PARA LEONARD
Poema de João de Almeida Santos. Ilustração, “Mil Beijos”. Original de minha autoria para este Poema, dedicado a Leonard Cohen (1934-2016). Novembro de 2019.

“Mil Beijos”. Jas. 11-2019
POEMA – “PARA LEONARD”
OUÇO-TE Como respiro Com a alma... E como a sinto! Vejo-a dançar Na tua voz rouca E grave E, então, aninho-me No regaço da tua Melodia A observar O seu silêncio... ................ Mas estremeço Como o rio quando Entra na foz, Mar adentro... É SUAVE O REENCONTRO Com ela, Em fluxo submerso, Como as dobras Das palavras Quando se ajeitam Nas estrofes Dos meus poemas Ou os sons Quentes Na tua melodia, Vindos lá do alto Como ecos Da montanha Sagrada. OUVIR-TE, ÀS VEZES, Arrepia-me Porque na tua voz Acolhedora Sinto-a Dentro de mim A segredar-me O seu impossível E sufocado Silêncio. E, ENTÃO, DANÇO, DANÇO Com a alma Até ao fim... ..................... Que nunca mais chega! E não paro até (Já exausto) Cair em mim... OS MIL BEIJOS Que não lhe dei São, na tua melodia, Mais profundos Que as profundezas Do mar, Mais intensos Que mil abraços À superfície Do seu corpo... E ATÉ OS TEUS SORRISOS Maliciosos E os gracejos Inocentes Me levam A inventar Palavras quentes Como balões coloridos Que lanço Ao vento Que sopra Na sua alma... NÃO SOU COMO TU, Leonard, Eu esboço sozinho Tristes canções Em surdina Até às lágrimas secas Que nunca enxugam Porque não tenho Voz que chegue Para a chamar Ao poema... ................... Nem ela me ensinou A cantar, Por falta de jeito E de tempo Para amar... MAS CANTAS TU Por mim e por ela E, então, ouço-te Extasiado Como se fosses Oráculo Onde o silêncio Partilhado Se disfarça De oração Nos teus sons E na tua voz Para me enternecer Até à emoção. NÃO ME DESPEÇO, De ti, Com um abraço, Leonard! Vou continuar A ouvir-te Enquanto o silêncio Me interpelar No oráculo Da tua melodia E por ela sofrer Dessa melancolia Que nunca nos abandona, Seja noite Ou seja dia...

“Mil Beijos”. Detalhe.
João de Almeida Santos (JAS) oferece aos leitores, neste domingo outonal e invernoso, um belíssimo desenho que dá o mote ao belíssimo poema intitulado “PARA LEONARD”. Os cambiantes semióticos fazem da poesia de JAS uma constante e perene (re) invenção, nomeadamente na simbiótica relação entre a poesia e a pintura. Hoje, temos uma poesia sinestésica que nos patenteia, na perfeição, uma arqueologia do sentir, do ver e do ouvir. Os topos (na etimologia grega), que afloram no enunciado poético, de forma iterativa, embrenham o leitor, num “labirinto da saudade”, parafraseando Eduardo Lourenço. Aliada a esta saudade, é convocada a música e o silêncio, que remetem para o sagrado e o misterioso. JAS casa todos estes dispositivos de forma metafórica e onírica (“No regaço da tua/Melodia/A observar/O seu silêncio…; Dentro de mim/A segredar-me/O seu impossível/E sufocado/Silêncio”; “Vou/continuar/A ouvir-te/Enquanto o silêncio/Me interpelar”; Onde o silêncio/Partilhado/Se disfarça/De oração/Nos teus sons”).
Assim, o microcosmo poético, a evocação nostálgica da voz de Leonard – voz essa que recebe epítetos de rouca, grave, acolhedora – conduzem, em metatexto, à interpelação à mulher amada com ressonâncias sensoriais e subtilmente eróticas: (“OS MIL BEIJOS/Que não lhe dei/São, na tua melodia,/Mais profundos/Que as profundezas/Do mar,/Mais intensos/Que mil abraços/À superfície/Do seu corpo…”). O poema termina com uma cadência concisa e ritualista: “Dessa melancolia/Que nunca nos abandona,/Seja noite/Ou seja dia…”.
Obrigado, Professora Maria Neves pela sua análise, uma decomposição analítica do poema com recomposição e reordenação temática, procurando evidenciar os dispositivos com que o poema trabalha. Uma incursão que ajuda o próprio autor. E, sim, prossigo em busca da sinestesia nesta dupla missão artística de que tanto gosto. E de uma, como diz, arqueologia do sentir, do ver e do ouvir, no seu sentido mais radical, ou seja, no plano mais profundo a que consiga chegar, na raiz, no princípio, de onde derivam todos os amores deste mundo. Esta mulher, este poema e as composições de Leonard Cohen a que ele alude, juntos levam-nos para o territorio primordial do amor. É aqui que se situa a arqueologia do poema, inspirado nos amores eternos do LC. É verdade. A melancolia é também húmus da poesia, da pintura e da música. Abraçados a ela vamos mais longe e mais fundo no canto e na cor. Mas esse é sempre um abraço a alguém concreto, mesmo que se fique pelo calor da memória dos afectos. Um grande abraço, Professora. Desejo-lhe uma excelente semana.