O TRIUNFO DA DEMOCRACIA
A POLÍTICA NO BRASIL
Por João de Almeida Santos

“Alvorada no Brasil”. JAS. 11-2022
CONCLUIU-SE, com a segunda volta, no passado Domingo, 30 de Outubro, o longo e fortemente radicalizado processo eleitoral brasileiro para a Presidência da República. Venceu Lula da Silva, por uma estreita margem de votos, 2.139.645, num universo de cerca de 118 milhões e meio de votos válidos e de uma abstenção de cerca de 20,5%. Jair Bolsonaro, o candidato de extrema-direita, perdeu, depois de uma turbulenta, incompetente e isolacionista presidência que abriu caminho a um grave clima de conflitualidade. Foi uma campanha sobre o passado, tendo ambos os candidatos já ocupado a Presidência do Brasil. E o nível do debate foi baixo, espelhando o que estava já a acontecer na sociedade brasileira: um altíssimo nível conflitual promovido pelo bloco que apoiava Bolsonaro sob forma de um difuso discurso de ódio.
I.
E ESTE É UM ASPECTO que, neste momento, merece a maior das atenções. Lula, no discurso da vitória, pôs nele uma ênfase especial. Porque é aqui que se encontra uma perigosa linha de fractura política. Sobretudo neste Brasil, no Brasil que foi de Bolsonaro e que promoveu um antagonismo radical que dava continuidade a um processo que já vinha de longe, com as sucessivas golpaças que são do conhecimento público. Mas este discurso de ódio não faz parte da linguagem democrática. É, pelo contrário, um discurso de guerra, o que não visa adversários, mas inimigos. Um discurso que visa a aniquilação do outro. E se é verdade que a extrema-direita elegeu, um pouco por todo o lado, o politicamente correcto, o discurso identitário e o liberalismo como a sua principal frente de combate, retirando disso conspícuas vantagens, aqui, a esta frente, veio juntar-se, com uma intensidade pouco comum, um discurso de ódio, introduzindo no debate político uma ulterior fractura que nada tem de democrática. Se dúvidas houvesse, a tardia comunicação de Bolsonaro, cerca de 48 horas depois do apuramento dos resultados, o silenciamento do nome do vencedor e a não verbalização explícita da sua vitória e da aceitação dos resultados eleitorais (limitou-se a dizer que respeitaria os ditames constitucionais), com o correspondente e devido gesto de reconhecimento, tudo isto bastaria para revelar a verdadeira identidade política de Jair Bolsonaro. “Deus, Pátria, Família e Liberdade”, os valores que com orgulho reivindica, deveriam ter sido suficientes para ter reconhecido com humildade a vitória do adversário. Mas não, não foram.
Este é, pois, um aspecto central que o centro-esquerda (mas também o centro-direita) não deve esquecer, porque na verdade ele corresponde a uma profunda disrupção no sistema democrático. E, assim sendo, o que agora mais está em causa, para repor a normalização da vida política brasileira, tão massacrada que tem sido desde o Lava Jato até ao inacreditável impeachment de Dilma Rousseff, à prisão de Lula durante mais de um ano e meio a cargo do futuro ministro de Bolsonaro e hoje senador alinhado Sérgio Moro, ao governo truculento e isolacionista de Jair Bolsonaro – e para além da exigência de formação de um governo credível, competente, abrangente e politicamente robusto -, é o restabelecimento da normalidade do próprio regime democrático e da credibilidade dos seus órgãos de soberania, a começar pelo próprio poder judicial que tão envolvido esteve nas lamentáveis e inaceitáveis práticas de lawfare. Por isso, torna-se necessário repor a linguagem democrática no discurso político. E isto é tanto mais necessário quanto a direita tem a maioria dos governadores, a maioria dos deputados e a maioria dos senadores. Não são todos de extrema-direita, claro, mas o maior partido na Câmara dos Deputados e no Senado é o PL, o partido de Bolsonaro, o que pode indiciar que ele, tendo perdido a eleição presidencial, aspirará a liderar o conjunto da direita, a partir de uma posição de extrema-direita, o que não será, afinal, tão insólito como isso, vista a experiência americana e a actual experiência italiana. Disto julgo não ter grandes dúvidas, mas caberá também à direita democrática assumir o seu papel de garante da própria democracia e preparar uma via moderada e genuinamente democrática para o presente e para o futuro. Só nesse terreno a democracia se aguentará. A experiência de Bolsonaro poderá ter servido de lição para a direita moderada, como, aliás, se viu pelos apoios que Lula conseguiu na segunda volta. Que essa lição não fique confinada ao processo eleitoral, mas que continue com a liderança presidencial de Lula da Silva, é o que se espera.
II.
A CAMINHADA DE LULA DA SILVA para a sua terceira Presidência do Brasil foi verdadeiramente heróica, depois de todos os processos por que passou, ele e o PT, desde o vergonhoso derrube de Dilma Rousseff até à sua prisão e ao impedimento de se candidatar à Presidência. É uma vitória dele, da sua resistência, da sua força, da sua luta incansável e da capacidade de congregar forças políticas em torno da sua candidatura. Uma têmpera que vem de longe, desde as sucessivas candidaturas à Presidência, que o levariam ao palácio do Planalto em 2003 (depois de ter ganho as eleições em 2002), até a esta terceira vez, de novo sofridamente vencedora.
Esta, mais do que uma vitória da esquerda, foi a vitória da tolerância, da moderação, da democracia e da resistência contra o discurso de ódio e contra um sistema de poder instalado no Estado e na sociedade, pouco amigo da democracia e muito dado a golpaças, como aquelas a que fomos assistindo nos últimos anos, designadamente através do famoso lawfare, a nova arma jurídico-política de destruição ilegítima do adversário político sem recurso à força das armas.
O Brasil ficou muito dividido e a função do novo Presidente é a de tudo fazer para repor a normalidade democrática no País, nomeando um governo forte, abrangente e credível, capaz de envolver no processo as melhores forças de progresso do Brasil e de negociar com sucesso os necessários apoios no Congresso. E estas são verdadeiramente as prioridades, o trabalho a desenvolver, que é sobretudo um trabalho político e de regeneração das instituições, ao lado, certamente, da recuperação da credibilidade internacional do Brasil, do fim da exploração criminosa da Amazónia, que viu no mandato de Bolsonaro a destruição de 40.000 Km2 quadrados de floresta, o correspondente a todo o território da Suíça (“Le Monde”, 31.10.2022), e da promoção de políticas sociais que minimizem a pobreza generalizada das populações. Sim, mas prioritário é o trabalho de recomposição do tecido político do país, dilacerado por uma Presidência truculenta e animada por uma dialéctica amigo-inimigo de schmittiana memória. Não deverá ficar esquecido o complexo processo de desvio político que haveria de levar Bolsonaro ao poder, mas o essencial é reconduzir a vida política brasileira aos parâmetros ético-políticos da democracia representativa.
III.
VENCEU LULA, sim. Mas o seu adversário foi votado por mais de 58 milhões de eleitores. Não por mérito próprio, de tão básico ser o seu discurso e o seu comportamento, ou porque sejam todos bolsonaristas, mas sim devido ao sistema de poder instalado no Brasil, quer ao nível do Estado quer na própria sociedade civil brasileira. Tem razão Lula ao dizer que foi uma vitória contra o sistema de poder instalado. Mas a verdade é que para se superar uma tal divisão é necessário cuidar da solidez das instituições democráticas, que não é certo que exista, a julgar por tudo o que se passou desde o impeachment de Dilma Rousseff, da prisão do senhor Eduardo Cunha, dos problemas judiciais do ex-Presidente Michel Temer ao vergonhoso comportamento do poder judicial a cargo do então juiz Sérgio Moro e contra a ameaça política que já então representava o vencedor destas eleições presidenciais. Tudo isto só foi possível pela fragilidade das instituições brasileiras, pelo que a grande tarefa do Presidente Lula é, sem sombra de dúvida, a de cuidar, com talento, da solidez e da credibilidade do sistema de poder brasileiro. Sim, também as grandes reformas pelo crescimento, pela preservação do eco-sistema brasileiro e mundial e pelo combate à pobreza. Claro. Mas se não cuidar, com toda a atenção, do sistema de poder nada disto poderá ser alcançado. A política democrática regressou e subiu realmente ao palco no Brasil. Esperemos que os novos actores estejam à altura dos gigantescos desafios que a narrativa brasileira lhes irá pôr, de imediato. E a sua missão não falhará certamente por falta do apoio das grandes democracias mundiais, como se viu pela prontidão do reconhecimento público da sua vitória e da sua eleição. Jas@11-2022
Prezado João. Acabo de ler seu artigo sobre o Brasil. Você captou a essência da questão política brasileira! A missão de Lula é enorme neste país dividido. O apoio a ele, interna e externamente precisa ser constante. Bastou Lula comentar sua primeiríssima prioridade -gastos com os mais pobres – para que ” o mercado”, essa eminência poderosa, se tenha manifestado sobre tetos fiscais, e os militares se declarassem “atentos” à ordem e à soberania nacional.
Obrigado, Nazaré, pelo seu comentário (que só agora vi).