Artigo

NAS PRESIDENCIAIS DISCUTE-SE POLÍTICA
(Não relações de vizinhança)

Por João de Almeida Santos
PBelem3

“A caminho de Belém…”. Jas. 10-2020

NÃO ME PARECE POLITICAMENTE MUITO SAUDÁVEL que, à esquerda, se desvalorize as eleições presidenciais, quase como se se pudesse prescindir delas. A esquerda, que sempre se caracterizou por valorizar a política contra a mera governança, tem o dever de não reduzir as presidenciais a simples política de boa vizinhança, neste caso, com um virtual vencedor, seja qual for o panorama revelado pelas sondagens. É claro que a boa vizinhança (institucional) é importante, mas não é decisiva na gestão da vida política e muito menos na mobilização da cidadania. A política deve ser feita a olhar em frente e não a olhar para o lado.

A Política e a Boa Vizinhança

Até compreendo que o PS não apresente candidato, dada a natureza da função presidencial, a sua natureza unipessoal e os números revelados pelas mais recentes sondagens. Claro que compreendo, até por razões utilitárias e de puro pragmatismo político. Até porque há sempre alguém desta área em condições de interpretar bem esta função, candidatando-se por sua conta e risco.  Mas não me parece politicamente muito interessante que no seu discurso (e falo do que tenho ouvido dos mais importantes dirigentes nacionais do PS acerca das candidaturas)  se introduza  um “mas” quando surge uma candidata desta área (e militante do partido) com provas dadas, políticas e profissionais, e batalhas travadas ou que se dê como vencedor antecipado um candidato, gerindo o discurso político em função dessa antevisão e em nome de uma futura boa vizinhança e de (discutíveis) perfis psicológicos dos candidatos, uma variável, esta, sempre muito delicada e incerta.

A Democracia Televisiva

 O provável candidato Marcelo Rebelo de Sousa interpretou bem a fase de transição de uma Presidência altamente crispada para uma nova Presidência menos distante. Sem dúvida. Mas também é verdade que descrispou tanto que acabou por retirar “gravitas” ou densidade à função presidencial. De oito passou para oitenta. Da solidão do palácio de Belém saiu para a rua e por lá ficou, materializando o personagem televisivo e a audiência nas ruas e nas praças deste país, sempre com uma câmara de filmar por perto como se a realidade ganhasse mais realismo se filmada.  A verdade, não esqueçamos, é que a génese da sua presidência (diria mesmo da sua vida política) se localiza no universo mediático, sobretudo televisivo, de onde saiu directamente para a arena política, ainda que, entretanto, tenha passado por algumas experiências políticas de relevo, votadas, todavia, todas elas ao insucesso. De resto, Marcelo Rebelo de Sousa não é, neste aspecto, muito original. Ronald Reagan, Schwarzenegger, Ross Perot, Donald Trump, Silvio Berlusconi saíram directamente da tela ou do monitor para a política em posição de vencedores (à excepção de Ross Perot, que, todavia, à base de talk shows televisivos, conseguiu cerca de 20% dos eleitores americanos nas presidenciais). Como se vê, neste terreno não se têm afirmado lideranças de esquerda.

É verdade que o conceito de “televisual democracy” já circula nos livros de teoria política e, neste caso, bem se poderá dizer que todos estes personagens são políticos orgânicos desta “democracia televisiva”. São expressão acabada do processo de confiscação televisiva do discurso político que se iniciou nos anos cinquenta nos USA com o nascimento do marketing político e da posterior conversão da política de comunicação dos Estados Unidos em narrativa sobre o Presidente, através da criação do “Office of White House Communications”, que acabou entregue a um relações públicas, com Nixon. É certo que Berlusconi, não sendo um personagem televisivo, controlava quase metade da audiência italiana de televisão e mais de sessenta e cinco por cento da publicidade televisiva e que, com Trump, algo mudou pois já se estava na era das redes sociais, mas sendo também certo que saiu do monitor onde se lançara com The Apprentice. A “democracia televisiva”, ou “democracia do público” (B. Manin, A. Minc), onde o público ocupa o lugar do cidadão, tem, pois, os seus agentes orgânicos, os seus intelectuais orgânicos, os seus anchormen e jornalistas. Que não são personagens “naturaliter”, como diria Bobbio, de esquerda. Não me parece, pois, que esta moldura política deva ser adoptada no discurso da esquerda. Afinal, as presidenciais talvez sejam a melhor ocasião para discutir política com alguma profundidade, libertas que estão (pela própria natureza da função presidencial) das discussões acerca dos concretos “cadernos de encargos” para uma boa “governança”.

Uma Política Tablóide?

E a verdade é que Marcelo Rebelo de Sousa se coloca inteiramente nesta linha e a interpreta diariamente, em prime time e com profissionalismo. É um personagem “catch-all”. E surge como um político orgânico da narrativa televisiva sobre o mundo, colhendo, sem dúvida, grandes dividendos em termos de audiência e de conquista do consenso, mas sofrendo também dos males da narrativa mediática, onde a televisão surge como “príncipe dos media” (Denis McQuail). Ou seja, a narrativa mediática que mais sucesso apresenta em termos de captação de audiências é a que adopta a estratégia tablóide, que, em geral, se alimenta do negativo (assuma que forma assumir) e das chamadas estórias de “interesse humano”, uma fonte infindável de notícias para uma estratégia sensacionalista ou tablóide. Estas duas orientações, duas faces da mesma moeda, dominando o discurso televisivo, não podem deixar de influenciar também os seus protagonistas e intérpretes políticos. E MRS era e é um relevante e quotidiano protagonista deste espaço público à procura de afecto. Ele recebe na própria medida em que dá e, neste fluxo virtuoso, o consenso revigora-se e o personagem consolida-se como espelho do público, mais do que como espelho do cidadão. Resta saber se a política é isto e se o nosso destino é traçado à medida de um monitor televisivo.

O que pretendo dizer é que mesmo que o meio não seja a mensagem, contrariando a tese de McLuhan, os seus protagonistas estão em grande parte capturados pelo meio, podendo mesmo desenvolver-se algo parecido com uma síndroma (televisiva) de Estocolmo. Pouca política e muito espectáculo. Panem et circenses. E muito afecto, sempre de circunstância (televisiva), “interesse humano”, ou seja, interesse por histórias individuais exemplares ou ilustrativas do emocional, do risco, do drama, da dor. Política tablóide, numa permanente vertigem emocional de identificação com o público, em especial com aquele que sofre. MRS pode, assim, ser lido a partir deste código, sendo muito plausível a assertividade de uma leitura deste tipo. E talvez até de um certo populismo, embora politicamente algo inconsequente.

Mas creio ser óbvio que no ADN da esquerda de inspiração iluminista e racionalista, onde se inscreve o PS, não esteja uma adesão política a este estilo de narrativa. Bem pelo contrário, a esquerda sempre recusou este tipo de aproximação à política, valorizando mais o discurso analítico e desprezando militantemente o tabloidismo e o populismo. A minha pergunta é a seguinte: mas o PS não precisa de afirmar uma visão do mundo e do papel da política na sociedade para além da visão televisiva do mundo e da sua redução à ideia de governança? O que eu creio é que a ideia de hegemonia (no sentido gramsciano) é algo que anda muito arredada da “intellighentsia” do PS numa época em que a crise assalta drasticamente a doutrina do socialismo democrático e da social-democracia, ou seja, o centro-esquerda.

Presidenciais: uma oportunidade para discutir política

É por isso que também nestas eleições o centro-esquerda deveria, em nome da boa tradição da esquerda, repor a centralidade da política relativamente quer à lógica da mera governança quer à lógica do tabloidismo político ou à própria política do “interesse humano” tão praticada pelo sensacionalismo informativo e pelo seu congénere político. A identidade política algo simulacral do simpático Marcelo Rebelo de Sousa, a política como mera boa vizinhança, o império da democracia televisiva, a política do “interesse humano”, que tem como contraponto a lógica da fria governança, não creio que estejam, de perto ou de longe, na matriz ideológica da esquerda e, por isso, uma cumplicidade real do PS com a candidatura de Marcelo Rebelo de Sousa desvirtuará aquela que deve ser a inspiração e o alimento ideal de quem se sente à esquerda. Uma posição destas equivalerá a que o PS declare como ociosas as eleições presidenciais, deixando subentendido que, nesta circunstância, poderiam nem se realizar. Não ponho em causa que possa haver liberdade de voto para os militantes e que não haja posição formal do PS. O que julgo ser péssimo é haver uma posição de implícito apoio a MRS, através de declarações dos seus principais dirigentes nacionais e da neutralização da máquina partidária e da militância neste sentido. Por isso, considero que esta pode ser a ocasião para os militantes do PS agarrarem a política com as duas mãos e irem ao combate, mostrando a Augusto Santos Silva, a Carlos César, a Ferro Rodrigues e a Fernando Medina que o PS não é redutível a mera massa de manobra dos seus dirigentes do momento nem a audiência de uma qualquer “democracia televisiva”. Como militante socialista, com as quotas em dia, não seguirei esta orientação e apoiarei a candidata que representa o centro-esquerda e o socialismo democrático. Não gosto da televisão que temos, não gosto da “democracia televisiva” e não gosto que se reduza a política ao culto de relações diplomáticas de vizinhança entre o inquilino de S. Bento e o inquilino de Belém. Que a direita o faça, é compreensível pela sua própria natureza e identidade, mas que a esquerda o faça é incompreensível. Sobretudo quando estamos a assistir a uma grave anemia política do socialismo democrático e da social-democracia um pouco por todo o lado. E não creio que tenhamos entre nós um Obelix do centro-esquerda que nos defenda da crise.#Jas@10.2020 

PBelem3Rec

“A caminho de Belém…”. Detalhe.

2 thoughts on “Artigo

  1. Excelente artigo João. Concordo com o que aqui afirmas. O centro esquerda onde se insere o PS e em nome da boa tradição da esquerda e do próprio partido, deveria aparesentar um candidato próprio que desse à esquerda a dimensão política que estas eleições merecem, não deixando transparecer para a opinião pública o apoio implicíto a MRS, numa atitude de exclusão e neutralização política relativamente a umas eleições tão importante como são as presidenciais. Carlos Gonçalves

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