores (“Com aroma/Perfumado/Da ramagem do/jasmim”) que JAS cria, numa prosopopeia magistral – numa clara e inequívoca articulação do texto/ imagem, a videira /mulher – fazendo jus ao seu estro poético e à sua liberdade criativa e literária. Atente-se na beleza desta estância:
“Essa sim,
Que um dia
Trepou por ti
Pernada acima
Nesse enlace
Fatal
Onde me nasceu
A rima,
O canto
Que te invoca
Quando me torno
Jogral”.
Esta estrofe encerra a semântica do poema: o poeta ( jogral), que, numa nota sensorial erotizada (“ Trepou por ti/Pernada acima”) e num tom de quase predestinação ( enlace fatal), canta o amor e a natureza, e joga, metaforicamente, com o sentido plurívoco de palavras e de imagens. Sobressai, neste poema, a expressão lírica de uma melancolia virada para a rememoração do passado (“Voo contigo/À procura/Do passado”).
(1) Maulpoix, J-M- (2005). Adieux au poème. Paris. Éditions José Corti.