O POPULISMO NO PODER
João de Almeida Santos
Ilustração: Cartaz da digressão do fundador do MoVimento5Stelle,
Beppe Grillo (e publicado no seu Blog), por Itália - uma narrativa
sobre a sua vida.
«È in corso una guerra tra due mondi. Tra due diverse concezioni della realtà». [Guerra] «nascosta dai media, temuta dai politici, contrastata dalle organizzazioni internazionali, avversata dalle multinazionali». «Questa guerra totale (…) è dovuta alla diffusione della rete». «I giornali stanno scomparendo, poi verrà il turno delle televisioni… tutta l’informazione confluirà in rete e chiunque potrà diventare prosumer, ossia al tempo stesso produttore e fruitore dell’informazione». «La partecipazione diretta dei cittadini alla cosa pubblica sta prendendo il posto della delega in bianco». Gianroberto Casaleggio e Beppe Grillo Siamo in guerra. Per una nuova politica. (Milano, 2011, pp.3-4). “Non esistono destra e sinistra, esiste il popolo contro le élite”. Matteo Salvini “Mr. Bannon said he told Mr. Salvini, 'You are the first guys who can really break the left and right paradigm. You can show that populism is the new organizing principle'.” Stephen Bannon (O ideólogo do soberanismo americano), segundo o New York Times de 01.06.2018.
ARTIGO
É OFICIAL. Itália já tem governo com um Presidente do Conselho (é assim que se chama) indicado pelo M5S: Giuseppe Conte, Professor de Direito acusado de ter retocado – em cinco casos – com muita imaginação o seu currículo académico, mas, mesmo assim, indigitado duas vezes e, finalmente, nomeado pelo Presidente Sergio Mattarella. Acaba de tomar posse no Palazzo del Quirinale. Vice-Presidentes Luigi di Maio (líder político do M5S, com a pasta do Desenvolvimento Económico e do Trabalho) e Matteo Salvini (Líder da Lega), com a pasta da Administração Interna (Ministero dell’Interno). 18 os Ministros (7 do M5S, 6 da Lega – contando o Secretário de Estado da Presidência – e seis técnicos). Cinco as mulheres em Ministérios politicamente importantes: Saúde, Defesa, Administração Pública, Assuntos Regionais, Sul. Este governo dispõe de maioria absoluta quer na Câmara dos Deputados quer no Senado.
Chega, assim, a 88 dias do voto, a bom porto um processo que já se adivinhava e que estava escrito, não nas estrelas, mas na realidade política italiana. Os partidos de formato clássico, e em particular o Partido Democrático (PD), não resistiram a um partido de novo tipo, digital e neopopulista, como o MoVimento5Stelle. A diferença eleitoral que se verificou nas eleições do passado 4 de Março entre este partido e os outros foi, no caso do PD, de 14 pontos, no caso da LEGA, de 15 pontos, e, no caso de Forza Italia, de 18 pontos. A derrota de Renzi no referendo constitucional e a cisão promovida por D’Alema ajudaram à queda do PD e ao avanço do M5S. O populismo venceu em Itália por maioria absoluta. Começa agora o segundo e mais difícil “round”, o governativo. A LEGA sai muito reforçada nesta solução governativa, atendendo à sua dimensão eleitoral.
Populismo
Na verdade, ambos os partidos que integrarão o governo italiano são partidos populistas, um, de tipo clássico, a LEGA, e, o outro, neopopulista, o M5S, com uma base social totalmente diferente da base social tradicional do populismo. Este último submeteu o “Contrato de Governo para a Mudança” a votação na plataforma do M5S, Rousseau. Ambos são contra o establishment e proclamam a necessidade de devolver o poder ao povo. Matteo Salvini: “Non esistono destra e sinistra, esiste il popolo contro le élite”! É correcto, pois, dizer que os populistas, de dois tipos diferentes, chegaram ao poder em Itália. Anti-establishment, nacionalismo, liderança carismática e oracular, mitificação do povo contra a representação, democracia directa contra o poder da “casta”, anti-imigração, que é o modo de ser contra o diferente, o outro, dúvidas sobre a União Europeia, discurso fortemente ético, reforço da segurança – são os principais pontos que os distinguem. No caso do M5S, a reivindicação da democracia directa é mais clara e fundamentada.
O “Contrato de Governo para a Mudança”
Fui ler o programa de governo assinado pelos dois partidos e encontrei lá de tudo. E começo pelo mecanismo que encontraram para dirimir os desentendimentos ou resolver as omissões do Contrato de Governo, o Comité de Conciliação, fórmula que consta dos Tratados da UE, se não erro desde Maastricht (1993), para mediar na resolução de questões que surjam entre o Parlamento Europeu e o Conselho de Ministros. Assim mesmo: Comité de Conciliação. Nem de propósito – uma importação política directa dos Tratados. Só que este é um Comité sui generis: integra o Presidente do Conselho, os dois líderes da coligação governativa, os Presidentes dos Grupos Parlamentares dos dois partidos e o ministro que tutelar a matéria em causa. Estranho, não é? Sim, por várias razões. Em primeiro lugar, porque representa uma mistura de instâncias que não se podem misturar (privado e público), numa óptica institucional, de Estado. Em segundo lugar, porque toma decisões (por maioria de dois terços), não se confinando a órgão consultivo. Em terceiro lugar, porque confisca competências que só podem pertencer ao governo. Numa palavra, introduz um organicismo que não é compatível com a natureza do sistema representativo. Em boa verdade, agora que os líderes dos dois partidos ocupam a Vice-Presidência o órgão só integrará, na realidade, membros do sistema institucional, embora lá estejam a título de líderes políticos.
Depois, o programa propriamente dito:
- introdução da flat tax, com valores que variam entre os 15% e os 20% (pessoas físicas, IVA, empresas e famílias, com um sistema de deduções para garantir a progressividade dos impostos);
- aposta na green economy;
- desincorporação da despesa para investimento público do défice.
- luta para que os títulos de Estado dos países da zona euro já adquiridos pelo Banco Central Europeu através da operação do quantitative easing sejam excluídos do cálculo da relação dívida-PIB;
- rendimento de cidadania para os carenciados no valor de 780 euros (por pessoa), com limite temporal de dois anos, e pensão de cidadania que compensa as pensões inferiores a 780 euros;
- reforma do sistema pensionístico: reforma a quem atinge quota 100 na soma idade+contribuições. E reforma a quem contribuiu 41 anos. 58 anos para as mulheres com 35 anos de descontos;
- drástica redução do número de deputados e de senadores: quase para metade, para 400 e 200, respectivamente;
- introdução de mecanismos de democracia directa, como a revisão da legislação que regula o instituto do referendo (referendo “abrogativo” reforçado, referendo propositivo, fim da exigência de quorum); iniciativa popular reforçada e introdução de formas de vínculo de mandato.
- cidadania digital gratuita desde o nascimento;
- proibição perpétua de desempenho de funções públicas para os corruptos e intensificação das penas;
- recondução do regime previdencial ao regime comum e anulação das reformas superiores a 5.000 euros (líquidos) dos dirigentes (politicos) da Administração Pública, sem fundamento contributivo.
- rediscussão dos Tratados UE e do quadro normativo principal e reforço dos poderes do Parlamento Europeu e das Regiões.
- prevalência da constituição italiana sobre o direito comunitário;
- repartição equitativa dos pedidos de asilo pelos países da UE;
- endurecimento das políticas de imigração (com corte de 5 mil milhões já anunciado pelo Ministro da Administração Interna, Matteo Salvini);
- fim das sanções à Rússia, partner internacional.
Estes os pontos programáticos principais que constam do documento assinado pelo M5S e pela Liga.
Duas curiosidades
- Não podem fazer parte do governo os membros da maçonaria e os que tenham conflito de interesses relativamente às respectivas tutelas;
- citada uma constituição, neste documento, a propósito da introdução de vínculos de mandato necessários para quem defende a democracia directa: a portuguesa, no seu artigo 160, alínea c), que prevê perda de mandato para os que “se inscrevam em partido diverso daquele pelo qual foram apresentados a sufrágio”. Esta alínea da nossa constituição é invocada a propósito da democracia directa, no que eu julgo ser um erro do legislador português porque ela nega o essencial do sistema representativo, ou seja, uma mudança de estatuto do representante no plano privado (que não é crime, nem punível por lei) é condição suficiente para revogar um mandato que se situa num plano superior, anulando a pedra-de-toque da representação, ou seja, a natureza do mandato, neste caso, não-imperativo.
Política
Mas vejamos aquilo que mais directamente toca o sistema, ou seja, as medidas de carácter mais político: cidadania digital à nascença e gratuita para todos; referendos “abrogativo” (com capacidade revogatória) e propositivo sem necessidade de quorum estrutural para serem válidos; obrigatoriedade de pronúncia do Parlamento sobre as propostas de lei de iniciativa popular e respectiva calendarização; introdução de vínculos de mandato que permitam a sua revogação; órgão de decisão para-institucional, regido pela norma da maioria qualificada, sobre a acção governativa.
Não é grande coisa, mas indicia uma tímida mudança na gestão do poder. O que já se previa pelas exigências inerentes ao governo de um grande país que faz parte da União Europeia. O que, por outro lado, torna claro que uma coisa é a disputa eleitoral para a conquista do poder e a outra é a gestão do poder, como em breve acabaremos por ver. E talvez seja aqui que morre a novidade. Pelo menos, em relação à anterior experiência dos governos Berlusconi, com a presença quer da Liga quer da Aliança Nacional, pós-fascista. O próprio partido Forza Itália era um partido com muitas semelhanças ao populismo e não só pela dominância de um líder carismático, ao ponto de um intelectual como Norberto Bobbio dizer que, de certo modo, ele representava uma espécie de autobiografia da nação. Também porque se apresentava como anti-sistema, contra os “politicanti senza mestiere”, os politiqueiros sem profissão. Na verdade, as diferenças são menores do que se pode pensar à partida. É claro que os governos Berlusconi eram governos de elite, conservadores, mas de marca ainda convencional, não obstante algumas novidades introduzidas pela sua filosofia de gestão. Neste, estamos perante uma LIGA mais radical (apesar da fórmula de Umberto Bossi, “Roma ladrona, la Liga non perdona”, apanhado ele próprio – e o filho – a pôr a mão na massa, depois, claro, da experiência governativa… em Roma) e com características de partido nacional. Mas sobretudo estamos perante um partido de novo tipo – O M5S, partido digital – que funciona na base da plataforma Rousseau, onde o povo da rede se exprime, toma iniciativas políticas e vota. Neste caso, também existe uma figura carismática que tutela o M5S e que se mantém um pouco distante da azáfama política, Beppe Grillo, delegando a função de executor político, neste momento, a Luigi di Maio. Na verdade, o M5S surge como partido interclassista que, tal como a LEGA, e em geral os populismos, rejeita a dicotomia esquerda-direita, porque a verdadeira clivagem não é horizontal, mas vertical, ou seja, é entre o povo e as elites.
Conclusão
Portanto, dois andamentos. O primeiro, a conquista do poder. O segundo, a governação, o exercício do poder. E é aqui que nos devemos concentrar, conhecendo nós o que aconteceu ao Syrisa, na Grécia. Não será caso de dizer desde já que agora o establishment, ou “a casta”, são eles, como já disse Matteo Renzi. É ver a constituição da equipa governativa (um terço são técnicos), a aplicação do programa, em especial nos pontos mais inovadores, e a forma como irão gerir o poder (com base na negociação ou no diktat). São estas as três variáveis a analisar com atenção desde já, agora que o governo acaba de arrancar com a tomada de posse, neste dia 1 de Junho de 2018.