Artigo

A AGORÁ DIGITAL E A DEMOCRACIA

Por João de Almeida Santos

NetflixRedes3

“S/Título”. Jas. 06-2021.

ANDA POR AÍ UM DEBATE, muito polarizado à direita, acerca da Lei 27/2021, de 17.05, ou seja, sobre a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital. Mas talvez o debate devesse começar logo pelo nome da lei. A Carta não deveria  ter como título “Carta Portuguesa de Direitos e Deveres na Era Digital”? No meu entendimento, humanos está a mais e deveres, ou responsabilidades, a menos. O politicamente correcto infiltrou-se logo no título: os direitos, se não são humanos, o que são? Mesmo os dos animais são definidos pelos humanos. Ou não? Afinal, trata-se de uma lei sobre direitos (e deveres) específicos. Ou seja, a palavra não era necessária. Mas está lá:  um revelador tique linguístico, como tantos outros da linguagem identitária, neutra e inclusiva, que já cansam. Não é pela palavra, claro, mas pelo que ela revela e pelo histórico que traz consigo (por exemplo, a alteração de títulos, historicamente datados, onde figura a palavra homem para designar humano). Depois, em Portugal fala-se muito em direitos, liberdades e garantias e pouco, ou nada, em deveres e responsabilidades. Uma falha da esquerda detectada pelo Anthony Giddens, quando ganhou vida a tão execrada “terceira via” pelos ortodoxos da social-democracia, e que o levou a dizer, e bem: “no rights without responsabilities”.

DUAS VISÕES OPOSTAS

O debate acontece entre os que acham que a Rede (mas sobretudo as redes sociais) é a praça pública da turba ululante, o reino selvático dos ignorantes e da “gritaria” e os que acham que esta é a praça da liberdade onde tudo pode ser dito sem qualquer controlo ou responsabilidade. Mas é claro que quando a liberdade aumenta também a exigência de responsabilidade cresce.  Os primeiros são os que sempre se acharam donos do espaço público, detendo o monopólio do acesso a este espaço, os famosos “gatekeepers”; os outros são os guardiões da primeira emenda da Constituição americana, os que definem a liberdade de forma negativa, ou seja, os que atribuem ao Estado uma mera função supletiva e, portanto, os que defendem que o Estado não se deve intrometer nos assuntos da sociedade civil e sobretudo da nova praça pública. É nesta linha que se inscreve o artigo de Rui Ramos no Observador (“A oligarquia não quer que lhe gritem”), de 28.05.2021. Um artigo sério, que, no essencial, não subscrevo, mas que contém algumas observações pertinentes.

Eu diria, para que fique já clara a minha posição, que nem tanto ao mar nem tanto à terra: nem saudosistas do monopólio de acesso ao espaço público nem defensores da lei da selva digital. Uma coisa é certa: a realidade digital veio para ficar e é transversal a todas as actividades. É assunto relevante, portanto. E tem de ser discutido com seriedade e sem radicalismos.

A NOVIDADE

As TICs, as tecnologias da informação e da comunicação, são conhecidas como as tecnologias da liberdade. Porquê? Porque permitem acesso livre da cidadania ao espaço público no duplo sentido da obtenção da informação e da prestação de informação. À escala mundial. A palavra que já se usa para designar os utilizadores é “prosumer”, produtor e consumidor de informação.

Ora a questão em causa é a de saber se se deve ou não regular especificamente esta área, quer por parte do Estado, legislando, como agora aconteceu com a Lei 27/2021, quer por parte das grandes plataformas, através de códigos éticos ou de protocolos a estabelecer com as autoridades políticas nacionais ou supranacionais, como também já aconteceu durante as últimas eleições para o Parlamento Europeu. Questão esta ligada à definição da identidade das plataformas em matéria de comunicação, designadamente em termos comparativos com os clássicos media. Uma coisa é certa: as plataformas não editam conteúdos, porque são os utilizadores a fazê-lo. São pois muito diferentes dos media, neste aspecto. E também noutro: não se trata de comunicação de tipo broadcasting unidireccional e vertical, mas sim de comunicação horizontal entre os utilizadores, de forma não hierárquica. Na verdade, as plataformas são espaços privados, mas abertos, onde os utilizadores podem agir livremente e sem custos (e deixo aqui, intencionalmente, por tratar as questões levantadas pelo livro da Shoshana Zuboff e pelo Documentário da NETFLIX, questões que aqui tenho vindo a tratar em vários artigos). O que sobra é, pois, a questão da regulação da rede, da intervenção do Estado e das plataformas em matéria de conteúdos.

A LEI 27/2021

No essencial, no debate trata-se do que a lei designa por desinformação (art. 6 da Lei 27/2021). Coisa, de resto, não nova. Os media têm (desde finais do século XVII) códigos éticos de diferentes autorias que regulam a prática informativa (com princípios como a objectividade, a neutralidade e a imparcialidade, por exemplo); existem entidades reguladoras públicas com poder sancionatório e existem leis que tipificam os crimes por abuso da liberdade de imprensa. Qual é, pois, o problema em aplicar esta realidade ao universo digital, de resto, num plano muitíssimo mais mitigado porque se trata exclusivamente de comportamentos de fronteira legalmente sujeitos a sanção? A questão não se pode pôr apenas a jusante e mediante intervenção do poder judicial, como quer Rui Ramos, pela simples razão de que isso não seria suficiente para evitar os abusos e as malfeitorias. O mal já estaria há muito feito e teria produzido os seus efeitos. Todos conhecemos a lentidão da justiça e todos sabemos que é necessário criar mecanismos que previnam comportamentos desviantes ou criminalidade. E isso já existe na sociedade. Mas também sabemos que o poder democrático é um poder legítimo e que, em princípio, não está lá para perseguir a cidadania, mas sim para a servir. Seja à direita seja à esquerda. E, neste caso concreto, não me parece que o PS seja um partido com vocação autoritária. Se fosse como Rui Ramos diz nem se compreenderia a existência das próprias entidades reguladoras e dos poderes que lhes estão cometidos (e isto apesar da sua evidente ineficiência). Nem sequer a existência de “contratos de concessão de serviço público de televisão” com todas as cláusulas de salvaguarda de uma informação isenta. Como não se compreenderia que as plataformas não pudessem impedir, em terreno de sua propriedade, como de resto acontece com os media, comportamentos atentatórios de princípios base de convivência civil, legalmente sancionáveis. Pois bem, esta lei vem definir o quadro de princípios que não pode ser violado, inclusivamente pelas plataformas, oferecendo uma orientação normativa que estas deverão respeitar na suas intervenções de gestão e controlo. Como disse, a assinatura de protocolos entre as plataformas (Google, Facebook, Twitter e Youtube) e a Comissão Europeia contra a desinformação já se verificou pelo menos uma vez e com resultados satisfatórios. E um relacionamento entre o poder político democrático e as plataformas com vista a uma regulação do uso deste espaço público não só é possível como desejável. Não há liberdade que não traga consigo o compromisso da responsabilidade. Liberdade máxima, responsabilidade máxima. O que nem sequer é o caso. Who cares?

UM CORREDOR PARA O AUTORITARISMO?

Não me parece que esta lei possa constituir um perigoso canal de passagem para o autoritarismo comunicacional e político; não é impositiva em matéria de linguagem e o que se espera é que os avanços do politicamente correcto não acabem por contaminar as práticas governativas também nesta área (e na lei há marcas disso); é muito positiva na promoção das condições de acesso ao digital nas várias frentes que este acesso implica, desde as infraestruturas até à literacia digital; é clara e directa na definição do que considera desinformação para efeitos de controlo impositivo. Tudo aspectos que há que valorizar.

Mas há alguns aspectos que merecem um sério reparo. Um deles, que me parece absolutamente inaceitável, o disposto no n. 6 do art. 6.º, diz isto: “O Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados”. Um hino aos polígrafos conduzidos por jornalistas pouco praticantes dos seus próprios “códigos éticos”? Os órgãos de comunicação social promovidos pela lei a polícias da rede? Um incentivo de má memória que quer a sociedade a policiar-se a si própria? Qual é, afinal, o papel da ERC? As entidades reguladoras surgiram para proteger os media das injunções do Estado e para proteger os jornalistas, mas, hoje, com a privatização generalizada da comunicação social, elas têm mais como função proteger a cidadania dos abusos informativos dos media. Agora são os media a policiar a cidadania e as suas acções em ambiente digital? Onde é que isto vai parar? O legislador foi longe demais, não se sabe bem se para proteger os media do concorrente digital, atribuindo-lhe um estranho poder com chancela institucional, se por interesseira e lamentável cumplicidade. Também não se compreende o alcance do n.º 2 do art. 6 quando fala de desinformação relativamente “aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos”. Sim, isto pode ser interpretado como a lógica do cavalo de Tróia. Desinformação é desinformação quer seja sobre políticas públicas ou sobre outra matéria qualquer. E tem de ser desinformação punível por lei penal porque gravemente atentatória da convivência civil. Por que razão são referidas as políticas públicas e os bens públicos, matéria que é do foro do posicionamento e do combate político? Há, aqui, um claro excesso de zelo que acaba por desvirtuar este quadro normativo e por induzir fracturas politicamente indesejáveis. Como se vê na polarização política de uma matéria que deveria ser consensual.

CONCLUSÃO

Posto isto, não me parece aceitável olhar para esta realidade como faz Rui Ramos no seu artigo, ou seja, considerando a lei “grotesca” e defendendo uma total desregulação deste sector, hoje acessível à maioria dos cidadãos e garantindo a lei direitos de acesso universal nos vários planos em que o digital se processa. Mas também não me parece aceitável a guerra aberta que os poderes convencionais vêm declarando às plataformas, consideradas não só como um poder ameaçador, mas também, ou sobretudo, como dando voz ao poder da rua sobre as instituições. No meu entendimento o que é preciso dizer é que esta realidade mudou e que o espectro do espaço público se alargou, dando possibilidade à cidadania de se exprimir sem pedir licença aos antigos donos do espaço público. Mas é claro que uma revolução como esta traz também consigo outras exigências. E uma delas é a da necessidade de regulação relativamente aos riscos que uma liberdade desta dimensão traz consigo. Regulação do uso, regulação relativamente à instrumentalização dos dados dos utilizadores, regulação do controlo. Sim, mas é também necessário preservar o essencial, ou seja, a abertura do espaço público ao sujeito singular sem que este tenha de pedir licença a controleiros encartados ao serviço das respectivas empresas de comunicação social e pouco respeitadores dos códigos éticos. E este espaço, para que seja efectivamente um espaço de liberdade, não pode ser um imenso território onde poderes fortes e altamente organizados atentem gravemente contra os valores de uma cidadania responsável. Devem, pois, os poderes públicos legítimos e democráticos garantir, através de regulação, uma vida normal em ambiente digital, dialogando, para isso, com as plataformas no que diga respeito às prerrogativas da cidadania em território nacional.

Portanto, regular, sim, mas preservando o essencial, ou seja, a superação do monopólio da intermediação e o processo de progressiva desintermediação e instalação da comunicação em rede. Em síntese, condições para uma progressiva emancipação da cidadania. Por isso, eu vejo nesta lei (com as devidas correcções) a oportunidade para pôr ordem no caos digital, para valorizar este ambiente e para alargar os canais de participação política da cidadania. O que se espera é que o politicamente correcto não comece, também aqui, a ditar lei, como já vem acontecendo em tantas matérias da esfera pública. De resto, creio mesmo que é a este perigo que os críticos se referem, não a uma eventual matriz autoritária do PS.

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