Artigo

EUGENIO SCALFARI

Por João de Almeida Santos

La Repubblica

“La Repubblica”. Jas. 07-2022

PARTIU EUGENIO SCALFARI. Com 98 anos, o grande, enorme jornalista deixou-nos, ontem. E, nesta ocasião, senti o dever de escrever algumas linhas sobre ele e o seu jornal, o “La Repubblica”, que leio praticamente desde que foi, em 1976, fundado. Comecei em 1978, altura em que me mudei para Roma, e ainda o leio regularmente. Ainda por cima, fiquei e sou amigo de um dos jornalistas que o fundaram e que me habituei a ler logo nos primeiros tempos, Giovanni Valentini, que foi seu vice-director e, mais tarde, director de “L’Espresso”. Dizem-me que o nome do jornal foi um tributo ao jornal português “República”. E foi, mas já não é tanto, um grande jornal, que chegou a ultrapassar o Corriere della Sera. No início dos anos ’90, obtive, e concretizei, autorização do “La Repubblica” para reproduzir, a título gratuito, artigos e até vinhetas de autores famosos em publicações dirigidas por mim. E aprendi muito na leitura deste jornal. Lá escreviam os melhores jornalistas e intelectuais italianos. Havia como que uma identificação ontológica do jornal com Scalfari, sendo impossível dissociá-los. E o mesmo se verificava com o seu editor, Carlo Caracciolo, “il principe rosso” e “editor puro”, nas relações que sempre manteve com Scalfari. Como diz Giovanni Valentini, sem esta profunda cumplicidade de vida e de projecto entre ambos “La Repubblica” não teria acontecido.  Essa marca manteve-se sempre, mesmo quando Scalfari já não era o Director e se distanciara um pouco do jornal. Era um intelectual prestigiado, respeitado e muito influente. A sua “travagliata” vida deu-lhe uma densidade que se notava em tudo o que fazia.

UM ENSAIO DE SCALFARI SOBRE A BURGUESIA

Num livro que publiquei em 1998, “Paradoxos da Democracia” (Lisboa, Fenda, 1998, 175-179), retomei, no subcapítulo “Middle class, uma democracia sem futuro?”, um estimulante ensaio de Scalfari, “Meditações sobre o declínio da burguesia”, publicado na Revista “MicroMega”, 4/1994. Em poucas palavras, a sua ideia era a de que a burguesia estava a perder (ou já tinha mesmo perdido) o seu papel originário de classe geral, regressando a uma visão corporativa da sociedade e pretendendo ela própria interpretar directamente o poder, o que antes não acontecia. É claro que Scalfari tinha em mente o recente caso de Berlusconi e a comparação com os Agnelli – que nunca pretenderam gerir, eles, directamente o Estado – era inevitável. A ideia era a de que a universalidade do Estado não podia ser interpretada por uma concreta classe (ainda que obtivesse  mandato por via electiva) e, por isso, havia que favorecer a representação por parte de instâncias e de protagonistas não ligados directamente ao interesse e ao poder corporativo. De resto, foi assim que nasceu e se consolidou (dos contratualistas a Hegel) o Estado e o direito modernos. A emergência política da “middle class”  viria a favorecer um movimento social e politicamente fragmentário favorável à reconstrução de uma “burguesia de classe” já não identificada com o chamado “interesse geral” que a burguesia tradicional representou e a seu modo promoveu. Assistiu-se, assim, ao regresso do classismo burguês e à tentativa de acesso directo do grande capital ao poder de Estado. É o caso concreto do acesso ao poder de Berlusconi. Uma bela reflexão, a de Scalfari, a que um dia voltarei.

UMA "ESTRUTURA DE OPINIÃO"

O seu “La Repubblica” era um jornal culto e sofisticado que conseguia ao mesmo tempo ter uma enorme difusão nacional, uma difusão média diária de cerca de 730 mil exemplares, no início dos anos ’90, tendo atingido picos superiores a um milhão. E tudo isto era obra sua, enquanto líder deste excelente projecto jornalístico. Um projecto que Scalfari definia como uma “estrutura de opinião”, um autêntico “jornal de opinião de massas” (Valentini). Em suma, um projecto de centro-esquerda, que não era um quase-partido, como muitos diziam, mas, sim, quase uma “universidade popular” tal era a sua sofisticação, a diversidade de áreas em que intervinha com competência reconhecida e a enorme dimensão de massas que atingiu.

OBRIGADO, EUGENIO SCALFARI

Hoje vivemos tempos em que o modelo deste jornal de Scalfari está em declínio, não só pelo triunfo incontestado do audiovisual, contra a cultura de natureza mais analítica, e pelo dilúvio tablóide que inunda a maior parte dos meios de comunicação, mas também pelo desenvolvimento do digital, da rede e, em particular, pelo aparecimento das redes sociais e da revolução que elas estão a introduzir na opinião pública.

Scalfari pertencia a outro tempo e julgo poder caracterizá-lo analogicamente como tempo das Luzes. Um tempo que o seu projecto tão bem soube interpretar. E digo-o com conhecimento de causa e com alguma nostalgia, pois o que agora estamos a viver continua a ser, sim, um tempo de luzes, mas mais o das fugazes luzes da ribalta.

Addio e grazie, Eugenio Scalfari.

La RepubblicaRec

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Imagem do Twitter

Está a comentar usando a sua conta Twitter Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s