DÓI-ME A ALMA LÁ NO ALTO DA MONTANHA
Por João de Almeida Santos

“A Montanha Encantada”. Jas. 2022. Pintura que integra a Exposição “Luz na Montanha” (n.º 36, 94×119), aberta ao público no Centro Cultural de Cascais até 25 de Setembro.
OUVI, quando seguia pela televisão o avanço imparável do segundo acto deste drama que atingiu a Serra da Estrela e as suas gentes, e que viria a atingir fortemente também a minha aldeia natal, as palavras atribuídas a um habitante de uma das aldeias, Fernão Joanes, se não erro: “o incêndio já não é só no território, ele já está dentro de nós. Também nós já ardemos por dentro”. Foram mais ou menos estas as palavras referidas pelo repórter. Eu senti isso mesmo quando assisti ao desenrolar da primeira fase dos incêndios, sentimento reforçado, depois, quando atravessei por duas vezes o maciço central, em particular o Vale Glaciar. Para ver o que aconteceu e para trazer para casa alguma água pura daquela generosa e belíssima fonte Paulo Luís Martins, que vaza para o Vale e alimenta o Rio Zêzere. E apesar de nem ter podido ver o que estava a acontecer na zona do Sameiro, em Vale de Amoreira ou em Verdelhos, nessa belíssima e densa mancha verde de que nos apropriamos com todos os sentidos quando viajamos para o Vale Glaciar. Parece que já só é uma recordação, uma dolorosa recordação. É lá que mora o meu Amigo, e génio da construção, Joaquim, que, triste, me confessou ter perdido 33 oliveiras do seu amado olival. Foi uma semana de aperto anímico, de sofrimento, com um persistente receio de ver os incêndios chegarem a uma fase de descontrolo total. Mas, não, tudo parecia controlado passados oito longos dias, no passado Domingo, o dia em que, mais tranquilo, regressei a Cascais. Estava em paz e até experimentei uma belíssima sensação ao reencontrar, na Praia da Poça, o meu velho amigo Rui, que já não via há umas dezenas de anos. Mas foi sol de pouca dura porque logo recebi um telefonema do Luís, o proprietário daquele belíssimo restaurante Vallecula, ali na praça do pelourinho de Valhelhas, a pedir ajuda, pois os incêndios tinham regressado em força, estando a ameaçar as nossas aldeias. Era o renovar de uma antiga experiência que vinha dos tempos em que eu podia mesmo ajudar a resolver situações de emergência. Mas agora já não podia. E, triste e desolado, o Luís por lá ficou numa aflição que não há palavras que a possam descrever.
I.
E REACENDEU-SE o incêndio dentro de mim, impotente para ajudar o meu Amigo e os meus conterrâneos e até impossibilitado de agarrar no carro e ir para lá. Já não seria possível entrar na minha aldeia ou em qualquer outra daquele vasto território nos contrafortes da Serra da Estrela. Foram isoladas e as populações evacuadas. Só já podia seguir os incêndios através das televisões, pois nem sequer conseguia comunicar com os meus amigos e conterrâneos por as comunicações terem colapsado. Foi nesse momento que as palavras desse habitante de Fernão Joanes ressoaram fundo em mim. Na verdade, já todos ardíamos por dentro. Não bastaram os primeiros incêndios, que agora regressavam com mais força destrutiva. Como se um outro Putin incendiário nos estivesse a bombardear implacavelmente com ímpetos destrutivos e sem sentido. A noite de segunda para terça foi um inferno, sobretudo para os que lá estavam, mas também para nós, os que têm a alma ancorada naquelas terras. Felizmente, no momento em que escrevo, a situação parece estar controlada, mas alguns pontos críticos nos concelhos da Guarda e da Covilhã e o perigo dos reacendimentos continuam a preocupar-nos.
II.
A MONTANHA não só é o lugar primordial da minha própria identidade, o lugar do retorno cíclico, o chão onde afundam as minhas raízes, mas é também a minha principal fonte de inspiração, na poesia, mas sobretudo na pintura, como se vê pela pintura ilustrativa que aqui publico. Hoje de manhã vi no Facebook uma imagem publicada pelo meu Amigo Delfim que retomava a paisagem que se avista do meu terraço e do meu Jardim Encantado, e que tantas vezes pintei, de ângulos diferentes, mas agora, nesta foto, essa mesma imagem já aparecia projectada numa densa e imensa nuvem de fumo escuro. Fiquei destroçado e apeteceu-me apagá-la com o pincel, repondo a sua moldura de céu limpo e profundo. Soube depois que também a Quinta de um querido Amigo, o Tó, de que existe um quadro de grandes dimensões pintado por mim, foi atingida, tendo-se, felizmente, salvado os animais, as casas de granito e uma parte cultivada. O fogo já me atingiu por dentro, como se tivesse entrado pela pintura da Quinta, “Ketrof”, e reduzisse a cinzas aquele verdor que com tanta dedicação, carinho e empenho quis enaltecer esteticamente. E nem o facto de há muito ter promovido a criação de uma corporação de bombeiros para defesa da nossa floresta e das nossas aldeias serviu de barreira à progressão do fogo, tal foi a sua dimensão e a sua velocidade a partir da martirizada Valhelhas. Mas mesmo que tudo passe e não haja vidas perdidas a destruição deste fogo vai ficar ali à vista para alimentar o fogo que continua a arder dentro de nós.
III.
CONHEÇO BEM este fenómeno porque lidei com ele à escala nacional durante vários anos e poderia desatar aqui a criticar a ausência de prevenção e planificação estratégica que se constata quer a nível nacional quer a nível municipal. Mas não o farei, sobretudo neste momento de tragédia e de desolação. Do que mais precisamos é de retomar a normalidade das nossas vidas e proceder à recuperação do que for possível recuperar. É essa a única maneira de apagar o fogo que nos queima o peito e a alma.
IV.
SEMPRE que, nos meus cada vez mais frequentes regressos a estas terras, passava a aldeia de Vale Formoso em direcção a Valhelhas, através da agora devastada Quinta do Brejo, sistematicamente comentava, quase vaidoso, a beleza daquela exuberante mancha verde que a vista alcançava num raio de 180 graus, quase a desdizer o que o arguto Bernardo Soares disse no “Livro do Desassossego”: «os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor» (Porto, Assírio&Alvim, 2015: 55). Podem ser mais verdes, podem. Mas este verde era tão verde que cheguei a suspeitar de que nem um poeta qualificado seria capaz de acrescentar verdor àquele verdor natural, com palavras. Ou até mesmo um pintor que tivesse a ambição de ir mais além daquela mancha verde-escuro, elevando-a, em tela, ao reino do sublime. Não sei. Os caminhos da arte são insondáveis e talvez o Bernardo Soares tenha razão. O que sei é que nunca me conseguia conter perante tanto verdor e tinha, como um irresistível impulso, de verbalizar o meu espanto de prazer. Mas também já nem sei se poderei continuar a dizer do meu Vale o que sempre dizia quando chegava ao seu extremo norte, vindo da Guarda: “que beleza extraordinária e que perfeição a geometria deste Vale!”. O Vale ficou lá, o desenho continua perfeito, mas o verdor, esse, só fica para as palavras do poeta ou para o pincel do pintor. Valha-nos ao menos isso. E até acho que se o pintarmos com palavras e com cores (e com a alma, claro) ele se regenerará mais depressa, como que a desafiar a fantasia do artista. Se assim for, ponho mãos à obra rapidamente, logo que ultrapasse a estupefacção perante tão inesperada e velocíssima tragédia.
V.
AINDA CONTINUO a arder por dentro, depois de ter ardido por fora. Aguardo, pois, que me deixem entrar no meu Vale, para o sentir assim, para sintonizar o que sinto por dentro com o que verei por fora, para que a dor, sempre a dor, me leve a torná-lo mais belo do que era, através da arte, a forma de o salvar da fealdade ardente que o capturou, de o redimir de uma culpa que não é sua, de o elevar ao topo da Montanha que sobreviveu ao incêndio, mantendo-se intacto.
Mas hei-de habituar-me e esperar que renasça. Levando tempo, demasiado tempo, fá-lo-ei renascer eu já, ainda não sei bem como. Mas, sim, hei-de voltar a pintá-lo para que o seu verde fique já mais verde que o seu perdido verdor. #JAS@08-2022