Artigo

A DESFORRA DE ANTÓNIO COSTA

Por João de Almeida Santos

 
Ballot box

Democracia. Jas. 01-2022

 

O PRESIDENTE MARCELO REBELO DE SOUSA convocou eleições legislativas para 30 de Janeiro, mas, a julgar pela campanha do PS, o que está a acontecer realmente é um momento referendário sobre o Orçamento de Estado para 2022, chumbado pelo Parlamento, provocando eleições antecipadas.

“Chumbaram o Orçamento mais à esquerda de que há memória,” parece dizer o PS, “então vamos submetê-lo ao juízo dos eleitores para ver se o aprovam ou o chumbam, para ver quem tinha razão. Se o aprovarem, votando num PS vencedor, voltaremos a submetê-lo ao Parlamento para aprovação, repondo o processo interrompido pelo injustificado chumbo e pela dissolução da Assembleia da República, retomando, assim (simbolicamente), a anterior legislatura”. Agora, sim, com uma profunda remodelação do governo. Governo mais ágil, refrescado e relegitimado. Por mais dois anos (garantidos), perfazendo, assim, os quatro anos do mandato anterior. A ser assim, estas eleições não serão, pois, mais do que uma paragem referendária para que o povo se pronuncie (in)directamente sobre o Orçamento – exibido, com incontido bom humor, no ecrã, pelo candidato António Costa, no debate com Rui Rio – e sobre a oportunidade de a oposição o ter chumbado. Operação que, todavia, é um pouco insólita, pois este mesmo Orçamento é um documento oficial do governo (ainda em funções) e não um documento do partido, sendo, pois, oportuno questionar a legitimidade formal do uso deste documento por indiciar uma efectiva confusão entre governo e partido. Esta confusão pode mesmo aparecer também como confusão de géneros entre Candidato e PM, o que é seguramente muito pouco ortodoxo. Mas a verdade é que se se verificar o que nos dizem as sondagens, o que acontecerá será a aprovação do Orçamento de Estado (lembremo-nos que o governo não se demitiu na sequência da dissolução da Assembleia da República, mantendo todas as prerrogativas, excepto as que dependam directamente de uma AR em funções) pelo povo soberano. Integralmente, se for com maioria absoluta. Retocado (ou não), se for com maioria relativa. 

Uma análise atenta do discurso de António Costa e do PS é a esta conclusão que nos leva.  A garantia de que a reposição do processo interrompido será possível foi dada por Rui Rio quando disse que garantiria um governo do PS durante dois anos caso este ganhasse as eleições com maioria relativa. E as sondagens apontam para este desfecho. Costa por isso pode exibir, sorridente, o Orçamento e dizer que o fará aprovar no dia seguinte ao fecho do processo eleitoral. A argumentação política do PS está, de resto, toda ela suportada nos ganhos que este Orçamento teria garantido. Tudo parece, pois, ter este sentido. Repor um processo incompreensivelmente interrompido pela irresponsabilidade do PCP e do Bloco. É esta a mensagem do PS.

PRESIDENCIALISMO DO PRIMEIRO-MINISTRO

NA PRÁTICA, temos aqui um típico processo de democracia directa, enxertada nos mecanismos da democracia representativa, onde, como se sabe, não são os programas que são escolhidos, mas os representantes, não concretas decisões, mas quem decide acerca delas (veja-se Schumpeter, Capitalismo, socialismo e democracia, de 1942). E também sabemos que, na prática, os representantes propriamente ditos pouca importância têm na escolha eleitoral porque o processo se centra na figura do candidato a Primeiro-Ministro, ou seja, não na constituição do legislativo, mas na constituição do executivo, em saber quem governa, sendo a constituição do legislativo mero meio instrumental para um fim superior: a formação do governo.

A expressão “presidencialismo do Primeiro-Ministro” parece ser da autoria de Adriano Moreira, em texto de 1989 (Adriano Moreira, «O regime: presidencialismo do primeiro-ministro», in Coelho, M. B., Org., Portugal. O Sistema Político e Constitucional 1974-1987, Lisboa, ICS, 1989, p. 36), e talvez se adapte bem (mas alargando o sentido em que o autor a usa) à evolução do sistema português quando verificamos que as eleições legislativas se transformaram, de facto, na eleição do Primeiro-Ministro, dando mais concreta expressão à personalização da política na figura dos líderes partidários. O sistema eleitoral ajuda porque no boletim de voto o que aparece é o símbolo partidário, só faltando mesmo acrescentar-lhe o nome e o rosto do líder do momento. Os candidatos dos círculos eleitorais pouco ou nada contam, pois a escolha é a que se centra no rosto do candidato a PM e no símbolo partidário. Trata-se, além disso, de listas fechadas construídas em grande parte pelas lideranças de acordo com a lógica interna exclusiva dos partidos (fidelidade, militância, representatividade interna). De facto, no processo a variável exógena da cidadania pouco ou nada parece contar a não ser numa óptica instrumental com vista à reprodução das elites no poder. Numa palavra, todo o processo tende a afunilar no candidato a Primeiro-Ministro, onde se concentrará no essencial todo o poder, sim, mas também toda a responsabilidade, incluindo naturalmente a de não formar governo se for directamente derrotado nas urnas, ainda que possa dispor de uma maioria parlamentar, como acontecerá no caso do PS de António Costa se isso se vier a verificar. Vejamos.   

A ESSÊNCIA DO PODER LEGISLATIVO

DO QUE SE TRATA efectivamente, no sistema representativo, é da escolha dos representantes da cidadania no poder legislativo, sendo a constituição do executivo resultante da formação de uma maioria parlamentar. O mandato é não imperativo, não revogável, para uma titularidade soberana livre e independente (dos círculos eleitorais e dos directórios partidários) . O representante não leva consigo um caderno de encargos que deverá executar, mas tão-só a sua consciência e a sua visão do que será o interesse geral.  Por isso, a selecção da oferta, em regime de monopólio partidário, deveria ser muito criteriosa e mais exposta à cidadania do que imposta segundo critérios exclusivamente internos. Mas a verdade é que com a configuração que o processo eleitoral assumiu estes aspectos perderam relevância e interesse político precisamente porque o que conta realmente é a figura do líder, enquanto candidato a Primeiro-Ministro e não enquanto candidato a deputado. Neste processo, o poder legislativo é relegado para segundo plano quando ele, na hierarquia dos poderes, deveria estar em primeiro plano, seguindo-se o poder executivo e, finalmente, o poder judicial. Uma hierarquia que nada tem a ver (ao contrário do que muitos pensam) com separação dos poderes, porquanto esta é plenamente compatível com a hierarquização dos poderes. Se a separação dos poderes é uma exigência funcional do sistema representativo para impedir que o poder se concentre num só órgão e o torne insindicável, a hierarquia dos poderes tem a ver com a sua origem. Na verdade, o único poder que deriva directamente da cidadania (do povo) é o poder legislativo, sendo os outros dois poderes derivados deste: o poder executivo sai das maiorias parlamentares; o poder judicial age de acordo com as leis e tem uma legitimidade de carácter meramente técnico. Portanto, só o primeiro possui uma legitimidade com dimensão ontológica em condições de fundar a legitimidade dos outros dois.

CONSEQUÊNCIAS

MAS, NA VERDADE, esta já não é a lógica que se está a impor, pois o sistema parece ter evoluído para um presidencialismo do Primeiro-Ministro. E é assim que, deste modo, o resultado eleitoral directo influencia a maior ou menor legitimidade da solução governativa que vier a resultar do Parlamento. Por exemplo: se uma força política que aspirava a conquistar a maioria (absoluta ou relativa que seja) não o conseguir, mas, pelo contrário, estiver em condições de formar uma maioria parlamentar de apoio a um seu governo (como aconteceu em 2015), encontra-se perante uma situação em que a legitimidade do candidato a Primeiro-Ministro fica muito fragilizada politicamente, embora formal e legalmente adequada à formação de um governo. A razão é simples: fracassando o objectivo proposto aos eleitores (a eleição, informalmente, directa como Primeiro-Ministro), tudo o resto se ressentirá inevitavelmente. Em 2015 havia duas razões que poderiam ser invocadas para que acontecesse o que aconteceu: o muro de Berlim e a “conventio ad excludendum” existente que recusava uma parceria governativa ao PCP e ao Bloco, duas forças com significativa presença parlamentar e uma expressiva representatividade, o que significava uma ilegítima e grave distorção do sistema; o facto de António Costa se ter proposto derrubar este muro, provando que seria possível governar com bons resultados naquelas condições.

Ora, nas actuais circunstâncias, derrubado o muro, tendo governado seis anos e perdendo as eleições é natural que António Costa decida sair dando lugar a uma recomposição do poder interno no interior do PS. Feita uma avaliação negativa da sua acção governativa (que não a do parlamento) decide, em consequência, sair. Mas se, como parece resultar das sondagens entretanto divulgadas, ganhar com maioria relativa, a legitimidade de voltar a formar uma maioria de governo será directa e efectiva, assim isso seja possível, designadamente através da assinatura de um acordo escrito com os seus parceiros (de esquerda) para que seja evitada essa flutuação de humores a que o líder do PS se tem vindo a referir, repondo a confiança perdida. Não o sendo, vejo, à partida, como problemática a constituição de um governo minoritário suportado pelo PSD, seu directo adversário, durante dois anos, pois isso contraria tudo o que António Costa tem vindo a dizer sobre o assunto, ou seja, a formação de governos por dois anos (“provisórios”, é a palavra usada) em vez de por uma inteira legislatura, razão pela qual, de resto, tem vindo a pedir uma maioria absoluta. Esta situação de vitória com maioria relativa, a mais provável, significa, pois, que, no fim, acabará por procurar encontrar uma solução que dê estabilidade governativa, ou seja, que fará um acordo com as forças que lhe possam dar uma maioria parlamentar? António Costa já disse que não, o que reforça ainda mais essa ideia de transformar estas eleições num momento referendário sobre o Orçamento. 

MOMENTO REFERENDÁRIO

DE FACTO, o que parece mais plausível é que o líder do PS queira transformar estas eleições nesse momento de verdade do seu Orçamento para 2022, pondo o eleitorado a votá-lo (in)directamente, através do voto no PS, para poder, assim, terminar o mandato, injustamente interrompido, de quatro anos. Uma espécie de referendum: “Chumbaram-no? Então vou ali perguntar ao povo se, afinal, aprova ou não aprova este meu Orçamento – veremos quem tinha razão”. É esta a lógica que sobressai com evidência, pois de outro modo não repetiria à exaustão que no dia seguinte ao processo eleitoral fará aprovar precisamente este Orçamento  (que exibiu repetidamente no debate com Rui Rio). Um Orçamento que, formalmente, não é do PS, mas do governo, repito. Este quadro é muito verosímil porque tem, à partida, como disse, garantida a abstenção do PSD durante dois anos, o que lhe basta, em caso de vitória por maioria relativa, para dar corpo a este desiderato. Completará, assim, um  mandato inteiro e dará sentido à sua ideia de que estas eleições não deveriam ter acontecido. Ou seja, António Costa parece estar, de facto, a reduzir estas eleições a mero momento referendário do Orçamento para 2022 que lhe permita completar o mandato injustamente interrompido.  Se, na forma, não é assim, na prática, é. António Costa regressa, assim, a 2021 e toma fôlego para em 2022 cumprir o seu Orçamento de Estado com um governo agora, sim, remodelado e confortado pela legitimidade que, entretanto, lhe será conferida pelos resultados eleitorais, pela voz do povo. Poderíamos, então, dizer com propriedade: eleições 2022 ou a desforra orçamental de António Costa. Ou melhor: “Interromperam a minha caminhada? Pois bem, perguntemos então ao povo se, nas actuais circunstâncias, era isso o que ele esperava dos seus representantes”. E o povo, a crer nas sondagens, dar-lhe-á razão, repondo assim a situação anterior ao chumbo do Orçamento, com um governo relegitimado e dotado de um Orçamento sufragado pelo voto popular. 

MUDAR DE VIDA?

MESMO ASSIM, e tendo presente a insistência das forças políticas maioritárias em obter soluções estáveis, o futuro talvez venha a aconselhar um sistema maioritário com círculos uninominais que fornecerá não só soluções de governo claras e estáveis, mas também, ou sobretudo, uma valorização do Parlamento pela responsabilização directa dos candidatos a representantes perante os cidadãos dos respectivos círculos eleitorais e, por consequência, uma melhoria na qualidade das candidaturas e um reforço do seu próprio peso político, visto que haverá um controlo de proximidade dos candidatos pela cidadania, ainda que uma vez eleitos não venham a ser representantes dos círculos eleitorais que os elegeram, mas sim da nação. E acrescento ainda que este reforço de qualidade seria maior se o governo fosse constituído, como acontece na Inglaterra, a partir do corpo de representantes presente no Parlamento. Uma valorização e um reforço do Parlamento, não só enquanto poder legislativo, mas também dos seus próprios membros, enquanto importantes responsáveis políticos nacionais.

Esta minha convicção não resulta de uma opção meramente teórica, mas resulta, isso sim, da verificação dos defeitos do sistema que adoptámos entre nós. Vejo, pois, que uma mudança nestes aspectos melhoraria o sistema no seu conjunto sobretudo se, depois, os partidos acompanhassem de forma não somente reactiva, mas construtiva, esta mudança. Mas talvez todo este processo a que estamos a assistir ajude a evidenciar as dificuldades do sistema e a provocar um debate profundo sobre o destino da nossa democracia, a natureza dos partidos políticos e a própria natureza da política contemporânea perante uma cidadania que está a conhecer uma profunda mutação na sua própria identidade e nos meios que hoje tem à sua disposição para impor mudanças que, ao que parece, o establishment político (mas também o mediático) teima em não identificar. #Jas@01-2022. 

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