A RAINHA, A POLÍTICA E O PODER DO SIMBÓLICO
Por João de Almeida Santos

“The Queen”. Composição minha sobre capa da TIME. 08.09-2022.
ELIZABETH II partiu e com ela toda uma época passa definitivamente aos anais da História. Ela era o mais rico e significativo testemunho vivo do que de mais importante aconteceu na História Mundial desde o segundo pós-guerra. E representava uma importante dimensão da política – o poder do simbólico, colante no qual se reconheciam um reino (UK) e uma comunidade internacional (Commonwealth) por identificação na concreta personalidade de uma Rainha que interpretou, com leveza e densidade, uma altíssima função institucional agregadora. O poder do simbólico materializado, no palco da História, no corpo de uma mulher com profissionalismo, dedicação, humanidade. E leveza, sim, poder-se-ia dizer sem receio de errar. A leveza do seu sorriso, a leveza do seu espírito de humor e a delicadeza com que foi exercendo o poder. E o valor político do simbólico a partir do qual se estrutura a visão de um país sobre si próprio e se sedimenta a própria identidade, para além das diferenças. Sim, para além das legítimas diferenças políticas que têm expressão institucional numa monarquia constitucional. Uma grande narrativa, a de uma potência, que sobreviveu na sua pessoa, interpretando-a radicalmente ao entregar-se de corpo e alma à função que a história lhe pôs nas mãos, no rosto, no corpo. Corpo vivo e singular de uma nação, com a superior e difícil exigência de anulação da própria subjectividade por diluição integral na identidade nacional. Uma função complexa que devia sobreviver às contingências do tempo histórico, durante as sete décadas em que foi máxima autoridade do Reino Unido e da Commonwealth. A própria magnificência dos palácios reais acabava por ser redimensionada na figura simples, austera, elegante e humana da monarca, que os habitava com a mesma simplicidade do cidadão comum que habita essa nação grande e poderosa. Ao que parece, do que ela gostava era mesmo do ambiente natural de Balmoral, na Escócia, da vida simples que aí podia ter. Mas nessa simplicidade ela era mais do que si própria e também mais do que a própria monarquia constitucional. Transcendia-se e transcendia o sistema político, respeitando-o escrupulosamente, mas elevando-se a figura tutelar da nação, confundindo-se de tal modo com ela que, como alguém disse, às vezes era difícil dissociá-las. Alguém se perguntava se uma vida poderia ser vivida assim, em permanente negação de si própria para realizar a plena afirmação de uma identidade nacional materializada no corpo vivo de um ser humano que era, afinal, igual a todos os outros. A representação política foi aqui consumada, ao mais alto nível, no simbólico, correspondendo-lhe, como é natural, uma dimensão muito mitigada dos seus concretos poderes, que mais eram rituais e cerimoniais.
I.
NELA, NA RAINHA, a monarquia ganhava um seu peculiar sentido, merecendo aceitação mesmo daqueles que não partilhavam o sentido do regime. Era um traço de união de todos os ingleses na sua simplicidade e na sua grandeza. Algo que parece ter desaparecido nestes tempos caóticos e desajustados que estamos a viver, onde o simbólico e a ética pública parece terem sido relegados para um plano inferior. É por isso que a sua partida sela mesmo o fim de uma época. Uma época ainda de grandes narrativas, de sentido do trágico histórico, da virtus e da gravitas emprestadas à política, marcas indeléveis de responsabilidade histórica transtemporal. A sua partida é, pois, sentida como uma Ausgang, uma saída irreversível que é também perda irreparável. Marca, sim, o fim de uma época.
II.
ALGUÉM DIZIA (com uma ponta de ironia) que a maior homenagem que se lhe poderia fazer seria ninguém ocupar o lugar que foi o seu. Seu, quase como que por antonomásia. Sim, mas mesmo que seu filho Carlos III o ocupe, e já ocupa, é impossível repor o sentido e o simbolismo de uma história que passou e que com ela, sua especial intérprete, se fechou. O seu lugar nunca poderá ser ocupado por quem quer que seja, porque o interpretou de uma forma irrepetível, quase uma obra de arte com aura, construída ao longo de muitas décadas no seu atelier de Buckingham. De certo modo, em solidão, tal como os artistas. E não só porque o tempo histórico não se repete. Também porque ela se plasmou e diluiu na função. Se transfigurou. Deu posse à nova Primeira-Ministra como sempre o fez e logo, dois dias depois, partiu no silêncio dos seus aposentos em Balmoral, deixando aquele sorriso inconfundível e aquela imagem doce, fisicamente tão marcada (nas mãos), para o futuro. Como se tivesse interrompido a marcha implacável da sua partida para cumprir, pela última vez, com serenidade e gentileza, o seu dever. E fê-lo na Escócia, um lugar problemático para a unidade do Reino Unido, deixando, com a sua presença, no momento crucial da sua vida, o momento de fronteira, uma silenciosa, mas significativa, mensagem de apego, de afecto e de identidade aos escoceses.
III.
O SEU MAIOR LEGADO talvez seja o da importância do simbólico na história e na política quando interpretado por uma pessoa concreta de forma tão elevada, mas tão simples, elegante e dedicada. Esta imagem final de uma simplicidade trágica (sabemos agora) a receber a nova primeira-ministra, o seu último e terno sorriso, diz tudo sobre ela e marca com enorme singeleza inesperada o fim de uma época.
IV.
TUDO TEM UM FIM, mas nem todos os fins são iguais. A partida da Rainha é maior do que o fim de um soberano porque ela transportava consigo um simbolismo irrepetível. God save the Queen queria mesmo dizer God save the United Kingdom. Esta era mesmo uma identidade profunda, acima das peripécias da história e dos episódios mundanos de uma família que, como tantas outras, está sujeita às vicissitudes próprias dos seres humanos. Sobreviveu às contingências, sim, mas porque se elevou acima delas. Por isso ela partiu intacta e nas universais manifestações de pesar não é possível encontrar ponta de hipocrisia, ao contrário de tantos outros momentos em lutos de significado histórico.
V.
TAMBÉM EU, que sou republicano, lhe presto a minha homenagem e evidencio o significado do seu reinado, da forma como o interpretou, do seu minimalismo constitucional e da intensidade simbólica da sua identificação com o destino de uma enorme comunidade, como legado simbólico a assumir no futuro como expressão de valores que a história humana merece que sejam preservados, seja nas monarquias constitucionais seja nas repúblicas.
Thanks, Her Majesty The Queen Elizabeth II.
#JAS@09-2022