Artigo

O MINISTRO

Por João de Almeida Santos

MF1

“S/Título”. Jas. 04-2022

VI, COM INTERESSE, que o jornal “Público” (de 14.04.2022) dedicou uma enorme atenção ao novo Ministro das Finanças, Fernando Medina, não só nos artigos e no número de páginas sobre o Orçamento de Estado, mas até do ponto de vista iconográfico, nas várias e expressivas fotografias que dedicou à figura do Ministro. Compreende-se, dada a importância que o OE tem nas vidas dos cidadãos e a centralidade das finanças na acção governativa. Por isso, como cidadão atento, fui ler o dossier e a entrevista do novo Ministro. Não sendo economista nem fiscalista, não vou escrever sobre o Orçamento, mas também não vou dizer que ele é um simples benuron inadequado para tratar a doença (!) do empobrecimento ou a avançar umas generalidades ex-cathedra como o antigo Presidente da República e Primeiro-Ministro Cavaco Silva sobre a administração pública, a justiça, o sistema fiscal e o mercado de trabalho, pois tudo o que diz quase poderia ser reduzido a três ideias: eficiência do Estado, redução da carga fiscal, coragem política. Eficiência do Estado, por exemplo, para evitar cenas como a dos seus amigos do BPN, que já custou aos contribuintes 6,3 mil milhões de euros. Grandes propostas, de qualquer modo. Que não precisavam de ser avançadas por alguém que esteve nos mais altos cargos do poder durante vinte anos, tendo tido a oportunidade de praticar as ideias que defende, deixando agora aos outros a avaliação (não eleitoral) do seu desempenho. Até porque as praticou em quase metade do tempo de existência da nossa democracia, não lhe sendo legítimo falar como se nunca tivesse sido mais do que um simples professor de economia. Mas nisto até lhe dou razão, excluindo a questão da coragem. Limito-me, pois, a dizer que a carga fiscal é demasiado pesada para os que pagam impostos, em especial a classe média, que é sempre quem paga as favas, nos impostos directos e nos indirectos, e que a máquina do Estado (toda ela) deveria ser mais eficaz. Mas não vou pedir ao senhor Ministro que, de rompante, proponha ao senhor Primeiro-Ministro que avance de imediato para um significativo alívio fiscal, o que seria possível através de uma nova, rigorosa e exigente política redistributiva e de uma política de eficiência da máquina do Estado, em particular nas áreas do Estado Social. Não, vou referir-me simplesmente a três coisas curiosas que encontrei na entrevista do senhor Ministro e que gostaria de comentar, porque também é assim que se conhece a identidade dos decisores políticos – uma analítica da linguagem utilizada na entrevista (naturalmente com as necessárias ressalvas por se tratar de linguagem oral, sempre menos precisa e menos controlável).

UMA POLÍTICA PARA “PÚBLICOS”?

E A PRIMEIRA foi esta: “As pessoas não estão todas sujeitas à mesma pressão sobre os preços. As respostas que damos são respostas sólidas relativamente a públicos mais vulneráveis” (itálico meu). Públicos, senhor Ministro? Na verdade, este conceito aplica-se ao espectáculo, às artes do palco. Lapsus linguae de quem, no fundo, entende a política como espectáculo? Não ficou famoso o livro do Guy Débord “La Société du Spectacle” (1967)? Mas não creio, embora haja visões que a assumem mais ou menos assim, designadamente as que acentuam o carácter de elite da política, as que têm uma concepção instrumental da relação do poder com a cidadania e a dos que se entregam, no exercício político, totalmente nas mãos dos marketeers, agora do mais sofisticado marketing 4.0 ou 5.0, do senhor Philip Kotler. Até há uma tradição teórica que vai neste sentido, no sentido da teoria das elites. Por exemplo, a que se filia em Vilfredo Pareto ou em Gaetano Mosca. Esta tradição acentua a diferença entre saber, de um lado, e comportamento, do outro; elites, de um lado, e massas, do outro. Mas mais. Já entrou no discurso da teoria política o conceito de democracia do público (mas não “dos públicos”, note-se), que “afinou” a clássica democracia representativa democracia, substituindo o conceito de cidadania precisamente pelo conceito de público. Veja-se, por exemplo, a obra de Alain Minc, “L’Ivresse Démocratique” (Paris, Gallimard, 1995), mas sobretudo Bernard Manin, em Principes du Gouvernement Représentatif (Paris, Flammarion, 1995). A democracia dos mass media e, sobretudo, da televisão, que alguns designaram por “televisual democracy”, e que Fernando Medina certamente conhecerá bem por ser um dos seus protagonistas há muito. Mas não creio que seja isto, porque se trata de um ilustre militante do PS com ambições de liderança, isto é, de quem não pode adoptar estes conceitos por serem pouco compatíveis com uma visão de esquerda da política, da cidadania e da democracia. Cidadania é uma coisa, público é outra e “públicos” ainda outra (targets, na linguagem do marketing). Mesmo que se seja devedor de atenção ao “Público”, permita-se-me a graçola. Fico, pois, mais convencido de que tenha sido um simples “lapsus linguae”. Que, hélas, freudianamente até pode revelar algo que não tem um valor somente facial, porque pode ser profundo. E, se assim fosse (mas não creio), haveria que aprofundar as razões do “lapsus” para as resolver, politicamente, entenda-se. Lembro o que o socialista, com pergaminhos intelectuais, Norberto Bobbio disse: “a televisão é naturaliter de direita”. Portanto, deixo-lhe aqui uma modesta e amigável sugestão: não diga “públicos” nem público. Diga cidadania.

UMA GOLEADA, PARA COMEÇAR?

A SEGUNDA foi esta: “A mim, já me estão a pedir que marque 5-0 nos primeiros cinco (minutos)…”. 5-0, senhor Ministro? Mas quem é que está a pedir-lhe uma goleada destas? Algum Mourinho da política ou da economia? Ou foram os mesmos jornalistas do “Público” que lhe concederam essa excelente galeria de retratos numa só edição e que, embalados, o incentivaram a partir em quinta, não se sabendo bem para onde?  Mas, ainda assim, como diria o António José Teixeira, goleada contra quem? De certeza que não será contra o já depauperado contribuinte. Tenho a certeza de que não. Mas a verdade é que uma goleada assim nem ao Ronaldo parece ser legítimo pedir. Autoconvencimento? Também não acredito. Se fosse, logo haveria quem dissesse que a modéstia parece não ser o valor que Fernando Medina mais aprecia. E o Ministro sabe perfeitamente o que isso significa, ou seja, que “a vaidade mata”. Quanto a mim, é mesmo justo que se lhe peça alguma coisa, mesmo os do jornal do senhor Manuel Carvalho, que faça bem o seu trabalho e de acordo com o que for melhor para o País, colocando, naturalmente, a ênfase nos princípios do centro-esquerda, particularmente no valores da igualdade, da cidadania activa e do desenvolvimento. O voto foi no PS, não foi na direita. Mas, sinceramente, uma goleada destas parece-me demais. O Capitão anterior metia uns golos discretamente e foi por isso que conseguiu um défice de 2.8, em tempo de pandemia. Goleada, não sei se foi, mas lá que foram contas certas, lá isso foram. Talvez tenha sido devido à excessiva carga fiscal, com os mesmos de sempre a pagar por tudo e por todos. Não sei. Mas o resultado foi bom, sobretudo atendendo às circunstâncias. Mesmo assim, o que se vê, agora que já não joga na equipa, é ser vilipendiado logo no dia seguinte (15.04), com manchetes de letras gordas (“João Leão vai gerir projecto financiado pelo Orçamento que ajudou a preparar”), pelo mesmo jornal que um dia antes levara o seu sucessor ao Olimpo, e com iconografia celestial. Dá mesmo que pensar, até porque, hoje mesmo (20.04), dando conta da resposta do ISCTE, que contesta com firmeza as acusações, volta a fazer manchete (e quase duas páginas). Sobretudo porque o homem saiu tranquilamente, com aviso prévio e de forma discreta. Será que, agora, no ISCTE, que alguns safados (como aquele careca que escreve na última página do “Público”) até já acham que é a Madrassa do PS, com imensos sacerdotes e sacerdotisas a ensinarem os fiéis, vai entrincheirar-se e começar a mandar bazucadas para o Terreiro do Paço? Não acredito. A haver bazucadas elas poderão vir de outros sacerdotes ou sacerdotisas. Acho eu, que não conheço bem esses meandros.

A POLÍTICA E O OPTIMISMO

A TERCEIRA foi esta: “Há sempre os pessimistas que vêem em cada dado negativo a pior coisa que pode acontecer, e há os optimistas. Dentro desta há aquela categoria única que é a do nosso Primeiro-Ministro” (itálico meu). “Categoria única”, isso mesmo. A do PM, que, sozinho, no entendimento do novo Ministro, parece esgotar toda uma categoria. Será a categoria dos optimistas irritantes, aquela a que se referia, glosando ironicamente o PR? Bom, está bem, mas não era necessário dizer categoria única, porque certamente haverá muitos outros optimistas irritantes. Uma categoria entre tantas outras de optimistas (ou de pessimistas). Dizer categoria única pode parecer (e dizem por aí que, em política, o que parece é) que uma só pessoa esgota toda a espécie de optimistas irritantes e até pode levar a que o apelidem de louvaminhas. Sobretudo porque, tendo perdido a Câmara de Lisboa para um personagem mais que cinzento, pouco depois foi catapultado a Ministro das Finanças, pelo mesmo “optimista irritante” a que se refere. Um gesto optimista de António Costa? Irritante, mais uma vez? Para quem? Talvez para alguns socialistas que ainda não digeriram a derrota de Lisboa. Também neste caso se confirmou o diagnóstico do PR?

O ÍNDICE DE CORAGEM POLÍTICA

TUDO ISTO me deixa um pouco inquieto, até porque desejo que tudo corra bem neste longo mandato de quatro anos e seis meses. A verdade é que a contenção do anterior Ministro lhe ficou bem, apesar de o jornal da SONAE no dia 15 de Abril o ter levado ao pelourinho. Alguém se deve ter sentido incomodado com a gestão anterior das finanças ou, então, ficou incomodado com as novas funções do ex-Ministro. Afinal, o homem regressou ao lugar onde já trabalhava como professor antes de ser Ministro (desde 2008, ao que parece), voltou para uma instituição pública (não para uma empresa privada), tendo sido nomeado vice-reitor, de onde decorrerão certamente funções por inerência, talvez mesmo aquela de que já o acusam (mas, sendo inerência, nem sequer será desempenhada por ele, mas sim por outro vice-Reitor). Conflito de interesses? Não, claramente. Mas, se fôssemos por aí, os Ministros das Finanças poucos sítios encontrariam para trabalhar porque as finanças estão (infelizmente) por todo o lado. Sobretudo na esfera pública, que é onde ele trabalha. Eu já tinha simpatia pela discrição dele (e, já agora, vistos os resultados, pelo seu trabalho), mas, neste momento, atacado despudoradamente pelo jornal do senhor provedor Barata-Feyo, não sei acicatado por quem, ainda tenho mais. E nem sequer o conheço pessoalmente. Mas, para terminar a conversa, que já vai longa, e, agora sim, a propósito da costumeira reentrada em cena de Cavaco Silva, fica-me uma “pulga atrás da orelha”: o seu elogio ao novo Ministro das Finanças, pondo a sua coragem política num patamar bastante superior (5-6/10) à do próprio Primeiro-Ministro (0-2/10). O protegido mais corajoso do que o protector? #Jas@04-2022.

MF1Rec

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