A PETIÇÃO João de Almeida Santos

“Democracia”. Jas. 01-2022.
LI COM ATENÇÃO A PETIÇÃO PÚBLICA (“Coragem para Fazer um Compromisso”) que circula sobre a necessidade de o centro-esquerda e as esquerdas se entenderem no pós-eleições legislativas, através de um “compromisso programático” (eventualmente assinado também por organizações da sociedade civil) alicerçado nas problemáticas da regionalização e dos sistemas sociais e num desenvolvimento económico fundado na coesão, no conhecimento e na ecologia. Vi também que a petição foi, inicialmente, subscrita por 29 promotores da área do PCP, da esquerda mais radical e do próprio PS, tendo, no momento em que escrevo, já sido assinada por 663 pessoas. Entretanto, surgiu uma outra carta aberta, “Votos por uma maioria plural de esquerda” (“Público”, 04.01.2021, p. 7), assinada por cem promotores, provenientes, designadamente, do jornalismo e do mundo universitário e cultural. Um novo documento no mesmo sentido. Referir-me-ei sobretudo ao primeiro documento (este artigo já estava escrito quando saiu o segundo documento), sendo certo que o objectivo e o enquadramento dos dois documentos é, afinal, o mesmo.
I.
São, sem dúvida, iniciativas louváveis porque traduzem uma concreta intervenção de cidadania activa no processo político, enriquecendo-o. Se é verdade que a fragmentação do sistema partidário (mas também o crescimento da abstenção) tem indiciado ausência de resposta satisfatória do establishment político às expectativas da cidadania, também é verdade que só uma sociedade civil mais robusta e interventiva poderá ajudar à recuperação da crise de representação que daí resultou. Esta solução, no quadro do sistema representativo, até já tem um nome e chama-se democracia deliberativa (veja-se, sobre este assunto, o meu capítulo no livro Estudos do Agendamento, Labcom UBI, 2020, de Camponez, Ferreira e Rodríguez-Días, Org., de acesso livre em https://labcom.ubi.pt/book/364 ), ou seja, uma democracia que valoriza precisamente, e de forma intensa, o papel político da sociedade civil, como nunca antes aconteceu. Papel que não é desempenhado somente em períodos eleitorais, mas também, ou sobretudo, durante o regular funcionamento da vida democrática. É neste sentido que valorizo estas iniciativas. Estas intervenções da sociedade civil são tanto mais importantes quanto sabemos que, fruto da extrema personalização da política na figura dos líderes, as máquinas partidárias estão fortemente submetidas à vontade dessas lideranças personalizadas, tornando-se incapazes de mobilizar a cidadania por contacto directo ou intervenção orgânica para além dos períodos eleitorais, vivendo ao sabor da conjuntura e no interior de uma lógica interna que acaba por produzir inaceitáveis tendências endogâmicas e um real descolamento em relação à sociedade.
II.
Ora, no caso em apreço – as eleições de 30 de Janeiro -, o que está em causa é o desafio entre duas lideranças, a de António Costa e a de Rui Rio, ficando em posição totalmente subalterna a real composição do Parlamento, para além da sua dimensão numérica, e a sua inestimável função e independência. Os deputados foram escolhidos sem grandes e bons critérios de selecção (mas reconheço que, desta vez, não havia muito tempo para o fazer) em listas fechadas que terão como “etiqueta” exclusiva o rosto do líder candidato (o logo do partido é com ele que acaba por se identificar), não a deputado, mas a primeiro-ministro. Ou seja, uma perversão que acontece logo antes de o jogo começar. Na verdade, a composição do Parlamento só interessa numericamente para dar, ou não, uma maioria de governo e um governo que será exclusivamente escolhido pelo líder, sem obrigação de o fazer entre os membros do Parlamento (como acontece no sistema inglês). Em si, como órgão legislativo, o Parlamento pouco parece importar. O que é, isso sim, um grave desvio em relação à própria natureza do sistema representativo, invertendo-se até a própria hierarquia dos poderes, com o poder executivo a subir ao topo da hierarquia, o que contribui para enfraquecer, de facto, a separação dos poderes. Na verdade, num sistema como este, o que os eleitores escolhem não é a composição do Parlamento, mas sim a figura que irá desempenhar a função de primeiro-ministro, aumentando assim a legitimidade deste e o seu poder sobre a maioria que o sustenta e sobre, naturalmente, o próprio partido. Não foi por acaso que alguém, a propósito disto, falou em presidencialismo do primeiro-ministro. Este facto, todavia, tem consequências: perdendo as eleições, este candidato vê a sua legitimidade diminuída para, apesar disso, formar governo com base numa maioria parlamentar, como aconteceu em 2015, e repor, assim, a centralidade (perdida) do Parlamento. Será por isso que António Costa agora diz que se perder sairá, mesmo que haja uma maioria de esquerda no Parlamento? Foi com base numa lógica deste tipo que defendi, em 2004, eleições antecipadas quando Durão Barroso emigrou para Bruxelas.
III.
Em que ponto, pois, nos encontramos? Simples: o líder do PS pede uma maioria absoluta como a única solução que garante estabilidade, apesar de saber que o nosso sistema eleitoral não é amigo de maiorias absolutas (muito menos de um só partido), poucas vezes tendo estas acontecido. Não são, de facto, como por aí dizem, os portugueses que não gostam de maiorias absolutas, mas sim o sistema eleitoral. Por outro lado, e ao contrário do que desejam os peticionistas, António Costa não está disponível para novas alianças que fiquem sujeitas aos humores dos parceiros (foi mais ou menos isto que disse). Também disse que se não ganhar (pelo menos com maioria relativa, digo eu) abandona a liderança do PS. Pergunta: o que lhe resta, pois, para além da maioria absoluta ou de um governo minoritário que cairá à primeira oportunidade?
IV.
Dá a sensação de que António Costa joga tudo por tudo: ou tem maioria absoluta ou sai. Numa situação destas a estratégia da petição e da carta aberta deixa de fazer sentido, a não ser para um período pós-Costa, previsivelmente liderado por Pedro Nuno Santos, a única voz que sempre se fez ouvir sem a necessária autorização do líder (por exemplo, nas presidenciais) e um dos obreiros da famosa “geringonça” e da sua sobrevivência ao longo de quatro anos. E, sendo assim, uma reflexão estratégica para o futuro fará, sim, todo o sentido.
V.
Que reflexão? Em primeiro lugar, sobre a própria política e sobre o estado actual da democracia. Em segundo lugar, sobre a nova identidade da cidadania decorrente da progressiva emergência da sociedade em rede e das TICs. Em terceiro lugar, sobre as estratégias de desenvolvimento, garantindo um eficaz uso generalizado das tecnologias e do digital e a sustentabilidade ecológica. Neste sentido, a petição ganha, pois, relevância e pode ser subscrita e reforçada. Reforçada até na exigência de não se ficar somente pelo acordo escrito e pelos poucos princípios que avança, mas também por uma proposta mais articulada e até por uma cláusula de participação efectiva no governo das forças que a subscrevessem. Densidade programática, a que corresponderia uma densidade executiva, sem que isso viesse a diluir a diferença (mas também a compatibilização) entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade e gerando, por isso mesmo, uma virtuosa ética pública. Algo talvez mais importante do que a própria componente programática.
VI.
O PS sempre foi sozinho, com os seus valores e os seus programas, às eleições e também desta vez irá, exibindo seis anos de governação e projectando para o futuro as suas propostas programáticas. Também irá com um grupo parlamentar que não evidencia grandes novidades qualitativas em relação ao passado recente, constituído por membros do governo (quase um terço – ou seja, quase metade do total dos membros do governo – do que provavelmente será o GP/PS), por candidatos que já eram deputados (alguns dos quais andam por lá há décadas e outros que, tendo transitado da JS, nunca de lá saíram), por outras escolhas pessoais (directas ou indirectas) do líder e por alguns nomes desconhecidos do aparelho distrital. Não me parece, pois, que, no caso do PS, a quebra de tensão ideológica que tem vindo a verificar-se esteja a ser compensada pelo conjunto dos candidatos ao Parlamento ou por um reforço da ligação orgânica do partido à sociedade civil (nem de facto nem de forma organizada). O que representa, na minha opinião, uma grave fragilidade, colocando seriamente a questão da selecção dos dirigentes e dos candidatos institucionais.
VII.
Ou seja, estas eleições poderão vir a ser, afinal, “Mais do Mesmo”, ou, então, poderão constituir uma oportunidade para uma viragem na política do nosso país. Isso dependerá fortemente do voto dos eleitores, uma vez que ele produzirá fortes efeitos internos nos partidos, mas também, ou sobretudo, da classe dirigente e das elites que ocupam posições relevantes no sistema social. Assim tenham elas um sobressalto de urgência e de cidadania nas propostas a fazer, a si próprias e aos cidadãos. Os dois documentos referidos são um tímido sinal do que deveria acontecer de forma mais robusta e articulada.
VIII.
Estes documentos têm ainda um outro significado: o de acrescentar intervenção qualificada de outros protagonistas que não (são) os mesmos de sempre, ou seja, os jornalistas e comentadores que ocupam os interfaces dos grandes meios de comunicação, sempre posicionados como se o país tivesse delegado representação neles próprios, determinando, assim, a partir das suas posições subjectivas e da credibilidade dos púlpitos de que falam, o rumo da política no nosso país. Sou dos que acham que os media exercem “efeitos fortes” sobre o comportamento eleitoral, tendo-o demonstrado abundantemente no meu livro Media e Poder (Lisboa, Vega, 2012), e, por isso, vejo com preocupação a militância aguerrida destes diligentes agentes orgânicos dos vários poderes instalados. Bem sei que as redes sociais deram lugar a outros protagonismos e que acabaram com o monopólio dos media no acesso ao espaço público, em geral, e ao espaço público deliberativo, em particular. Sim, e é um facto positivo, mas o que se torna necessário também é aumentar o nível de organização informal no espaço público deliberativo. Sabemos bem o que está a acontecer no plano autárquico com os chamados movimentos autárquicos não partidários, apesar de uma lei que os prejudica e que, a meu ver, até é inconstitucional. Ou seja, conhecemos a força que estes movimentos de cidadania têm vindo a demonstrar. Ora isto significa que há espaço para que a sociedade civil se faça ouvir com mais força, obrigue a melhores e mais transparentes processos de decisão e (a montante) a melhores critérios de selecção de todos aqueles que, mais tarde, virão a ser dirigentes partidários e detentores do poder formal. É a este processo que eu chamo política deliberativa e democracia deliberativa.
IX.
Não é o caso de aqui fazer um diagnóstico do estado actual da política, porque já o tenho vindo a fazer em inúmeras ocasiões e desde há muito tempo. Mas tenho a convicção profunda de que as mudanças que as nossas sociedades têm vindo a conhecer exigem uma correspondente mudança política que ainda não aconteceu, à excepção dos movimentos populistas, que da mudança só recolhem o que de pior há nela. E, por isso, se o establishment não responder aos novos desafios, sem ser de forma puramente transformista, o que acontecerá é uma brutal viragem em direcção ao autoritarismo, que não interessa a ninguém. É disto que se trata. Mesmo nestas eleições. #Jas@01-2022

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