Poesia-Pintura

CONFISSÕES DE UM CONFINADO

Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “S/Título”.
Original de minha autoria 
para este poema. Maio de 2020.
JAS2020_1705_15

“S/Título”. Jas. 05-2020.

POEMA – “CONFISSÕES DE UM CONFINADO”

ANDO PERDIDO,
Por aí,
Nas tardes
De Primavera,
À procura de mim,
Neste estranho
Tempo
Que aviva
O que perdemos
Nas esquinas
Da nossa vida.

NÃO ME VENDO
No espelho
Dos outros,
Já não sei
Quem sou e
Onde estou.
Apenas suspeito.
Uma vaga ideia.

FALTA-ME O MUNDO
Para dar conta
De mim,
Mas, coisa estranha,
Ele entra-me 
Casa adentro
E devolve-me
O que perdi,
Mais selectivo
E profundo,
Apenas o que é
Remoto
Da cidade
Onde vivi.

ESTRANHO MUNDO,
Este,
Que escolhe
Por mim
O que me sobrou
Da voragem
Do tempo...

É POR ISSO
Que me procuro
Para saber
Se o que me
Bate
À porta
É meu
Ou se a falta
De mundo
Me provoca
Alucinações,
Sonhos ou
Sombras
Do que nunca
Aconteceu...

ENTÃO PROCURO-ME
No espelho
Que trago comigo,
Dádiva
De Athena,
Olho,
Volto a olhar
E descubro que
Afinal sou eu,
O esquecido
Sem abrigo,
Aquele que andou
Por aí
No bulício
Da vida,
Ao sabor do vento...
.............
Mas contigo.

E TAMBÉM SEI
Que, por isso,
Nesta errância,
Eu não petrifiquei.

AH, COMO É BOM
Saber
Que, afinal,
 O vento
Me levou
Para destinos
Encantados
Onde contigo
Renasci,
Quando o tempo
Trazido pelo vento
Que passou
Na rua da
Minha vida
Me bateu 
À porta...
............
E eu abri.
JAS2020_1705_15R

“S/Título”. Detalhe.

3 thoughts on “Poesia-Pintura

  1. O Comentário da Professora Maria Neves Leal Gonçalves: ” Que bela e nostálgica poesia que João de Almeida Santos (JAS) oferece hoje aos seus leitores…A leitura deste poema trouxe-me à memória uns expressivos versos do heterónimo Alberto Caeiro sobre Cesário Verde, com o qual este poema de JAS se entrelaça intertextualmente: “Ao entardecer, debruçado pela janela/E sabendo de soslaio que há campos em frente./Leio até me arderem os olhos/O livro de Cesário Verde (…). Mas o modo como olhava para as casas (…) É o de quem olha para árvores,/E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando (…) Por isso ele tinha aquela grande tristeza/Que ele nunca disse bem que tinha”(1). Também na tessitura deste poema de JAS emerge a melancolia do entardecer e do vaguear (“ANDO PERDIDO,/Por aí,/Nas tardes/De Primavera,/À procura de mim”). O deítico aí transmite a abstração do espaço, dos lugares do desencontro do poeta consigo mesmo e da autorreferenciação do eu: “Afinal sou eu,/O esquecido/Sem abrigo,/Aquele que andou/Por aí/No bulício/Da vida,/Ao sabor do vento…”. A enunciação poética, que gira em torno do eu (em sintonia, aliás, com a ilustração), ocupa um espaço físico e psicólogo confinado e absorvente…Apenas, no final do poema, emerge a figura da mulher amada antecedida de uma adversativa “Mas contigo” a sublinhar a sua importância na recolocação do sentido da vida do Poeta… Acresce ainda o jogo da luz e das sombras – em sentido metafórico – do confinamento e da abertura, da introspeção e da exteriorização… Ao spleen baudelairiano, dominante na organização textual e semântica, sucede um lastro de claridade e de abertura para vida e para o amor: “E eu abri.” A contenção emotiva, plasmada neste último verso, remete de novo para Cesário Verde, um poeta que, tal como JAS, tão bem cantou a errância do ser, a procura do reencontro amoroso e do sentido da vida…
    (1) Pessoa, F. (1993). “O Guardador de Rebanhos”. Poemas de Alberto Caeiro. Lisboa: Ática”

  2. João De Almeida Santos. Obrigado, caríssima Professora. É o meu testemunho e não só o de um confinado. Na errância, marcada pelo destino, um dia bateram-me à porta… e eu abri. Sim, foi ao entardecer. Fiquei a meditar nesse encontro e, no dia seguinte, acordei com uma manhã luminosa e o som da vida que despontava a chegar-me como sinfonia, como hino à vida. Ainda hoje não sei se foi um sonho ou se aconteceu de verdade. Mas tudo mudou na minha vida. Foi como se aprendesse a levitar, a viver um pouco acima do chão que pisamos. Todos os sentidos se afinaram, tornando-me mais permeáveis aos aromas da vida. Comecei a ver cores que nunca vira e a despertar para uma nova forma de linguagem a que muitos chamam poesia. Cesário e Pessoa, sim, dois gigantes da poesia. Convivo regularmente com eles. O Cesário, ainda por cima ilustrado por um Amigo que admirava, o João Vieira. As cores, como ele trabalhava as cores! E um ser humano extraordinário. Se já o admirava, quando me ofereceram o Livro ilustrado pelo João ainda me afeiçoei mais a esse extraordinário poeta. O Pessoa, grande em tudo o que escreveu. Curiosamente, depois de ter escrito a primeira versão do próximo poema (Provavelmente o título será “Quase” e a ilustração “Desejo”), lembrei-me precisamente do Alberto Caeiro e tenho estado a relê-lo em função da minha proposta para Domingo. Depois se verá o resultado final. Gosto da ideia de “contenção emotiva”, uma espécie de ponto de equilíbrio atingido pela poesia quando o poeta converte a emoção em palavras. As palavras suspendem o irracional da emoção porque o capturam para lhe dar forma, sem o anular, antes, para o conservar, projectando-o no tempo e expondo-o à sensibilidade dos leitores. É uma espécie de segunda vida da emoção. Emoção partilhada como beleza oferecida. Um grande abraço 😔.

  3. Post Scriptum à Resposta à professora Maria Neves – Alberto Caeiro Caeiro: “O que penso eu do mundo? / Sei lá o que penso do mundo? / Se eu adoecesse pensaria nisso”. Aqui está. Foi o que eu pensei. E, de repente, decidi ir ao meu baú das memórias, recordar o momento em que renasci. Na verdade, estou sempre a renascer. Mas para isso é preciso um parto e uma mãe… Numa palavra, aninho-me.

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