Artigo

AFINAL, O QUE É O BELO?

PARA SABER VISITE A ANDALUZIA

João de Almeida Santos 

AlcázarSevilla7

“Voando para a Andaluzia”. Jas. 07-2021.

     QUANDO o miserabilismo arquitectónico de massas ou a política do mamarracho pretensioso  disfarçado de arte conceptual (de vários tipos) se vêm impondo cada vez mais na nossa civilização, um banho de Andaluzia e do legado islâmico nesta belíssima parte de Espanha ajudar-nos-á a recuperar a ideia de beleza arquitectónica, não só física, mas também espiritual. É aquela Espanha que Marguerite Yourcenar, no capítulo “A Andaluzia ou as Hespérides” do seu livro “O Tempo, esse grande escultor” (1983), falando de Granada e de Constantinopla, identificou como “a ponta avançada do mundo da tenda e do deserto instalada nos jardins da Europa”. Esse mundo pensado por um “povo de alquimistas, de algebristas e de astrónomos” (cito da edição da Relógio d’Água, Lisboa, 2020, 141 e 145). Uma civilização que, a olhá-la através deste seu legado, impressiona pela altíssima sofisticação das suas obras de arte monumentais, onde a matéria se espiritualiza através de um requintado trabalho de criação artística. 

     Foi o que fiz há uns anos. Visitar esses lugares verdadeiramente mágicos: Sevilha, Córdova e Granada. São lugares históricos de embate de civilizações, a islâmica e a católica, lugares de reconquista, impondo, aqui, a separação, política, civilizacional e cultural entre a Ibéria e o norte de África árabe. Mas são lugares onde a história ficou registada no seu mais elevado e sofisticado nível e que, em certos casos, como veremos em relação a Córdoba, a civilização que tomou conta deles não esteve à altura de preservar e honrar a beleza patrimonial legada.

 O ALCÁZAR 

     Quando, em pleno Agosto, cheguei, com a família, a Sevilha deparei com um cenário curioso: ao deslocar-me, a pé, da zona do templo de Macarena, “a Virgem da Sexta-Feira Santa, a Macarena cintilante de pedrarias” (2020: 143), para o centro, às quatro da tarde, encontrei um autêntico deserto humano, fruto de uma mistura entre a “siesta” e as férias dos muitos sevilhanos que abandonaram a cidade e o calor. O centro, esse, estava repleto de turistas e dos resistentes indígenas que trabalhavam no turismo. Deslocámo-nos em direcção à Giralda e, depois, ao Real Alcázar, preparando a meticulosa visita do dia seguinte. O Alcázar arrasa, literalmente: pela beleza do Palácio, pelo fabuloso equilíbrio entre o geometrismo exacto do conjunto e a perfeição minuciosa e quase infinita das formas que o revestem e o envolvem. Trata-se verdadeiramente de um excesso não excessivo. De um excesso que nos convida a pedir mais. De um tesouro tão trabalhado que, paradoxalmente, nos esmaga com a simplicidade da sua beleza. Mas também mistério. Imaginamos olhares furtivos que resistiram ao tempo, eternizando-se por detrás daquelas redes ou filigranas em gesso, pontes entre o desejo oculto e o mundo exposto naqueles salões. Ambientes de mistério e de fuga, de olhares fugazes, de traições e assassínios. Numa Andaluzia dos Califados e dos Sultanados árabes. E de Pedro, «O cruel», ou do poderoso Carlos V. Séculos de intensa vida política, de conquistas e de derrotas. E de cultura requintada. O Alcázar, misto de estilos, mas de imponente e difusa presença estética muçulmana, impressiona. Um verdadeiro complexo estético, mas simples na sua relação com o nosso olhar. Quase me atrevia a dizer que, tendo conhecido o Alcázar antes da Alhambra, a visão desta ficou condicionada por tanta beleza concentrada neste Palácio Real.

ALHAMBRA

     A Alhambra, claro, é um enorme complexo monumental que multiplica o que já se vira no Real Alcázar. Em primeiro lugar, a dimensão monumental dos palácios e dos jardins, incluída a residência de Verão dos monarcas, o Generalife. Depois, a localização sobre Granada, em frente ao Bairro Albayzin, na colina oposta. Visão soberba de uma Granada única. O Albayzin e a Alhambra interagem como paisagens em diálogo, estruturando a verdadeira Granada. Qualquer uma das vistas – do alto do Albayzin para a Alhambra ou da Alcazaba ou dos Palácios Nazaríes para o Bairro – é fantástica. Depois, a riqueza interna dos palácios, a sua perfeição geométrica, minuciosa e abundante, deixa-nos perplexos, perante aquele excesso de minúsculas e preciosas formas e materiais que inundam paredes e tectos, gerando, quase paradoxalmente, uma incrível harmonia e simplicidade nos conjuntos. A Alhambra é um poema ao arrojo estilístico, à harmonia, à abundância de formas, à minúcia estética, à perfeição, como se os palácios fossem uma gigantesca filigrana em gesso, lá onde a própria escrita árabe assume um valor estético autónomo, quase indiferente aos seus valores semânticos. Um poema à beleza construída e à espiritualização da matéria a um nível dificilmente superável. A Alhambra é bem o símbolo de um poder que se manteve séculos por estes lados da Andaluzia. Um poder majestático, mas altamente sofisticado, com um profundo sentido do intemporal.

A MESQUITA DE CÓRDOBA

     Antes de chegarmos a Granada, detivemo-nos um dia em Córdova. Quisemos revisitar a Mesquita, hoje Catedral católica de Córdova. Já a conhecia, desde os meus tempos de estudo no liceu até visitas recentes. E confesso que quanto mais a visito mais penoso se torna o percurso, porque não consigo compreender aqueles enxertos católicos num monumento tão diferente e tão belo, uma floresta de colunas onde uma luminosidade coada nos convida à reflexão distante e à serenidade. Um lugar de reencontro com nós próprios numa atmosfera predisposta para a espiritualidade sem amarras ou dogmas, religiosos ou de qualquer outra natureza. É um “non-sens” aquela presença difusa em toda a Mesquita dos tradicionais fragmentos iconográficos católicos que chupam literalmente a alma do monumento e a diluem no seu espaço ritualizado, neutralizando-a. Permitam-me que, a este propósito, cite de novo Marguerite Yourcenar:

     “Mesmo em Córdova, e apesar de a sua reconquista ao Islão ter acontecido dois séculos antes de Granada e vinte anos antes de Sevilha, o esventramento da mesquita deu-se só no tempo de Carlos V: coube ao barroco atestar, se não as verdades da fé, pelo menos a vaidade dos cónegos. Esta arte de pompa e circunstância atinge o visitante quando, de arco em arco, de coluna em coluna, ele chega ao centro do edifício e desfaz em migalhas, como uma bomba, uma das mais nobres meditações jamais feitas sobre o pleno e o vazio, a estrutura do universo, o mistério de Deus” (2020: 146).

     É isto que sente quem entra na Mesquita para a contemplar e fruir da sua beleza e, subitamente, se depara com uma igreja católica no ventre da mesquita, algo que esmaga a  espiritualidade que experimenta quem a procura por aquilo que ela é (ou era). “Un pugno nell’occhio”, como se diz em italiano. Um murro no olhar de quem se encontra em sintonia com a singela beleza daquele ambiente. Este choque lembra-me a Igreja de Santa Maria sopra Minerva, ali ao lado do Pantheon, em Roma, e aqueles cristãos primitivos que, como aconteceu com esta Igreja (como se vê pelo próprio nome), construíam os seus templos romanos sobre os próprios fundamentos dos templos pagãos. Não, não estamos perante um diálogo de civilizações. Estamos perante um cruel esmagamento espiritual de uma por outra. Mas a verdade é que a Mesquita, agredida na alma, resiste porque a beleza e a espiritualidade continua a estar do lado dela. Não se trata de crenças religiosas ou sequer de estilos arquitectónicos, mas sim de violência simbólica e de crueldade exercidas sobre uma obra de arte em nome de valores exteriores aos valores estéticos e ao que eles representam. Felizmente que, a seguir, já em Granada, pudemos entrar na Alhambra sem receio de sermos de novo agredidos pelo desvario de quem vê a arte como mero instrumento de poder.

     Seguiu-se Madrid, a minha segunda cidade de eleição, a seguir a Roma, mas esse é outro discurso mais longo porque não se pode contar dez anos de intimidade com esta belíssima cidade cuja distância à minha aldeia natal é igual à de Lisboa. Ficará para outra ocasião. #Jas@08.2021.

AlcázarSevilla7Rec

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