Artigo

O MUNDO COMO FENÓMENO ESTÉTICO

REFLEXÕES EM TORNO DE NIETZSCHE

Por João de Almeida Santos

JAS_Timidez2022

“Timidez”. JAS. 07-2022

PODE PARECER estranho o título deste artigo se atendermos ao estado calamitoso em que o mundo se encontra. Não é belo aquilo a que temos vindo a assistir. Mas também é verdade que muitas concepções de arte não a assumem como expressão do belo, no seu sentido clássico, mas sim como expressão de fracturas nucleares da existência, da vida, do mundo ou até mesmo de comuns esgares existenciais (de certo modo encontramos isso na pintura de Paula Rego  ou no bailado de Pina Bausch). Não é o próprio Nietzsche que diz, em “A Origem da Tragédia”, que “a epopeia homérica é o poema da cultura olímpica, o hino de vitória em que ele canta os horrores da guerra dos titãs” (Lisboa, Guimarães Editores, 1972, 88 )? Mas, sim, só que a arte serve precisamente para dar um sentido à existência, para a tornar suportável. A visão do horror, do feio ou do disforme quando convertida pela arte actua sobre a nossa sensibilidade como uma espécie de filtro e tende a cobrir com o véu da beleza a rudeza e a aspereza do real. E esta é a missão do espírito apolíneo que a interpreta, agindo sobre o alimento dionisíaco.  O título, afinal, reproduz o que diz Nietzsche em várias passagens desta obra.

TRANSFIGURAÇÃO

Vejamos , então, o que ele diz sobre a arte apolínea, precisamente em “A Origem da Tragédia”:

“Se nos fosse possível imaginar a dissonância (musical) feita criatura humana – e que é o homem senão isso? -, essa dissonância, para poder suportar a vida, teria necessidade de uma admirável ilusão que lhe escondesse a sua verdadeira natureza sob um véu de beleza”.

E continua, detalhando a mecânica do processo de gestação desta arte:

“Deste princípio de toda a existência, deste fundo dionisíaco do mundo, nada mais deve penetrar na consciência do indivíduo humano a não ser o que a potência transfiguradora apolínea estiver em condições de superar; de tal maneira que estes dois instintos  artísticos sejam obrigados a desenvolver as suas forças numa proporção rigorosamente recíproca, segundo uma lei de eterna equidade. Em toda a parte onde virmos as potências dionisíacas em subversão violenta, é desejável que Apolo, envolvido em nuvens, haja descido já até nós; e a geração seguinte contemplará certamente as mais esplêndidas manifestações da sua potente beleza” (1972, 178-179; itálico meu; e pequenos ajustamentos meus à tradução).

Ora aqui está: a erupção vulcânica do mundo em poderosa manifestação vital sobre a qual intervém a potência apolínea de transfiguração, envolvida “em nuvens”, resulta, em rigorosa proporção, em arte e em contemplação da poderosa beleza, por obra de Apolo. A síntese perfeita para a obra de arte perfeita. A que, de resto, Nietzsche  encontrava na tragédia grega.

A dissonância, a que ele se refere, sons estranhos entre si, na história da música evoluiu para a harmonia ou consonância musical, talvez esse mesmo “véu de beleza” que cobre a originária e recíproca estranheza dos sons entre si. A dissonância originária gera movimento e este tenderá progressivamente para a estabilidade, a consonância e a harmonia. Também aqui a arte resolve e converte em beleza o que na origem é aparentemente incomponível. E não se trata de uma estética do horror, que há quem a cultive, mas de arte e de beleza. Ou seja, da arte, na sua componente apolínea, como modo de viver o mundo calamitoso, mas de forma suportável. Aqui está: promovendo-o a fenómeno estético ele torna-se mais suportável. É como estetizar um sentimento, cantar a dor para melhor a suportar. E ela, a dor, é o combustível de que se alimenta a arte. Sobretudo a poesia. Cantar a dor não é propô-la como função existencial, mas sim uma forma de libertação por elevação estética. Não é como a visão do mundo exclusivamente moral que, como diz Nietzsche, aniquila e nega a vida porque esta é “essencialmente imoral”. O moralismo radical nega a pulsão vital. A tónica que Nietzsche põe no espírito dionisíaco diz precisamente o contrário: a exaltação da vida, das pulsões vitais, da alegria primordial que tudo anima – “o instinto dionisíaco, com a sua alegria primordial até mesmo perante a dor, é a matriz comum donde nasceram tanto a música como o mito trágico!” (1972: 176). Voilà. É aqui que se inscrevem quer a música quer a poesia. Como respiração cadenciada e sublime da própria vida. Com Apolo a indicar-nos o caminho: “com gestos sublimes é que ele nos mostra quanto o mundo dos sofrimentos lhe é necessário, para que o indivíduo seja obrigado a criar a visão libertadora, porque só assim, abismado na contemplação da beleza, permanecerá calmo e cheio de serenidade, levado na sua frágil barca por entre as vagas do mar alto” (1972: 51).

A MÚSICA E A POESIA

Achei muito curiosa uma observação que li no Ecce Homo. É esta: “Quando pretendemos libertar-nos de uma opressão intolerável , tomamos haschich. Pois bem: eu tomei Wagner” (Lisboa, Guimarães Editores, 1961, pág. 62).  Libertou-se através da música, mais concretamente, a de Wagner. Veneno, diz ele. Mas veneno excelso, o de Tristão (e Isolda, de 1865), o nec plus ultra de Wagner, “o maior benfeitor da minha vida”.  O papel da música na vida de Nietzsche é decisivo ao ponto de ele próprio comparar “Assim falava Zaratustra”, a sua poderosa obra-prima, com o “espírito da primeira frase da Nona Sinfonia” (cit. por Stefan Zweig, em Nietzsche. O combate com o demónio, Lisboa, Guerra e Paz, 2022, 98). A música é para ele a arte por excelência dionisíaca, vital, pulsional. “Não sei estabelecer diferença entre as lágrimas e a música”, diz ele no Ecce Homo (1961: 64). Uma intimidade tal entre sentimento e música que acaba por identificá-los, embora no interior de um processo de transfiguração estética que vai do dionisíaco ao apolíneo e, na música, da dissonância à consonância. E a poesia segue o mesmo trajecto.  Assim se cumprindo o papel da arte como redenção. Algo que, em vez de se distanciar da vida, se aninha nela e que, no calor do ninho, se eleva como fumo branco (“envolvido em nuvens”) que, desenhando formas perfeitas no ar, indicia combustão em terra. Mais uma vez, a música e a poesia.

Eu creio que a poesia é uma espécie de sequência da música, mantendo uma grande intimidade com ela, não só porque faz parte da sua matriz, porque é de algum modo o seu registo originário, mas também porque é uma linguagem performativa, que procura funcionar como acção, superando a dimensão de mera representação do real sentimental, emocional, vital. Tal como a música a poesia vibra por si. Ao dizer-se, cumpre-se como momento existencial com densidade ontológica. A poesia não pode, pois, ser concebida como representação, mas sim como vontade, exactamente como a música. Apesar de a vontade ser “o inestético em si”, a música aparece como vontade (1972: 64). O espírito dionisíaco move-se nestas águas, move a música, mas também move a poesia na sua génese, evoluindo, esta, depois, para um puro olhar contemplativo, o do espírito apolíneo.

Nietzsche cita Schiller: “Um certo estado musical da alma é que o precede e faz gerar dentro de mim a ideia poética” (1972: 55-56). Acontece o que ele chama uma “predisposição musical” no acto de poetar.  E fala da dissonância musical. A dissonância evolui na história da música para a harmonia de sons originariamente estranhos entre si, em analogia com a própria vida, fazendo-a evoluir da aspereza para a suavidade estética, a beleza, como única forma de suportabilidade: “o mundo e a existência não podem ter justificação alguma, a não ser como fenómeno estético” (172: 175, 60). E neste registo a música tem  um papel fundamental como propulsora da arte, como energia que “dá, de certo modo, asas à arte apolínea para a levar consigo no seu voo” (1972: 173).

O ARTISTA COMO MILITANTE DA VIDA

Esta distinção entre espírito apolíneo e espírito dionisíaco é decisiva para compreender a arte. O mundo como vontade e representação é o título da grande obra de Schopenhauer. A arte conserva a vontade como impulso originário do artista, como combustível, como energia que lhe dá asas, mas ela é mais do que representação e mais do que algo que se soma ao real disponível. Ela tem mesmo a pretensão de se tornar real, confundindo-se até com ele… para o substituir. Só assim poderá cumprir a sua função redentora e libertadora. E nesta operação o artista anula-se, resolvendo-se como indivíduo empírico concreto, como subjectividade do foro real (1972: 59, 60), para se elevar à universalidade possível, mas sem perder o cordão umbilical, que nunca é cortado, ficando, todavia, invisível e espiritualizado. No voo estético, o combustível está lá, mas praticamente já não é preciso porque no ar a aspereza do real se dissolve.  A arte não é positivista. E o artista não é um observador descomprometido com o real, que levita sobre o real. Não, o artista é um militante da vida… bela. Só militando nela, com todos os riscos e choques, ele se pode elevar à esfera contemplativa.

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