Reflexões sobre a Arte – A Dança
DO BALLET AO TEATRODANÇA
João de Almeida Santos

“Il Ballo”. Jas.07-2021.
TENHO, AQUI, VINDO A DESENVOLVER algumas reflexões sobre a arte, em particular sobre a poesia e a pintura, procurando determinar, não só a identidade formal de uma obra de arte, mas também as variáveis fundamentais que a integram quer na óptica do criador quer na óptica do fruidor, visto o relativismo a que está sujeito o juízo de gosto. Procuro hoje desenvolver uma reflexão global sobre a dança, desde os seus primórdios como arte, do ballet à modern dance, para chegar, depois, à riquíssima obra de Pina Bausch, ao Tanztheater. Este caso é particularmente significativo na discussão acerca da natureza da arte, acerca do belo e da dimensão cognitiva da expressão artística, num género que parece apontar para uma identificação da arte como desvelamento de sentido, revelação, como verdade, no sentido da palavra grega (alêtheia), e, por isso, como expressão estética com dimensão verdadeiramente ontológica. Veremos por que razão. Começo, pois, por identificar as variáveis fundamentais que integram o bailado enquanto arte, nos seus primórdios, para depois traçar a sua evolução até ao Tanztheater, sobre o qual farei uma reflexão mais aprofundada, para chegar a uma conclusão acerca da natureza da dança como arte e da arte em geral, retomando algumas considerações de um recente ensaio que aqui publiquei sobre a arte em van Gogh e Heidegger.
A ilustração é um original de minha autoria que alude às variáveis presentes na obra da grande coreógrafa alemã. Junto, assim, à reflexão, um exercício de pintura sobre o mesmo tema.
I. AS ORIGENS DO BALLET
- Por ballet pode entender-se hoje uma forma de arte centrada na dança e construída através de movimentos (sete, fundamentais, na dança clássica: «plier», «étendre», «relever», «élancer», «glisser», «sauter», «tourner»), figuras, gestos, passos, posições que ganham sentido plástico num «espaço» coreográfico mais global que compreende, além da geometrização corporal do movimento, música, cenografia e guarda‑roupa (Vittoria Ottolenghi).
ORIGINARIAMENTE, e até há bem pouco tempo, o termo ballet referia-se sobretudo à chamada dança clássica, académica ou d’école, que mergulhava as suas raízes mais remotas numa linguagem coreográfica nascida nas cortes renascentistas italianas e francesas e codificada, primeiro, por Beauchamps, em finais do séc. XVII, na Académie Royale de Danse (fundada pelo «Rei bailarino», Luís XIV, em 1661), depois, no séc. XIX, pelo napolitano Carlo Blasis (1795‑1878), verdadeiro pai da técnica do ballet clássico (no Tratado teórico, prático e elementar sobre a arte da dança) e, no séc. XIX/XX, pelo romano Enrico Cecchetti (1850‑1928), cujo método persiste, ainda hoje, como fundamento do ensino do ballet clássico.
O ballet nasceu em Itália, como «ballo di corte». Além da dança, da música, do canto e da recitação, implicava também, na maior parte das vezes, elementos cenográficos móveis e muito elaborados. O «ballo di corte» difundiu-se em França nos fins do séc. XV e, nos séculos XVI e XVII, com o nome de «ballet de cour», tornou‑se o espectáculo de corte por excelência. Desde então, e até finais do séc. XVII, a história do ballet é, em grande parte, a história do «ballet de cour» francês. Com Lully, compositor francês de origem italiana, o ballet de corte evoluiu em sentido teatral e moderno, a «opéra-ballet» e a «comédie-ballet»: tratava-se de verdadeiras óperas ou comédias nas quais a dança, entendida também como pantomima nobre ou cómica, era um dos elementos fundamentais (embora ainda com carácter essencialmente ornamental) e já executada por bailarinos profissionais. Após crise, no séc. XVIII, Georges Noverre (1727‑1810) introduziu o «ballet d’action», qual tentativa bem precoce de fusão da dança com o teatro, ao mesmo tempo que o napolitano Salvatore Viganò (1769‑1821), sob inspiração dos trabalhos de Noverre, criava os fabulosos «coreodramas», que exprimiam uma unidade intrínseca e expressivamente autónoma de dança, de pantomima e de música. Não por acaso, Fokine, já no séc. XX, retomou o «coreodrama» de Viganò, fazendo dele um importante ponto de referência da coreografia contemporânea.
Mas o momento essencial da história do ballet foi a introdução das «pontas», em período romântico, 1829, “por obra” de Filippo Taglioni (1777‑1871) «e graça» de sua filha, a etérea Maria Taglioni (1804‑1884). Desde então, tal técnica alargou‑se aos palcos de toda a Europa, dando origem a belíssimas figuras femininas, etéreas, pálidas, transparentes que, depois de 1832, não mais haveriam de largar, no típico e universal ballet romântico, aquele famoso complemento das pontas que é o «tutu», também criado por F. Taglioni para La Sylphide (1832). Ambos, «pontas» e «tutu», viriam a constituir os elementos figurativos característicos do ballet romântico e, por extensão, do ballet clássico. A ideia de mulher ideal, etérea, transparente, sobrenatural, irreal é, aliás, bem traduzida cenograficamente precisamente pela transparência e pela inocuidade cromática do «tutu» e pelas «pontas» (sempre cor-de-rosa pálido). Mas toda a ideia de leveza quase irreal, já dada quer no carácter «fabuloso» do conteúdo narrativo quer no aspecto sempre idílico e paradisíaco da cenografia, era traduzida por dois elementos técnicos essenciais, a élévation e o ballon, que exprimiam o domínio da espiritualidade sobre um corpo que, «animado», consegue não só elevar-se do solo (élévation), mas mesmo ficar como que suspenso no ar (ballon) ou, de qualquer modo, contrariar a lei da gravidade.
- Clássicos ballets românticos são, além de La Sylphide, Giselle (1841), Copélia (1870), O lago dos Cisnes (1877), A Bela Adormecida (1890), O Quebra‑Nozes (1892).
O ballet romântico, como se sabe, impôs-se de tal modo que até há bem pouco tempo dominava em absoluto os palcos de todo o mundo, reduzindo, perante o grande público, naturalmente, a própria ideia de ballet ao seu conceito romântico: dança de conteúdo narrativo «fabuloso» e idílico executada com virtuosismo técnico e, sobretudo, rigidamente predeterminada nas figuras, nos passos, nas posições.
II. DOS “BALLETS RUSSES” AO “TEATRODANÇA”
FOI O EMPRESÁRIO RUSSO DIAGHILEV (1872‑1929), com os Ballets Russes, o grande propulsor do ballet de vanguarda do séc. XX e promotor de uma galeria de coreógrafos que haveriam de marcar o futuro da dança até hoje:
- Fokine (1880-1942); Nijinsky (1890‑1950),
Massine (1896‑1979), Balanchine (1904‑1983).
Simultaneamente, nos EUA, começava a despontar uma geração que iria romper, de modo muito mais radical do que os Ballets Russes, com o ballet clássico, inaugurando aquela «modern dance» que hoje influencia poderosamente o mundo da dança: Isadora Duncan (1878‑1927) e Marta Graham (1894-1991), entre outras. Se os Ballets Russes sempre mantiveram um contacto estrutural com o ballet clássico, pelo menos no plano técnico-formal, o mesmo já não acontece, por exemplo, com I. Duncan: ela visava uma crítica global do ballet d’école, procurando superar não só a rígida pré-determinação formal do movimento, mas também, obviamente, os «invólucros» corporais através dos quais se exprimia, «pontas», «tutus», etc., libertando, de uma só vez, o corpo.
O movimento que se inicia com Diaghilev e com I. Duncan marca de modo mais ou menos revolucionário o nascimento de formas de dança novas em relação ao tradicional ballet blanc, sejam elas mais radicais como, por exemplo, a modern danceproposta por Marta Graham, grande inovadora quer no plano coreográfico e expressivo quer no plano estritamente técnico (técnica Graham: contraction‑release), ou por um Merce Cunningham (1919-2009), cultor de uma lógica pura do movimento em chave relacional, não por acaso ligado às experiências do compositor americano de vanguarda John Cage, ou, então, menos radicais, como Balanchine, que recupera em chave moderna as virtualidades formais do sistema académico‑clássico conjugadas com a mecânica construtiva do discurso musical.
A nova dança caracteriza‑se, nos seus traços mais universais, por uma absoluta centralidade concedida a um corpo‑sujeito (e não simples instrumento operativo e ornamental subordinado, ao serviço de oníricos conteúdos narrativos) produtor de geometrias esteticamente expressivas e de sentido, e, de qualquer modo, fonte de expressividade construída através do movimento e de figurações. Um corpo-sujeito autor de movimentos e figuras no espaço cenográfico, numa linguagem própria. Neste novo mundo da dança, a comunicação estética pode assumir formas com dominante semântica ou pode exprimir-se através de puras formas geometricamente expressivas, figuras em movimento ou em equilíbrios progressivos, mas descontínuos. Ou seja a descontinuidade (ou o contraponto) como elemento diferenciador relativamemte à rítmica musical que acompanha o movimento. A dança moderna pode, assim, assumir-se como um são e livre formalismo aleatório de tipo relacional, mais próximo de um Cunningham do que do ballet abstracto ou neoclássico de um Balanchine, ou, então, assumir‑se como dança expressiva, cenográfica e coreograficamente rica, densa e figurativamente significativa, mais próxima de um Maurice Béjart (1927-2007) ou de uma Marta Graham, ou mesmo fundir‑se ela própria expressivamente com outra forma estética de «reinvenção» essencial do mundo da vida ‑ o teatro ‑, como no teatrodança de Pina Bausch (1940-2009), como veremos. A descontinuidade que marca a transição do ballet d’école para o ballet moderno, a modern dance ou o teatrodança exprime-se essencialmente na passagem de uma construção narrativa e sua expressão coreográfica – através de movimentos, posições, figuras, passos subordinados, articulados como mera ilustração de um conteúdo narrativo pévio, de uma semântica externa – a uma produção directa de sentido por um corpo-sujeito; quando da condição de puro instrumento narrativo e ornamental o corpo passa à condição de sujeito livre, construtor de sentido, produtor directo de formas e figuras esteticamente expressivas, ponto de partida para a comunicação estética. Em síntese, o corpo liberta-se e autonomiza-se como produtor directo de significado esteticamente expressivo. É o que acontece de forma muito intensa em Pina Bausch e no seu Tanztheater.
III. O TEATRODANÇA – PINA BAUSCH OU A DANÇA EM MOVIOLA
- «O fim é sempre o teatrodança, entendido como forma e técnica da coreografia dramática em relação ao seu libreto, à música e, em primeiro lugar, aos seus intérpretes; na escola e no «Tanzstudio» a nova técnica de dança deve tornar-se o medium suprapessoal, objectivo da dança dramática, até incluir gradualmente na nova disciplina a dança clássica tradicional». Kurt Jooss
MOVIOLA
HÁ NESTAS AFIRMAÇÕES de Jooss (1901‑1979) uma ideia recorrente na dança moderna: retomar, após a libertação do corpo e a superação da rigidez das fórmulas clássico-académicas, o património técnico do ballet clássico, pondo‑o ao serviço do novo sujeito-corpo, doravante senhor do seu próprio mundo estético-expressivo e livre criador de sentido. Não sei até que ponto Pina Bausch, que de Jooss foi discípula, fez realmente este esforço de reconciliação produtiva com o património clássico. É certo que do teatrodança de Bausch não se pode dizer que seja «belo», se por beleza se entender uma certa quietude e harmonia de formas e movimento. Bausch é violenta, agressiva. É fragmentária. Analítica. E, todavia, produz arte, se a entendermos como expressão intensiva, essencial e estilizada de relações que escapam ao olhar distraído e, de algum modo, predeterminado do nosso quotidiano. «Nalguns pontos, diz Bausch, é possível ver tudo, mesmo se procurámos controlar-nos (…), é possível ver também onde há algo de reprimido. Existem ainda pontos críticos onde as pessoas não pensam em controlar-se». A Pina Bausch interessa, como ela própria diz, «o que move os seres humanos, não tanto o modo como se movem». O que significa uma ruptura com a ideia de movimento geométrico e de harmonia ideal do movimento ao serviço da sensibilidade. Mais do que uma expressão extensiva e geométrica do movimento fim-de-si-próprio, ela dá-nos uma visão descentrada, fragmentária, mas intensiva e repetitiva e, por isso, violenta, de relações, posicionamentos, gestos existenciais, vitais, que desloca dos seus contextos naturais, para os decompor, os analisar em moviola. Fazendo quase fotografia animada. Alguém disse, não sem razão, que a régie de Pina Bausch «se inspira na lógica da montagem cinematográfica» (Schlicher, 1989: 124). Há nela, sem dúvida, um exercício de desconstrução analítica, de desmontagem, de tipo cinematográfico, de gestos, comportamentos, atitudes, acções e reacções como núcleo central das suas coreografias.
Sabe-se que Pina Bausch recupera, de facto, fragmentos da vida real ou imaginária dos seus bailarinos, os selecciona, os secciona, os recompõe, lhes retarda o movimento, os faz executar em obsessivas repetições. O seu princípio de realidade mais imediatamente visível é sempre, de algum modo, a cenografia, os elementos espaciais escolhidos para base das evoluções – terra, água, folhas secas, relva -, combinados sapientemente com uma arquitectura cénica bem marcada pela passagem do tempo social, histórico ou primordial. Mas também os próprios movimentos contêm intrinsecamente um princípio de realidade: são gestos, desencontros, violências intra-humanas. A violência torna-se, depois, mais pura, na repetição, no automatismo, no ritmo progressivo e martelante, no embate físico contra formas rígidas, na força bruta com que se rasgam espaços, na procura desajeitada e brutal da liberdade ou de uma comunicação tortuosa que, por vezes, se torna grotesca. O sistema de Pina Bausch está todo aqui. Nisto reside a sua originalidade: na desestruturação da ordem do quotidiano e na recomposição das suas intensidades subliminares através de uma técnica teatral. Uma desestruturação analítica, selectiva, com ritmo lento, repetitivo e obsessivo que assume reflexivamente a reversibilidade do próprio tempo cénico:
- uma mulher e um homem que se atiram mútua, repetida e violentamente contra uma parede (Café Müller);
- um homem que rasteja, sofrendo violentamente, arrastando consigo uma mulher-boneca e que, batendo regularmente as palmas, comanda os movimentos de cena ao arrepio da música de Béla Bartók (Blaubart);
- dois grupos de homens que forçam, com violência, um beijo entre um homem e uma mulher, empurrando a cabeça de um contra a do outro (Auf dem Gebirge);
- um homem em fato de banho com touca e óculos de sol que repetidamente tira balões dos calções (da «braguilha») para depois os encher, encher… até rebentarem;
- dois homens, um sentado, com um balão entre as pernas, o outro, de pé, que repetidamente lhe estica a cabeça para trás o mais possível para, depois, a deixar cair violentamente sobre o balão;
- dois homens que ajudam uma mulher a subir e a descer (de costas), no plano vertical, uma parede, como se estivesse em plano horizontal;
- um cretino que rebenta balões com o rabo;
- imitação de um salvamento (nadando sobre terra);
- um homem que tenta levantar voo com duas cadeiras enfiadas nos braços (Auf dem Gebirge).
Quase um teatro do absurdo que traz à boca de cena um certo bas-fond das rotinas quotidianas, a violência reprimida que explode em gestos grotescos e irracionais. Violência pura, porque não referida a um contexto ou a uma narrativa articulada, mas exposta em fractura através de fragmentos aleatórios em contexto cenográfico bem definido. Fragmentos de um discurso estético sobre a violência, onde os corpos e as suas relações são sujeitos produtores de sentido ou da ausência dele.
FRAGMENTOS DE VIOLÊNCIA
“AUF DEM GEBIRGE HAT MAN EIN GESCHREI GEHOERT” (1984) é um espectáculo de cerca de três horas bem elucidativo do que é o teatrodança de Pina Bausch. É uma visualização completa e analítica de miragens, sonambulismos, petrificações existenciais, movimentos de brutalidade em estado puro. Dizia a crítica italiana Vittoria Ottolenghi, referindo-se à sua primeira visão de Café Müller (1978), que se tratava de uma violência gratuita que não existia na realidade; mas, mais tarde, reconheceria que, afinal, se tratava de uma admirável expressão intensiva e, portanto, artística da violência pura. A realidade expressa por Pina Bausch existe, não é pura ficção. O que ela faz é tornar visível a brutalidade latente no quotidiano, passá-la analiticamente ao ralenti, analisá-la ao microscópio e, depois, aumentá-la até um plano visível, demasiadamente visível para não ser tornar chocante, grotesca e impressiva. Creio que a violência latente e múltipla é o tema dominante do Tanztheater de Pina Bausch. A técnica do ritmo lento e da repetição obsessiva é o meio que torna essa violência pura e, por isso, aparentemente absurda. Chocante, portanto. Em tudo o que ela tem de aparentemente gratuito. Depois, as miragens, esses desejos deslocados do seu húmus natural, são meios expressivos para comunicar a impossibilidade de realização dos desejos fortes, mas simples, às vezes infantis. Há, de resto, muito de recuperação do imaginário infantil no teatrodança de Pina Bausch: as cenas de Blaubart (1977), em que as mulheres, com movimento brusco e sempre mecânico, concedem o travesseiro às cabecinhas carentes de homens que, ávidos, se atiram para ele. É uma visão violenta da carência difusa de ternura. É um modo brutal de exprimir a relação homem/mulher/mãe na sua expressão primordial.
A dança, aqui, parece reduzir-se às exigências dramáticas e expressivas e perder aquele formalismo que sempre foi recorrente, em maior ou menor grau, na dança moderna, pelo menos nos seus grandes expoentes, de Balanchine a Marta Graham, a Cunningham, a Béjart, ao próprio mestre de Bausch, Jooss. É verdade o que José Sasportes afirma sobre os filões presentes em Pina Bausch: «Do expressionismo Bausch retoma a visão trágica do mundo, mas corrige-a com uma ironia herdada do surrealismo e do teatro do absurdo. As imagens encadeiam‑se como num jogo de associações de ideias» (Sasportes, 1988: 145). Mas talvez não seja tão pacífico afirmar que o verdadeiro tema do seu Tanztheater seja de carácter metodológico, isto é, a própria criação coreográfica. Pelo contrário, os verdadeiros temas são o medo, a violência arbitrária ou pura, o conflito irreconciliável entre homem e mulher, a exterioridade impositiva das relações, mesmo das relações de afecto (os beijos fisicamente forçados por outrem, a sexualidade fisicamente impositiva ou normativamente comandada). Trata-se, no meu entendimento, de uma dimensão de nível ontológico: a expressão estética de categorias existenciais estruturantes do mundo da vida. Trata-se de uma viagem ao centro da existência. Por isso mesmo, a sua criatividade é, mais do que uma «invenção do mundo», uma lente de ampliação das relações de violência, de agressividade ou de incomunicabilidade radical contidas apenas nos limiares das regras de convivência quotidiana, do mundo da vida social objectiva. O que é seguramente mais profundo do que inventar um mundo quem sabe como e a partir de quê. E é por isso mesmo que «a passagem entre palco e plateia está em Bausch sempre aberta», que «a circulação é possível», que «as acções são ora atrozes, ora de ternura, ora de um infantilismo insuportável, ora de um delicado [ou patético?] lirismo, ora brutais, ora cómicas, muito cómicas» (Sasportes, 1988: 147). Talvez se trate, de facto, de um real inédito, tão inédito quanto o é o contexto e o ritmo com que são propostas as acções, sem predeterminação formal, na verdade; de descoberta não do mundo, mas de um mundo, de um mundo parentético que decorre com o seu ritmo próprio nas entrelinhas, nas hesitações, nos interstícios, nas dobras do mundo real, das normas de comportamento, da existência. Não se fica, pois, este exercício, no terreno do discurso da dança, no plano metodológico. E também não me parece que seja um exercício de “mise-en-abîme”, uma representação da dança no interior da própria dança.
DANCE IS EMOTION, NOT MOTION
O TEATRODANÇA DE PINA BAUSCH propõe‑nos friamente fragmentos de crueldade existencial, de violência, de grotesco, de autopunição através de uma rítmica corpórea obsessiva e mecânica, linear e temporalmente reversível, cadenciada segundo tempos interiores, à margem da norma social.
E a «dança»? E as formas puras do movimento em puro equilíbrio geométrico sem corpos opacos e rígidos que se lhes oponham, que choquem com elas para lhes impedir a leveza, a rapidez, a agilidade, a harmonia? Não há. Tem razão Sasportes quando supõe o espanto dos americanos: «toda a bagagem emotiva que julgavam ter sido varrida para sempre por Balanchine e Cunningham, ei-la reentrar pela janela, mais viva que nunca» (1988: 150). Ou, como quer S. Schlicher: «por esta sua recondução do movimento e do corpo à sua história [à sua génese e ao seu contexto] o Tanz Theater alemão distingue‑se da modern dance americana» (1989: 132). Dance ‑ diria eu, invertendo a fórmula de Alwin Nikolais e procurando traduzir a filosofia de Bausch ‑ is emotion not motion.
Não há dúvida de que, com Pina Bausch, se afirma uma variante da dança moderna que tem raízes antigas na história da dança, que chegam mesmo até ao «Ballet d’action» de Noverre ou aos «coreodramas» de Viganò. Mas aquilo que, assim, ganha em sentido ou em intensidade dramática talvez o perca em leveza ou em «beleza» formal.
DANÇA, BELEZA, VERDADE
MAS, AFINAL, O QUE É A BELEZA? Depurar rítmica e figurativamente movimentos subliminares ou de fronteira da existência humana usando a expressão corporal é certamente conforme à essência da arte da dança se é verdade que na sua história originária ela era a forma mais total de exprimir o espírito objectivo das comunidades primitivas nos seus ritmos vitais. Por isso ela é bela, mesmo se pode contrastar com o espírito racionalista e formalista da civilização ocidental moderna. Digamos que a proposta de Bausch é mais dionisíaca que apolínea, próxima da tragédia grega e do que dela pensava Friedrich Nietzsche, em “A Origem da Tragédia”. E, todavia, o «irracionalismo substancial» de Pina Bausch (o elemento dionisíaco) é, afinal, «construído» através de uma metodologia analítica bem mais racional e elaborada (o elemento apolíneo) do que parece. Ela, afinal, procura, com a rapidez do movimento, com a repetição, com a exactidão do gesto, com a multiplicidade dos fragmentos existenciais, com a visibilidade obsessiva das suas categorias existenciais e com a consistência da semântica (as categorias da estética de Calvino) dar-nos conta, de forma intensiva e com vigor expressivo, do universo subliminar que se insinua insistentemente no nosso quotidiano.
Num certo sentido, o Tanztheater de Baush pode muito bem inscrever-se naquela visão da arte como desvelamento, revelação do que permanece socialmente reprimido em nós, uma ida até aos confins do inconsciente, a esse universo pulsional que não pode ser integralmente vazado em comportamento socialmente aceitável ou admissível. O que fica nas margens do possível, do dizível, da norma, do sociável. Uma visão ontologicamente bem radicada no mais profundo da natureza humana. O que Bausch faz é um exercício de decomposição de comportamentos ou manifestações ancoradas nesse universo pulsional através de uma técnica “em moviola”, cinematográfica, que expõe à evidência esse universo, reprimido ou manifesto. Como que transfigura para mostrar melhor esse universo que a norma social tende a reprimir e a sufocar. Tudo é violento, sarcástico ou absurdo. Num certo sentido, o Tanztheater funciona como uma representação da verdade (humana) no que ela tem de mais profundo e talvez de mais irracional, trazendo-a à cena e de forma artisticamente analítica, o que quase se configura como um oxímoro. Heidegger tinha esta visão da arte, uma certa expressão da verdade no seu sentido grego, “alêtheia”, desvelamento, revelação. Poderíamos mesmo falar, neste caso, de uma dimensão ontológica do teatrodança e de uma sua função não somente estético-expressiva, mas também cognitiva acerca da natureza humana. A fórmula de Alvin Nicolais (dance is motion not emotion), invertida, é, de facto, neste caso, muito certeira: “dance is emotion not motion”. Não querendo parecer um discípulo de La Palisse, a dança moderna não pode deixar de aspirar não só ao belo, à perfeição formal, à harmonia impressa no movimento sem deixar de expressar e suscitar no movimento o sentimento, tornando-se deste modo uma outra linguagem que exprime, com as categorias da arte, o ser, o humano nas suas fronteiras comportamentais. Creio que não seja legítimo afirmar que as coreografias de Pina Bausch não são belas na sua própria crueldade e sarcasmo, sendo certo que a beleza tem uma dimensão formal, resultando também da expressividade da totalidade, a cenografia, o movimento e os corpos. Está longe, é certo, do conceito clássico de belo, da beleza do ballet clássico, sim, mas ainda que a semântica seja violenta o conjunto e o movimento que nele acontece é sempre belo e, algumas vezes, mesmo muito belo. Essa, de resto, é a linguagem própria da arte. #Jas@07-2021.
NOTA
Pina Bausch nasceu em 1940, em Solingen. Entre 1955 e 1959, estudou com Kurt Jooss na Folkwangschule, onde se diplomou. Em 1960, frequentou em Nova Iorque a Juillard School of Music, tendo como mestres, entre outros, José Limón, Antony Tudor e Louis Horst. Trabalha com Paul Taylor. Em 1961, torna-se bailarina do Folkwang-Ballet, dirigido por Jooss. Colabora com Jean Cébron. Em 1967, torna-se coreógrafa do Folkwang-Ballet e, em 1969, recebe o Primeiro Prémio no Segundo Concurso Internacional de Coreografia de Colónia, com In Wind der Zeit. Entre 1969 e 1973, torna-se directora artística do Folkwang-Tanzstudio e docente da Folkwanghochschule. Em 1973-1974, torna-se directora e coreógrafa da companhia dos Wuppertaler Bühnen, ou seja, do Wuppertaler Tanztheater. A cidade de Wuppertal fica conhecida em todo o mundo graças à sua Companhia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
OTTOLENGHI, Vittoria (1975).
“Balletto”, in Enciclopedia Europea, Milano, Garzanti (vol. II, pp. 28-37).
SASPORTES, José (1988).
La scoperta del corpo. Percorsi della danza nel novecento, Roma-Bari, De Donato.
SCHLICHER, Susanne (1989).
L’avventura del Tanz Theater. Storia, spettacoli, protagonisti. Genova: Costa& Nolan.