TRÊS PROPOSTAS
Para a Legislatura
Por João de Almeida Santos
PORTUGAL deveria ser hoje um caso de estudo sobre a construção da agenda política e da agenda mediática (que parece confundirem-se). Eu creio mesmo que isto anda ao sabor dos jornalistas e comentadores sempre à procura de matéria (eventualmente explosiva, mas sempre espectacular e, se possível, negativa) para o torrencial comentário, mas que não dê muito trabalho e não exija grande preparação, a não ser lábia e atracção pelo holofote. A dominante parece ser a geometria política: a dialéctica entre a esquerda e a direita, entre a direita radical e a direita fofinha, entre a esquerda radical e a esquerda fofinha, entre a direita fofinha e a esquerda radical, entre a esquerda fofinha e a direita radical e assim por diante, em jogos de espelhos que só interessam aos próprios. E o comentário acaba frequentemente com a seguinte declaração de retórica frustração: não disse (não disseram) nada de novo. Como se a política nada mais fosse que espectáculo. Guy Debord sempre presente.
1.
Eu, que sempre estive interessado em seguir o que acontecia na televisão, sobretudo por motivos profissionais, e conhecendo bem a influência que ela tem na cidadania e na política (assuntos que estudei longamente), já pouco a sigo, sobretudo pelo enjoo que cada vez mais me provoca. Já não os consigo ouvir. Missas intermináveis nesse púlpito electrónico celebradas por sacerdotes laicos sem grande preparação, mas grande lábia, e com muita pose e aparente convicção, a descodificarem o óbvio, que para eles parece sempre ser cerebrótico. E, todavia, não lhe sinto a falta porque vejo as notícias nos mesmos jornais de onde elas retiram o essencial do que informam. Não vejo, naturalmente, os comentários, mas ainda bem. Porque são tóxicos. Querem um exemplo? Esta longa procissão presidencial, com sermões de dezenas de comentadores que nunca mais se calam, que já vem de longe e muito ainda tem de calcorrear até que se chegue ao pátio da igreja e à consagração de um poder com pouca relevância, a não ser quando está constantemente a interromper os ciclos políticos, como alegremente fez o presidente que está de saída (três dissoluções num só mandato). E fê-lo, entre outras razões (talvez menos nobres), porque assim se sentia politicamente bem mais vivo do que a tirar selfies. A procissão reactivou-se agora, que passaram as habituais e recorrentes legislativas, ainda que pelo meio haja eleições autárquicas, onde a intermitência regressará com novas e intermináveis missas do comentariado televisivo. Pelo meio, vão acontecendo novos episódios, como, por exemplo, Rui Rio ser mandatário nacional do Almirante Gouveia e Melo. O baixinho (produto em grande parte televisivo, da SIC) que se cuide. Pelos vistos, não é personagem consensual nas suas próprias hostes. E também porque mais parece um clone remendado de Marcelo, o examinador. Finalmente, António José Seguro declarou que se candidatará, restando apenas saber se será o único na sua área política, apoiado ou não pelo PS, ou se surgirá outra candidatura à esquerda. Uma galeria de personalidades à procura da bênção popular para residir dez anos (5+5) no Palácio. Mas tudo isto seria evitável se a eleição do PR fosse feita por um colégio eleitoral.
2.
Voltando à agenda, e em homenagem aos processos políticos em curso (legislativas, que acabaram de ocorrer; autárquicas e presidenciais, que ocorrerão em breve) também eu quero contribuir para isso, fazendo três sugestões, que até poderiam ser incorporadas tematicamente no programa do candidato a secretário-geral do PS, para uma melhoria do nosso sistema político. E também serem objecto de atenção na nova legislatura que ontem começou. Ao menos, tratar-se-ia de matéria politicamente relevante. Em primeiro lugar, alterar o sistema eleitoral, substituindo-o por um sistema maioritário com círculos uninominais (pesem embora as actuais limitações constitucionais); em segundo lugar, acabar com a eleição directa do presidente da República, passando a ser eleito por um colégio eleitoral cuja composição deveria ser muito superior à composição do parlamento; em terceiro lugar, alterar o sistema eleitoral autárquico, tornando-o equivalente ao sistema político nacional ou ao modelo da democracia representativa em vigor, ou seja, retomando um processo que chegou a estar protocolado entre os dois maiores partidos de então (PS e PSD).
3.
No primeiro caso, haveria a vantagem de, num parlamento agora mais fragmentado, ajudar a uma maior estabilidade do sistema (governo e parlamento) ao mesmo tempo que introduziria uma maior responsabilidade na escolha dos candidatos a deputados, acabando com essas caixas fechadas das listas com os símbolos dos partidos, nada exigentes do ponto de vista da qualidade dos candidatos. Ou seja, uma maior responsabilização política dos candidatos, um critério de selecção muito mais exigente. Hoje, como se sabe, há uma efectiva hiperpersonalização da política a ponto de as legislativas terem vindo a ser transformadas em eleições directas para o primeiro-ministro, menorizando em absoluto os candidatos a deputados que, aliás, o próprio sistema eleitoral já menoriza à partida. Em grande parte, até se pode explicar a ligeireza com que se constroem as listas eleitorais precisamente pela forma de um sistema eleitoral de listas fechadas com simbolo partidário identificador, onde o conteúdo acaba por pouco importar. A democracia ganharia se aos candidatos se exigisse densidade política comprovada, presença diversificada no espaço público (incluindo o plano profissional) e na competição eleitoral e reconhecimento público da própria personalidade. A valorização da relação efectiva entre o candidato e o seu círculo eleitoral. A verdade é que o processo que leva à designação dos candidatos não parece ser o mais exigente e rigoroso até pela natureza do sistema eleitoral. Uma vez designados o que acontece é o seguinte: lugar elegível garantido nas listas e resultado dependente, não deles ou delas, mas do líder do partido e candidato a PM. A hiperpersonalização faz definhar o corpo orgânico dos partidos. Voilà. Pelo contrário, com outro sistema eleitoral, eles, os deputados, teriam de ser mais qualificados e não só ganhariam maior peso político e maior autonomia decisional em relação às direcções partidárias, mas também contribuiriam para valorizar e densificar o próprio processo eleitoral, ou seja, a democracia, ao mesmo tempo que se garantiria maior estabilidade governativa (note-se que nos últimos seis anos tivemos 4 legislativas, uma eleição em cada ano e meio).
4.
Em relação ao segundo aspecto, o da presidência, bastaria argumentar com o que temos visto nos últimos tempos: o infeliz mandato presidencial em curso ou esta interminável procissão com candidatos assumidos ou em vias de se assumirem e em intermitente campanha durante cerca de dois anos. Na verdade, o que acontece é excesso de campanha e de meios para tão exíguas funções. Vê-se bem o que são, quando os protagonistas são chamados a pronunciar-se sobre o papel do presidente da República no actual modelo constitucional, o recorrente deslize para as áreas do executivo por falta de matéria. Exemplo: na entrevista de segunda-feira, Gouveia e Melo disse tudo o que, no essencial, havia a dizer, isto é, pouco, tendo a entrevistadora percorrido todos os temas “quentes”. Se dissesse mais, seria excessivo porque acabaria por extravasar as competências previstas constitucionalmente – o que acabou por motivar os comentadores de serviço a dizerem que jogou à defensiva e que nada disse de original. Um dano grave, a falta de originalidade presidencial, para a política-espectáculo que os próprios servem e de que vivem. Ora, sendo uma eleição por colégio eleitoral, haveria possibilidade de negociação, racionalidade e pragmatismo na escolha da personalidade a eleger, tendo em atenção a exiguidade de competências de que o presidente dispõe, o histórico tão pouco abonatório, mas sobretudo clareza sobre a centralidade do parlamento e do executivo no processo político. Não digo que se teria um presidente-notário, mas seguramente um presidente com um perfil mais discreto e menos atreito a conflitualidade, como acontece hoje devido à legitimidade directa de que hoje dispõe. Também não seria tanto a televisão a escolher, como no caso de Marcelo e, espera o próprio, no caso do ex-comentador da SIC, Marques Mendes. Na verdade, com a legitimação directa o conflito e a instabilidade são sempre mais prováveis, como se viu com o segundo mandato de MRS, só para dar um exemplo entre tantos outros que poderia dar. A pulsão conflitual, quanto a mim, deriva, em grande parte, da legitimidade directa e das poucas atribuições de que o presidente dispõe para se protagonizar (para além das selfies, claro). Excesso de legitimidade para competências tão exíguas.
5.
Em relação ao terceiro aspecto, não me parece que o modelo vigente seja o melhor, com assembleias municipais que para pouco servem, por escassez de competências e de peso político (reúnem 5 vezes por ano, excepto em Lisboa, que é um autêntico exagero, não sei se devido às senhas de presença) ao mesmo tempo que se verifica rigidez excessiva no executivo, sendo os membros do executivo eleitos directamente e sendo o seu mandato não-imperativo, o que, em certos casos, torna o executivo inoperante. O acordo, que registava profundas alterações, foi assinado há muitos anos (em 2007) pelos Grupos Parlamentares dos dois maiores partidos de então (agora é sempre preciso dizer “de então”, porque já não é assim, a não ser no número de votos), mas viria a ser rasgado pela liderança de Luís Filipe Meneses, creio que devido a uma revolta de autarcas. O processo nunca mais foi retomado e o que se verifica é que nas autarquias temos um sistema presidencialista, onde o poder deliberativo pouco ou nada conta, mas onde frequentemente a capacidade decisional do próprio executivo também fica paralisada. O PS e o PSD consensualizaram um projecto de lei de revisão da lei eleitoral para as autarquias locais (PL 431/X, de 12/2007) que, no essencial, constava do seguinte:
- Constituir “um executivo eficiente e coeso, que assegure garantias de governabilidade e estabilidade para a prossecução do seu programa e prestação de contas ao eleitorado no final do mandato”.
- O presidente do executivo seria o cabeça da lista mais votada para a AM (numa só lista).
- Os membros do executivo seriam escolhidos livremente pelo presidente do executivo e seriam obrigatoriamente membros da Assembleia Municipal.
- Possibilidade de apresentação de moções de rejeição do executivo e apreciação da formação e da remodelação do executivo só pelos eleitos directamente para a AM.
No meu entendimento, este deveria ser o modelo a adoptar, por duas razões essenciais: reforçaria o peso político do órgão deliberativo, determinante para um bom funcionamento da democracia local, mas também daria maior unidade de acção ao executivo, fundamental para agir, e mais clara accountability.
6.
Mas confirmo que se nota uma enorme irracionalidade, para não dizer mesmo despropósito, na agenda política promovida pelos media e no torrencial discurso envolvente, em vez de se concentrar em aspectos que estão a impedir uma melhor prestação do sistema político, mas também naquelas que são as “policies” decisivas para a vida em comunidade, em obediência àquela que é a sua função social: fornecer informações relevantes, não para influenciar o cidadão, mas para que ele possa tomar decisões fundamentadas nas várias áreas em que decorre a sua vida em comunidade. Não para se substituir ao cidadão, mas para o dotar de melhor informação para a decisão política. Estes três aspectos que referi, simplesmente como exemplos, deveriam ser promovidos para debate público na lógica daquela que hoje já se designa por democracia deliberativa. Bem pelo contrário, aquilo a que assistimos é a um agendamento induzido, por um lado, pelos partidos, sempre em “permanent campaigning”, para polarizarem instrumentalmente a atenção social para os temas que lhes interessam (ou mesmo para desviarem as atenções) e, por outro, pelos media, que, em parte, seguem, de forma pouco imparcial e neutral, as agendas dos partidos, mas que, sobretudo, seguem as suas próprias agendas de acordo com a sua crescente vocação tablóide, em claro desvirtuamento daqueles que são os seus próprios códigos éticos. Os casos que aqui referi são apenas três exemplos de tópicos que, esses sim, entre tantos outros, poderiam subir à agenda política e interessar a um desenvolvimento positivo da nossa democracia. E até confesso que não vejo razão para que o PS não venha a agendar estes temas, porque, na verdade, se trata de temas que são importantes para melhorar o sistema político e que teriam efeitos consistentes, a montante, sobre o próprio sistema de partidos.
7.
Bem sei que Luís Montenegro não está nada interessado em matérias desta natureza, em nome dos problemas imediatos que tem para resolver (e não são poucos), diz ele, até porque, na sua visão, o PSD não tem nem nunca teve problemas existenciais, como disse numa campanha interna em que participou como candidato (talvez tenha sido naquela que o levou à presidência do PSD). Pode ser e é legítimo que sinta isso, até para não cair em depressão política com um problema de identidade que, ao contrário do que disse, sempre afectou o seu partido. Ou com outros problemas, como o de ver o anterior presidente do PSD ser o mandatário nacional do Almirante Gouveia e Melo e não de Marques Mendes, o escolhido. Mas a verdade é que fugir aos problemas existenciais até parece ser, de resto, uma especialidade de sucesso de Luís Montenegro. Como se viu recentemente. E, todavia, o país, tem, sim, problemas existenciais. E não são poucos. Um deles, por exemplo, é o de ter tido um presidente da República como o que ainda está actualmente em funções. Ou o de andar constantemente em eleições. Mas sendo certo que, em breve, aquele problema (o do PR) será resolvido, atendendo ao histórico, não é, todavia, seguro que não venham aí mais problemas existenciais. Não para o PSD de Montenegro, que não os tem, mas para o país, que os tem e os sofre. Por isso, melhor será que, no futuro, se avance para a solução que acima propus: acabar, logo que possível, com a procissão e a festa presidencial e introduzir a sua eleição através de um colégio eleitoral. Em Itália, por exemplo, é assim e não conheço problemas que tenha havido com este sistema, ao longo das muitas décadas em que sigo a política italiana. Mas também avançar para os dois outros temas (o da democracia local e, sobretudo, o do sistema eleitoral), porventura muito mais importantes que o da presidência. JAS@06-2025
CADERNO DE ENCARGOS
O PS e o Futuro
João de Almeida Santos
COMEÇO pelo fim, ou seja, pelos resultados dos círculos eleitorais da Europa e fora da Europa, ontem conhecidos, e a confirmação de duas novidades que só por si, se outras não houvesse, justificariam uma profunda reflexão: o PS é hoje o terceiro partido do nosso sistema de partidos, substituído nessa posição por um recentíssimo partido de direita radical, que obteve 60 deputados contra os 58 do PS (o salto eleitoral é parecido ao que se verificou em Itália, com o Fratelli d’Italia, entre 2018, com 4,3%, e 2022, com 26%). O PS, que sempre elegeu deputados nestes círculos eleitorais, chegando a eleger três deputados, por exemplo, nas eleições de 1999 ou nas de 2022, não tem hoje representação política nestes círculos. Há três anos, em 2022, o PS teve uma maioria absoluta, com 41,37% e 120 deputados, e elegeu três deputados nestes mesmos círculos eleitorais; hoje, exibe menos de 23% com apenas 58 deputados. Nada acontece por acaso.
1.
Mas vêem-se por aí análises de especialistas e investigadores, de cientistas sociais, de politólogos, comentadores e jornalistas (e, diria um italiano, “chi più ne ha piú ne metta”) a explicar a derrocada do PS com a habitual conversa sem irem a um dos mais importantes factores da crise: a identidade organizacional do PS; a sua estrutura organizativa; o método de selecção da classe dirigente; o progressivo esvaziamento da dialéctica política interna (é cada vez maior a apresentação de candidaturas únicas sem competição interna) que leva a pactos internos entre os dirigentes em funções para que, em qualquer caso, mantenham firmes as suas posições na estrutura de poder, a relação com a sociedade civil; a força da “lei de ferro da oligarquia” partidária (Michels); a endogamia e não sei que mais… Uma das causas principais, se não a principal, reside, de facto, a montante, ainda por cima favorecida, a jusante, por um sistema eleitoral em listas fechadas unicamente com selo partidário a identificá-las e, em parte, com a “colonização” do território partidário pelas elites dirigentes, sobretudo quando o líder é primeiro-ministro e dissemina os seus escolhidos pela mancha partidária. O argumento para nada mudar, nem sequer com um mínimo de transformismo, costuma ser o dos combates que sempre espreitam à esquina, não havendo tempo a perder. Ladainha que se ouve sistematicamente sempre que parece ser necessário mudar alguma coisa. Nunca há, pois, tempo para isso, até porque os desafios vindos do exterior são sempre inúmeros e intermináveis. É assim que se desvitaliza um partido e é assim que demasiados personagens se perpetuam no poder. Conheço alguns que por lá andam há cerca de quarenta anos e, outros, mais novos, que foram para lá de cueiros e nunca mais de lá saíram. Sim, temos de falar de tudo o que é importante para o país, como diz o meu Amigo Miguel Coelho. Claro, mas se forem incapazes, autocentrados, videirinhos, carreiristas, se forem os mesmos de sempre, que só pensam em sobreviver à custa dos eternos lugares que ocupam, que discurso será esse? Sim, é preciso falar disso, mas a conversa não deve ser conduzida por quem chegou ao palco há décadas, através de sistemas de selecção pouco criteriosos, e nunca mais de lá saiu, sendo esses, portanto, também responsáveis pela crise, por mais que agora, já tarde, sejam os primeiros a gritar: “é preciso reflectir!”. O funcionamento interno do partido não interessa nada, em tempo de hiperpersonalização da política? Admitindo que é sim (mas não é), então deveriam surgir hiperprotagonistas, hipersonalidades e não carreiristas e personagens de segunda ordem formatados pela propaganda e pelas televisões. Não me refiro a alguém concreto, mas à lógica dominante. Pergunto: a marca do veículo político é tudo, não interessando se está ou não com graves problemas de gestão, de produção, de mercado e de ajustamento às profundas mudanças no sector? A marca é mesmo tudo, mesmo que o motor esteja a cair de podre ou “gripado”? O importante é o movimento, mesmo com os pneus furados? O mesmo poderia valer para uma boa peça de teatro ou um bom filme de autor interpretados por actores medíocres, por melhor que fosse a cenografia, a música ou até o nome da companhia. E esta não é uma questão de somenos.
2.
Quanto a mim, este é um dos mais graves problemas do PS porque dele derivam todos os outros, o problema da classe dirigente e dos mecanismos de selecção. Um partido da importância histórica e da dimensão do PS não pode ser transformado numa imensa federação de interesses pessoais disfarçados de interesse público. Os que por lá andam têm-se movido pelo interesse público ou por puro interesse pessoal? Que provas deram na sociedade civil ou na vida profissional, quando a tiveram e se a tiveram? Que preparação intelectual demonstram ou, pelo menos, que capacidade têm para mobilizar os melhores recursos de que o partido pode dispor? O método de selecção dos dirigentes é o melhor, mais eficaz e correcto? O partido tem vida própria para além do que os recursos e as posições derivadas do Estado lhe dão? Que ideia tem o partido de si próprio, ou seja, que identidade? Para que serve? Para resolver os problemas dos que por lá andam ou para resolver os problemas do país? Que tipo de vida o partido deve animar no seu próprio interior? Como mobilizar os seus militantes e simpatizantes? De que recursos dispõe não só para gerar pensamento, incorporando e metabolizando o que de melhor possam produzir os seus “intelectuais orgânicos” (para usar um conceito de Gramsci), mas também para o disseminar? Como pode o partido intervir nos organismos da sociedade civil, não para os ocupar instrumentalmente, mas para os animar com as suas ideias e a sua acção, não intervindo com uma lógica puramente instrumental (como tem vindo a acontecer com certos sindicatos e certas ordens profissionais)? A resposta a todas estas questões infelizmente não me parece que seja interessante e mobilizadora.
3.
De qualquer modo, só depois de respondidas essas e outras questões, que a seguir enunciarei, poderão ser enquadradas as políticas concretas (as policies), que, de resto, deverão ser identificadas no quadro de uma boa cartografia cognitiva (Jameson) e dos valores partilhados pelo partido e radicados na sua tradição ideal. Só depois as respostas aos problemas podem ser dadas, com identificação precisa da “causa causans” do problema e do “princípio activo” que permitirá dar-lhe uma resposta eficaz.
4.
Os aspectos até aqui referidos são de extrema importância porque serão eles que balizarão as respostas para os grandes problemas com que se debate o país. E as questões, que se cruzam com as propostas programáticas concretas e com as soluções, são estas, entre tantas outras:
- Qual é, para o PS, o espaço que o Estado deve ocupar e o papel que deve desempenhar relativamente à sociedade civil (veja o meu artigo “O Estado enriquece a middle class empobrece”, no seguinte link: https://joaodealmeidasantos.com/2022/03/08/artigo-63/ )? Na verdade, o PS, nas políticas que tem promovido, tem dado ao Estado um excessivo protagonismo e esta é questão a clarificar, até porque ela tem a ver com a questão que se segue.
- Qual é a relação do PS com o liberalismo clássico? Continuará a identificar o liberalismo clássico, aquele que está na matriz da nossa civilização (veja-se os 17 artigos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789), com uma tradição que seria alheia ao seu património ideal, designadamente com o neoliberalismo, tendo chegado ao ponto de identificar a “terceira via” de Blair (e de Kinnock e John Smith) como neoliberal?
- Deve ou não o PS diferenciar claramente a sua identidade, a sua estrutura nuclear, dos movimentos identitários, do wokismo, do revisionismo histórico e do “politicamente correcto”, quando se vêem tantos lá dentro a agitar alegremente estas bandeiras? No meu mais recente livro (Política e Ideologia na Era do Algoritmo, S. João do Estoril, ACA Edições, 2024) dedico uma parte inteira à desmontagem deste desvario pretensamente de esquerda (“Ideologia – A lavandaria Semiótica”: pp. 173-234).
- Deve o PS, que é um partido de homens e mulheres livres e iguais, definir-se como partido feminista?
- Qual o papel do sector privado e do mercado na resolução dos grandes problemas relativos à saúde e à habitação? O “princípio activo” (a solução) é o da intervenção pública em ambos os sectores?
- Que política fiscal (e em geral de intrusão financeira do Estado nos bolsos do cidadão) deverá ser implementada para devolver equidade e moderação fiscal à cidadania? Um exemplo muito significativo: considera o PS que pagar 23% de IVA sobre o gasóleo de aquecimento das habitações, designadamente nas zonas mais frias do país, é justo, sensato e aceitável, seja qual for a condição económica do cidadão?
- Considera o PS normal que em Portugal haja dois tipos de cidadãos: uns, de primeira classe (os funcionários públicos) e, outros, de segunda classe (os trabalhadores do sector privado, seis vezes mais numerosos do que aqueles, que trabalham 40 horas contra as 35 dos outros, estando sujeitos a despedimento quando o emprego daqueles é para a vida)? Não há sobre isto um sobressalto ético, mesmo à custa de um sobressalto eleitoral (que, mesmo assim, acaba por acontecer, como se viu)?
- Que política para proteger, mediante uma eficaz e permanente monitorização, o cidadão do livre arbítrio dos oligopólios (telecomunicações, electricidade, combustíveis, televisões, banca, centrais de distribuição), sendo certo que ele é impotente para fazer um controlo mínimo sobre os valores cobrados, que são elevados? No que toca à electricidade e às telecomunicações, a sua instalação, sobretudo nas freguesias mais pequenas deste país, é de péssima qualidade, arbitrária, de duvidosa segurança, criando um ambiente de “arraial minhoto” absolutamente inaceitável e prejudicial à atractividade destes territórios. Por exemplo, os dois mil e quinhentos milhões do PRR não deram para enterrar os fios de fibra óptica aquando da sua instalação por todo o lado (é só visitar uma qualquer aldeia do interior – por exemplo, as freguesias do concelho da Guarda)? O Estado nada tem a ver com isso? Não monitoriza o que se passa no território? Qual é a posição do PS sobre tudo isto (e descontada a negligência dos seus recentes governos sobre esta matéria)?
- O financiamento da dívida pública deve ser feito dominantemente (ou mesmo exclusivamente, como gostaria um tal João Duque, Presidente do ISEG e amigo da banca) no mercado financeiro internacional, como quis o ex-ministro Fernando Medina (veja-se a iniquidade e o erro na mudança dos Certificados de Aforro), em vez de ser progressivamente filiado na poupança nacional (que deveria ser incentivada, e não subordinada ao cartel bancário, e regulada através do Instituto de Crédito Público, IGCP, e até do banco público – veja sobre esta matéria o meu artigo “Confissões de um Aforrador” no link: https://joaodealmeidasantos.com/2023/06/06/artigo-105/)?
- Acha o PS normal que a política de investigação seja decidida integralmente por avaliadores estrangeiros, chegando ao ponto de os recursos hierárquicos (para a FCT) serem obrigatoriamente feitos em língua inglesa, contrariando o art. 54.º do CPA e obedecendo a uma progressiva imposição do novo esperanto mundial, a língua inglesa? Há uns anos publiquei sobre isto e sobre a política de género aplicada à investigação científica, no “Público”, uma Carta Aberta ao PM António Costa, que ficou sem resposta. Lembro também que, recentemente, em 21.05.2025, o Ministro das Relações Exteriores de Angola, presidente do Conselho Executivo da União Africana, perguntou numa conferência de imprensa, com Kaja Kallas, a responsável pela diplomacia europeia, no âmbito de um encontro ministerial entre a UE e a União Africana, em Bruxelas, se podia falar em português, a sua língua, tendo-lhe sido respondido que não existia tradução, podendo falar somente em inglês ou em francês. O que é curioso é que o inglês não é sequer língua nativa de nenhum Estado-Membro da União Europeia.
- Como pensa o PS repor no devido lugar a língua portuguesa perante esta colonização do nosso espaço cultural e institucional comum pelo inglês a níveis que podem ser considerados “pornográficos”? Isto em relação a uma língua falada por mais de 250 milhões de pessoas e válida para a ciência como qualquer outra (a ciência trabalha com conceitos, com “abstracções determinadas”, qualquer que seja a língua).
- Sobre as grandes plataformas digitais, qual é a posição do PS: promover um constitucionalismo digital e uma forte regulação do sector e promover, para além disso, a criação de uma plataforma digital da União Europeia que permita aos utilizadores migrarem para ela, ficando os seus dados de utilizador no espaço da União? Conhecendo-se hoje a orientação política dos senhores destas plataformas é, no meu entendimento, urgente criar uma grande plataforma digital europeia, não se ficando a União Europeia pela regulação e pelas multas (veja-se o meu livro acima citado).
- Sobre as agências de rating, sendo que as três que contam (Fitch, Standard&Poors e Moody’s), todas americanas e com mais de um século de existência, dominam quase a totalidade do mercado de rating (cerca de 95%, que, por exemplo, em 2011, ascendeu a cerca de 46 mil milhões de dólares, qual a posição do PS sobre a necessidade de uma forte Agência de Rating na União (não sei se apostando eventualmente no reforço da jovem agência de rating alemã, Scope Ratings, já reconhecida pelo Banco Central Europeu), e atendendo ao forte impacto das avaliações de rating sobre a economia e as finanças dos países singulares da própria União (e das empresas), ao valor do financiamento das dívidas públicas e, finalmente, ao valor das taxas de juros, em geral?
- Sobre a EU, qual é a visão do PS sobre o desenvolvimento institucional da União, sobre o alargamento/aprofundamento da EU: a posição designada por constitucionalista ou a posição funcionalista e intergovernamental, tendo em consideração que foi o Tratado de Lisboa que veio contornar o chumbo, devido a dois referendos negativos na França e na Holanda (em 2005), da Constituição Europeia ou do Tratado Constitucional, cuja institucionalização estava já num processo avançado?
E tantas outras questões poderiam aqui ser colocadas, mas creio que para o objectivo do artigo estas serão suficientes. Assim elas tenham uma clara e positiva resposta, dando com isso um sinal prometedor.
5.
Estas são algumas questões que não se vê afloradas no imenso fluxo verborreico que corre diariamente nessa imensa cloaca tóxica das televisões (todas) e que cobrem uma vasta e diversificada área de intervenção do Estado, mas que, por isso mesmo, gostaria de ver respondidas pelo candidato (se não houver competição) à liderança do PS, de modo a que os militantes (os que forem votar se não houver competição, como, estranhamente, parece, pelas palavras que proferiu, ser desejado pelo Presidente do Partido) possam votar em consciência. Respondidas com convicção e com firme propósito de as pôr em prática. Através das respostas ver-se-á se o PS está preparado para clarificar a sua identidade política sem se limitar a cantar loas à sua nobre tradição e ao seu velho património ideal. Na verdade, talvez por ignorância minha, nunca dei conta de uma profunda clarificação ideológica do PS, equivalente à que foi tentada (e não conseguida) por Hugh Gaitskell, nos anos cinquenta, pelo SPD, em Bad Godesberg, em 1959 (e conseguida), ou por Neil Kinnock, John Smith e Tony Blair, em 1985, 1987 e 1994 (veja o meu artigo de análise crítica da posição de PNS no artigo: “A social-democracia e o futuro – Um debate necessário. A propósito de um pequeno ensaio de Pedro Nuno Santos” – link: https://joaodealmeidasantos.com/2018/05/11/artigo-2/). Clarificação muito necessária até porque no espaço do socialismo democrático há pelo menos duas tradições historicamente bem demarcadas: a da social-democracia e a do socialismo liberal. Uma, historicamente mais efectiva e generalizada, mas em profunda crise por todo o lado; a outra, menos praticada, mas com uma ampla e rica tradição, que vai da Stuart Mill a Hobson, de Hobhouse aos irmãos Rosselli, de Dewey a Bobbio e ao Partito d’Azione, mas na qual pode também ser incluído Eduard Bernstein (veja o meu artigo sobre o socialismo liberal no link: “Afinal, o que é o socialismo liberal?” – https://joaodealmeidasantos.com/2023/09/27/artigo-122/). E não é indiferente extrair de ambas algumas lições que possam ajudar a uma melhor clarificação da sua identidade e a uma sua revitalização, em período de crise, a que urge pôr cobro se não quisermos assistir a uma profunda regressão, agora que o mundo parece ter uma liderança que reduz a política a uma questão de puro exercício do poder, se for necessário com a força, e que poderá ter força para atrair, como já aconteceu no passado, o direita moderada. Há, sem dúvida, um filão doutrinário muito rico que pode ser revisitado, mas há sobretudo necessidade de alinhar a identidade do partido pela evolução da sociedade contemporânea, rompendo com a velha tradição de fazer política por inércia.
6.
Infelizmente, sempre se tem verificado que não há tempo para tratar dos assuntos de natureza estrutural porque sobrevêm combates que se sobrepõem a cada etapa interna e a sobredeterminam, impedindo a reflexão, as reformas internas, o debate e, cada vez mais, até impedindo uma saudável dialéctica interna para a revitalização do partido, com efeitos de crescente desilusão e indiferença dos próprios militantes. É, também, de novo, este o caso, com autárquicas e presidenciais no calendário. Mas foi também assim logo a seguir ao apressado abandono da maioria absoluta do PS para que António Costa pudesse rumar, sem entraves nem mancha ética, a Bruxelas, deixando uma herança de cuja trágica dimensão só agora nos estamos a aperceber na sua plenitude. Os famosos Estados Gerais de PNS, e de inspiração guterriana, nem sequer se iniciaram, devido à atracção irresistível por novas e miríficas eleições antecipadas, justificadas em nome da ingénua coerência do discurso do líder. A verdade é que a conquista do aparelho de Estado parece ter-se transformado numa caça ao tesouro que une toda a classe dirigente, mais para se resguardar das intempéries da vida (que só se vive uma vez) do que para mudar o país. A fuga ao combate autárquico em Cascais de Marcos Perestrello (a crer nas notícias que circulam e não desmentidas), dando lugar a uma infeliz candidatura do actual presidente da concelhia, é um mero e deplorável exemplo disso mesmo. E assim o PS se vai desgastando até à irrelevância. Vêem-se agora muito bem as consequências dessa atracção irresistível pelas eleições com a preocupação por uma eventual mudança constitucional que, pela primeira vez, poderá prescindir do PS, podendo mesmo acontecer que haja uma profunda e preocupante alteração do regime. Exemplo: a privatização da segurança social, com os riscos inerentes às inesperadas e não controláveis flutuações do mercado de capitais e dos tumultuosos fluxos financeiros internacionais, tudo numa gestão privada que não terá os instrumentos de que o Estado dispõe para evitar a desgraça dos pensionistas e dos que descontam. Isto chegou a um ponto tal que até parece que os dirigentes do PS já só podem rogar para que o PSD não traia a confiança constitucional que tem existido até hoje. E é o que, lamentavelmente, está a acontecer.
7.
O PS é, sim, uma marca de prestígio e, por isso, merece que se cuide dela antes de a voltar a pôr activa no mercado para disputar com sucesso a liderança. Bem sei que vivemos numa época em que as aparências parece dominarem a vida social, em que a política vive sobretudo da teatralização de programas e de actores, onde o Estado parece estar raptado por duas visões opostas, mas ambas erradas e perniciosas: o Estado paternalista e caritativo que se substitui à iniciativa da sociedade civil ou aquele que, depois de garantir minimamente as funções de soberania (ma non troppo), só serve para desviar do Estado recursos públicos para os mais poderosos e infinitamente ávidos de poder financeiro (esta, a dominante, actualmente). Duas visões estatistas, mas de sinal oposto. Ora, nisto, o PS ocupa um posição virtuosa porque matricialmente nem se identifica (deve identificar) com uma nem com a outra. E, todavia, tem acontecido que se tem desviado para a primeira em nome da glorificação e da heroicização da pobreza por contraposição a uma visão trágica do capitalismo e da riqueza, fazendo do Estado Social o seu único horizonte estratégico sem cuidar de garantir aquilo que o pode permitir, sem assaltar os bolsos da classe média, ou seja, a criação da tão execrada riqueza. Mas este seu desiderato, sendo legítimo, desde que moderado, eficaz e não paternalista nem caritativo, não pode ser o único porque muito maior e complexo é o caderno de encargos que um partido como o PS deve assumir e executar. Esta derrocada deveria servir para parar, pensar e tomar medidas de fundo corajosas: as que não pactuem com os mesmos de sempre, os que vivem enclausurados nas paredes do partido ou do Estado e que parecem incapazes de respirar cá fora. Não sei o que aí virá, mas suspeito. De qualquer modo votarei, mesmo que ninguém responda às questões que aqui deixo.
8.
Há um princípio básico que deveria estar sempre presente na mente dos que fazem política: ela deriva da sociedade civil e serve para resolver os seus problemas, não os de quem à política se dedica. Só indirectamente. O que não pode acontecer é uma inversão (ideológica) da realidade: ser a sociedade civil a servir o Estado, em vez de ser o Estado e os seus agentes a servirem a sociedade civil. O que é preciso é fazer crescer a sociedade civil, torná-la robusta, não é fazer crescer o Estado à custa da sociedade civil, do seu enfraquecimento, numa política sanguessuga, para depois aquele ser pasto de alimento para a oligarquia partidária. Mas eu sei que o PS está cheio dos que pensam ao contrário, com uma motivação perfeitamente errada: é que fazendo crescer o Estado (à custa dos que criam riqueza) pode depois ser devolvida essa riqueza aos que não a produzem, seja qual for a motivação, a causa, a razão. Em nome da pública e laica caridade. Sabemos bem onde levou o estatismo exacerbado e a economia de plano. A decadência da social-democracia deve-se também a este tipo de pensamento e de actuação.
NOTA
Para aprofundar a reflexão sobre o PS, aconselho estes dois artigos de minha autoria:
“PS – ENTRE O PASSADO E O FUTURO”. Link: https://joaodealmeidasantos.com/2023/11/21/artigo-130/ “CINQUENTA ANOS – E AGORA, PS?”. Link: https://joaodealmeidasantos.com/2023/04/18/artigo-98/ JAS@05-2025


