TRÊS DE NOVEMBRO
Por João de Almeida Santos

“Aguas Profundas”. Jas. 10-2020.
ARTIGO – “TRÊS DE NOVEMBRO”
TEMO O DIA 3 DE NOVEMBRO. Por duas razões. Em primeiro lugar, que a maior potência mundial continue a ser governada por alguém que claramente não tem condições para tal, nem subjectivas nem objectivas, com todas as consequências que isso terá na política mundial. Se em 2016 o então candidato já não era uma incógnita, em 2020, com quatro anos de governo e de exposição pública diária, parece ser evidente que Donald John Trump não tem condições para desempenhar um cargo de tamanha responsabilidade, tendo-se confirmado as piores suspeitas. Os eleitores americanos decidirão e ficaremos, então, a saber muito sobre a América profunda. Em segundo lugar, porque há o risco de a política, ela própria, atingir o seu grau zero numa grande democracia com tremendas responsabilidades perante o mundo, se é verdade que os USA sempre anteciparam as tendências evolutivas da prática política mundial em contexto democrático de inspiração liberal.
O Valor da Credibilidade
FIXO-ME, POIS, NESTE SEGUNDO ASPECTO. Se mesmo com a gigantesca crise do COVID19, a maior e pior gerida (juntamente com o Brasil) à escala planetária, se com um presidente que não só não paga os impostos devidos, mas que também se recusa a mostrar as suas declarações de impostos, ainda assim, os americanos o votarem, ficaremos a saber que a ideia de política ficou reduzida à ideia de poder e que o voto até pode servir para legitimar tudo e o contrário de tudo. Na História há exemplos trágicos disto. Mas também seria uma ocasião para que os inimigos da democracia passassem ao ataque do sufrágio universal, declarando inútil o próprio voto e, consequentemente, a própria democracia.
Todos sabemos que a política está em profunda crise, que o tempo das grandes narrativas acabou, que os grandes grupos económicos e financeiros multinacionais é que determinam as crises ou a ausência delas, que os Estados nacionais já se tornaram impotentes para as travar, mas que não há instâncias supranacionais com reais poderes de regulação e controlo, que vivemos gravíssimas crises, a do ecossistema e a sanitária mundial, e que também está a acontecer uma profunda revolução no funcionamento das sociedades com o aparecimento e a difusão das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC), da rede, em geral, e das redes sociais, com a emergência, segundo alguns, de um novo capitalismo digital, o “capitalismo da vigilância” (Shoshana Zuboff) – então, um ulterior abaixamento de nível da política no mais poderoso país do mundo irá contribuir para aprofundar ainda mais a crise e talvez provocar o maior retrocesso civilizacional, desde o fim da segunda guerra mundial. Retrocesso na prática e no plano simbólico, sabendo-se, desde os tempos do sociólogo francês Gabriel Tarde, que a acção por imitação é um dos mecanismos centrais de funcionamento das sociedades.
Donald John Trump e o Twitter
NÃO SEI BEM como caracterizar o Presidente Trump, do ponto de vista político, quer no plano das ideias quer como personagem. Ele respira politicamente ao ritmo de tweets, faz diplomacia, toma decisões e comunica-as usando esse instrumento ultraleve da comunicação, o Twitter, onde não é possível fundamentar e legitimar nada, porque é pouco mais do que uma máquina de interjeições e de murmúrios, neste caso altamente ruidosos. Suspiros políticos que exprimem estados de alma à velocidade da luz e com a força de um trovão. Twitto, logo existo. Puro cartesianismo político. E como o Twitter é o instrumento apropriado para o pensamento light, também o pensamento se redimensiona cada vez mais à medida do Twitter. E se o meio for a mensagem, como dizia McLuhan, estamos mesmo conversados. Já não bastava o império da imagem para retirar gravitas, densidade ao discurso político e para lhe subtrair a componente analítica e fundamentadora, que agora é o próprio discurso escrito a perder também ele a dimensão analítica e a reduzir-se a pouco mais do que a sound bite. O irracional entrou no discurso político para ficar e ocupou-o totalmente. A palavra aproxima-se assustadoramente da imagem (mas não se trata de poesia, entendamo-nos) e as grandes narrativas ideológicas já são vagas lembranças do passado. Assim vai a política. À velocidade de um tweet, agora já praticado regularmente e com gosto fora das terras de América.
O que que se seguirá? Um pensamento político ao nível do sound-bite, da imagem cenografada e de tweets de poucas linhas. Pensamento sem conteúdo a que correspondem, depois, conteúdos práticos, na acção política, sem pensamento, mas encharcados até à medula de doses maciças de interesses da mais variada índole, excluído naturalmente o interesse geral, considerado residual e descartável. Mas, sim, se Trump ganhar ficamos sem palavras para falar de política. Será o triunfo do cataventismo, do irracional, das fake news, misturados com um vago nacionalismo interesseiro e xenófobo, traduzido numa fórmula sem significado: “America first!”.
Questões de Fundo
ESTRANHO, NÃO É? Um personagem como Trump a suceder a Obama, um Presidente negro, charmoso, elegante, culto, politicamente habilidoso e moderadamente progressista. Culpa de Hillary Clinton, a tão vituperada e gélida candidata do sistema que perdeu para o programa televisivo The Apprentice e o seu personagem principal? Não creio. Afinal até teve cerca de três milhões de votos mais do que Trump, mas que não se traduziram em delegados devido ao sistema de eleição presidencial e ao trabalho meticuloso da Cambridge Analytica. A razão de fundo é a mesma que explica o surto e o crescimento dos movimentos da direita populista e soberanista na Europa. A fadiga do sistema. O seu cinzentismo. O politicamente correcto. A redução da política a mera “governance”. A ausência de alma no exercício político. A revolta dos indignados pelo afastamento das elites do povo. A rebelião das massas? Uma mistura explosiva, a da televisão com as redes sociais e os algoritmos, que foi o que se verificou em 2016?
Mas, digamos a verdade, quatro anos depois, o poder já chegou ao povo? Ou esse mesmo povo já está a ser vítima em grande escala da impreparação do homem que pretensamente o vinha resgatar das mãos das elites de Washington? Iremos assistir a um regresso de Washington pela mão de Joe Biden e dos democratas? À desforra do sistema contra o anti-sistema? Ao regresso do mesmo, daqueles que foram a razão primeira da derrota de Hillary Clinton e da vitória de Donald Trump, em 2016?
Talvez. E confesso que nunca desejei tanto que o sistema vencesse como agora, porque o mundo está cada vez mais perigoso, cheio de pregadores, de vendedores de banha da cobra, de falsos profetas, apesar de se dizer que, afinal, ninguém é profeta na própria casa. A crer-se nas sondagens, a desforra está para breve: três de Novembro. Sim, e ficaremos mais tranquilos. E a política voltará a entrar pela porta principal. Mas voltaremos ao passado, ao mesmo, e o cansaço voltará rapidamente a abrir as portas de par em par a novos pregadores que apelem à rebelião das massas, agitando no ar digital um Twitter?
Temo que tudo volte ao mesmo… quando tudo mudou. E, se assim for, até o mais humilde transformista parecerá ser um revolucionário. #JAS@10.2020

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