A PROPÓSITO DO MANIFESTO DOS 200 MAGNÍFICOS
JOÃO DE ALMEIDA DA SANTOS
AO INIMIGO CONVENCIONAL, representado por quem ameaçava com as armas a integridade de outrem, junta-se agora um novo inimigo invisível que urge combater com as armas da ciência, da solidariedade, da lucidez e da ética da responsabilidade, individual e colectiva. Este encontro entre a ética da responsabilidade individual e a ética da responsabilidade colectiva tem o nome de ética pública porque a esfera pública é, de facto, o lugar de encontro com o outro e com os outros, o lugar de encontro entre convicção e responsabilidade. Falo da ameaça do vírus, claro, e de tantas outras que com ele se hão-de revelar, para além do muito que já revelou. A ameaça do vírus vem juntar-se à ameaça de ruptura do ecossistema. Um problema sistémico, como afirmam os autores do Manifesto. São, pois, muito sérias as ameaças e, por isso, urge tomá-las convenientemente em consideração. Mas como? Apelando mais uma vez aos máximos dirigentes políticos mundiais? Mas se o poder instalado não se reforma, porque é transformista! Lembram-se de “Il Gattopardo”, do Tomasi di Lampedusa (livro) e do Luchino Visconti (filme)? Então, que fazer? Uma “rebelião das massas”, não daquelas de que, em 1930, falava Ortega y Gassett, mas do neopovo da rede?
REGRESSAR À NORMALIDADE?
TALVEZ o único caminho para lá chegar seja uma profunda mudança no modo de conceber e de exercer a política, aquela que depende dos cidadãos, eles, que agora têm nas mãos instrumentos que podem induzir profundas mudanças. O final do Manifesto “Não a um Regresso à Normalidade”, assinado por cerca de 200 personalidades do mundo da arte e da ciência, talvez possa sugerir algo interessante: “A transformação radical que se impõe – a todos os níveis – exige audácia e coragem. Ela não acontecerá sem um empenho massivo e determinado. Para quando as acções? É uma questão de sobrevivência, tal como é uma questão de dignidade e de coerência”. Empenho massivo em acções tendentes a provocar uma mudança de rumo, a resolver um problema que não é circunstancial, mas sistémico – este o tema do Manifesto.
A pandemia servirá de escola. O vírus percorreu rapidamente o mundo e o mundo teve de reagir até à escala individual, micro, com uma mobilização individual e comportamental que não tem precedentes. E isso significa que a mobilização de massa individualmente centrada é possível. Mass self-mobilization, diria, glosando o conceito do (agora) Ministro Castells. Para nos obrigarmos a nós próprios a mudar de vida e, naturalmente, para exigirmos aos máximos responsáveis pela condução dos nossos destinos uma mudança de rumo. É isto possível? Eu creio que sim, desde que a palavra seja obrigar, impedindo o transformismo. Mas para mudar é preciso encontrar uma mundividência estruturada e mobilizadora bem diferente da que os populistas e neopopulistas oferecem como resposta à visível crise do sistema.
A mobilização é possível, sim, há instrumentos para isso, através da rede, das TIC, das redes sociais, das grandes plataformas digitais. Sem dúvida. Mas em torno de que ideias para a política? E quem serão os protagonistas da mudança, nas ideias e na prática?
POLÍTICA
REGRESSANDO a um discurso mais próximo de uma perspectiva reformista, é possível dizer que a crise já nos disse muito sobre o papel social do Estado, agora muito revisitado, a responsabilidade social das empresas e a sua consistência estratégica, a ética da responsabilidade e a sua dimensão comportamental, a ética profissional e a sua dominância sobre o risco iminente, a pregnância de uma verdadeira ética pública.
Eu diria que este tempo de incerteza é o momento certo para revisitar a política e as categorias com que se rege em profundidade. Para a revisitar nas dimensões acima referidas. Personagens que interpretaram com sucesso o seu próprio tempo de vida e que são mundialmente conhecidos e admirados dizem agora que sim, que é tempo de mudar de vida, que não se pode regressar à velha normalidade e às suas categorias. E eu, que não tive o sucesso deles, concordo. E não só porque o vírus nos bateu à porta, mas sobretudo porque os tempos estão maduros para a mudança… ou para a regressão a tempos escuros e de má memória. Mas a mudança para ser mudança tem de bater às portas da política.
Na verdade, a mudança há muito que se anuncia, muito antes de sermos confrontados com este malicioso e veloz vírus. E, todavia, quem decide não só parece que não a quer ver como nem sequer tenta uma manobra transformista. TINA (There Is No Alternative), sim, para eles não há alternativa à política que temos. Talvez porque são incapazes de a ver, de sair do paradigma em que sempre se moveram e que constitui o seu horizonte possível. Mas também é verdade que há cada vez mais novos aprendizes de feiticeiro, para não dizer inacreditáveis personagens de opereta, que tornam a mudança difícil. Por outro lado, a política tem vindo a ficar cada vez mais reduzida a puro management, à gestão remota dos grandes números da economia, a um discurso “algebrótico” e burocrático sem alma.
ÉTICA PÚBLICA
NA RAIZ do problema está, pois, a política, tout court: a ideia de autogoverno das sociedades e a respectiva ética pública. E, portanto, sobe ao topo da agenda a exigência de cruzar a independência e autonomia individual da classe política com o conhecimento, o saber e a cultura para a boa concepção e gestão política das sociedades, com a necessária síntese entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade e, consequentemente, entre ética profissional e ética pública. Mas há também um velho e grave problema que parece que ninguém que ver: os métodos de pré-selecção da classe política dirigente, onde vale mais a endogamia do que a competência e o saber.
São estes os ingredientes que deverão integrar o exercício da política porque só com eles é possível responder com eficácia aos complexos e enormes desafios que se põem às sociedades, hoje. São estes, mais do que as bases programáticas, que fazem o bom ou o mau tempo na política democrática. Só haverá bons programas se eles assentarem em bons princípios, bons métodos e bons executores. Vão longe os tempos do estruturalismo, onde as pessoas eram simplesmente identificadas com as funções que desempenhavam. E onde a função fazia o órgão. A responsabilidade individual diluía-se na responsabilidade da estrutura. Boas estruturas convertiam maus profissionais em bons dirigentes, ou não? Ou eram elas que, com eles, ruíam? Bem se tem visto, por exemplo, com os banqueiros! O capital humano é, sim, absolutamente decisivo. Afinal, são os seres humanos que constroem as estruturas e, por isso, o que lhes diga directamente respeito é sempre fundamental.
GREED IS NOT GOOD
É VERDADE, mas isso não quer dizer que os indivíduos singulares não se encontrem socialmente inscritos em esferas de maior dimensão e que, por isso, as suas competências e as suas convicções não devam ser também referidas a essas esferas. Falo do interesse geral e da ética pública por contraposição aos jogos de interesse privado que têm vindo a confiscar cada vez mais a política, através precisamente dos aprendizes de feiticeiro e dos fantoches de serviço. Não é coisa nova e por isso estamos onde estamos. E é mais que certo que o tempo que estamos a viver acabará por revelar ainda com maior nitidez onde estão e o que fazem estes personagens. Muitos, demasiados até, são sobejamente conhecidos porque não escondem a ganância, para não dizer que até a exibem. E não, “greed is (not) good”, caro Fareed Zakaria. Gestores gananciosos que perdem milhões e que, depois, se atribuem milhões como prémio de gestão não é ganância boa, é roubo. E nem sequer já é possível dizer que privado é bom simplesmente porque é privado (embora também seja), visto que nas tempestades o socorro acaba sempre por vir do lado público, do Estado, dos bolsos de contribuintes a quem, em tempos de bonança, é dito para se arredarem do management, isto é, da política pura e dura.
É por tudo isto que, mais uma vez, a política deve intervir a partir da ética pública para defesa do interesse geral. Os que defendem que a política se deve reduzir ao management são, afinal, os mesmos que se servem instrumentalmente do Estado para enriquecer, expulsando a ética pública e o interesse geral da gestão política. Por isso, creio que chegou o tempo de dar uma volta a tudo isto, repensando radicalmente a política com novas categorias e cartografias e recentrando aquilo que sempre foi a sua matriz originária. É neste sentido que me associo ao apelo de tantas personalidades que, em abaixo-assinado, apelam a que mudemos de vida. E, para isso, antes dos programas, é preciso recomeçar a partir de nós mesmos e, em particular, dos que têm responsabilidade políticas.
CONCLUSÃO
TERMINO como comecei. Sim, mas para mudar, que fazer? Como? Fazer um apelo aos líderes mundiais, a todos? É como não o fazer a nenhum. Bem pelo contrário, seria preciso ir para essas grandes plataformas digitais interpelar os concorrentes a concretas eleições, tomando posição em cada caso concreto. Mas ir com ideias precisas sobre o que é preciso mudar, dizendo-lhes claramente que essa será a medida do voto de milhões de eleitores. Hoje isto é possível e desejável, graças à rede, até porque o velho establishment mediático continua a ser, não contrapoder, como erradamente reivindica, mas a outra face da moeda do poder. Na experiência das campanhas de Barack Obama a plataforma Moveon.org desempenhou um papel crucial. E de lá para cá o poder da rede aumentou consideravelmente, a ponto de, em Portugal, durante este período que vivemos, o ensino ter ficado literalmente a decorrer nas plataformas digitais e em rede. Sim, também acho que não devemos regressar à velha normalidade, como antes, afinal, já não achava, ou seja, quando a normalidade se transformou em realidade sem alternativa. Já vimos bem como acabaram os arautos do TINA. #