MUSA
Poema de João de Almeida Santos. Ilustração: “A Praia”. Original de minha autoria para este poema. Abril de 2019. Para ouvir o poema pela voz do autor:

A Praia. Jas. 04-2019
POEMA – “MUSA”
EU TENHO UMA MUSA
Guardada
No fundo
Da minha memória.
Perdi-lhe o rasto
Ao corpo,
Ficou-me dela
O mistério
Que me alimenta
O estro
Quando a saudade
Me assalta.
SOBROU-ME
Recordação,
Marcas cá
Dentro de mim,
Desço ao fundo
Da alma
Mas não lhe vejo
O fim.
E ASSIM NÃO A
VISLUMBRO,
Há uma certa
Escuridão,
O olhar já
Não me chega,
Restam-me
As cicatrizes
E uma funda
Solidão.
ÀS VEZES DESENHO
Seu rosto,
Ponho-lhe cores
Muito vivas,
Pinto a alma
Com palavras,
Dou-lhe nome
Que não é seu,
Levo-a nos meus
Poemas...
...............
Devolvo tudo
O que ela
Não me deu.
VALE-ME A POESIA
Pra onde fujo
Com ela,
É como a maresia
Da praia
Que vejo
Da minha janela.
TENHO UMA MUSA
Na praia,
Nesse mar
Que não tem fim,
Revolvo-me
Nas suas ondas,
Regresso feliz
Ao poema
Onde sorri
Para mim.
NÃO IMPORTA
Onde está,
Musa é fonte
De inspiração
Desde que haja
Na praia
Uma intensa
Paixão...

“Praia”. Detalhe.
Transcrevo a análise da Prof.ra Maria Neves – “Que bela e singela poesia de João de Almeida Santos! A musa (etérea e divinal) alimenta o estro poético e deixa-lhe marcas profundas, “cicatrizes”, “funda solidão”, “intensa paixão”. Nesta narrativa textual – aparentemente singela na sua semântica – afloram intertextos variados, resultantes da “intellighentsia” e da cultura (literária, filosófica…) do POETA. Emerge, assim , no enunciado discursivo um diálogo intertextual com Petrarca (musa divinal, etérea, inacessível, idealização corpórea), com Garrett (no tom coloquial e na intensa paixão), com Sophia de Melo Breyner ( “tenho uma musa/ na praia/ nesse mar que não tem fim”; “revolvo-me nas suas ondas,/ regresso feliz/ ao poema” ) e ainda – e sobretudo no meu «modus leggere» – com o lirismo galaico-português no seu «trobar clos e culto» provençal e na singeleza peninsular das cantigas de amigo. A esta luz, regresso e parafraseio Pedro Mexia (1) – coincidência feliz das minhas leituras semanais – : “Tematicamente, a poesia trovadoresca interessa-me muitíssimo (…). É uma concepção forte do amor, e da linguagem que o diz e o sustenta, o amor como impossibilidade, pedido, lamento, desdém, apóstrofe, o elogio do “bem parecer” da amada e o sofrimento («coita de amor») do amante”.
(1). Mexia, P. (2019). Cancioneiro. Revista Expresso, 6 de Abril de 2019, p. 106”.
João de Almeida Santos. Sempre generosa com a minha poesia. Esta intertextualidade que evidencia na sua leitura enobrece a minha poesia. E colheu bem o sentido ao citar o Pedro Mexia, sobretudo no amor como impossibilidade ou mesmo, mais radicalmente, como “renúncia”, como quer o Bernardo Soares. Como se o amor poético resultasse da impossibilidade ou da renúncia. E tivesse nestas a sua condição (necessária, mas não suficiente). Obrigado, Professora! Um abraço.