CONFISSÕES DE UM CONFINADO
Poema de João de Almeida Santos. Ilustração: “S/Título”. Original de minha autoria para este poema. Maio de 2020.

“S/Título”. Jas. 05-2020.
POEMA – “CONFISSÕES DE UM CONFINADO”
ANDO PERDIDO, Por aí, Nas tardes De Primavera, À procura de mim, Neste estranho Tempo Que aviva O que perdemos Nas esquinas Da nossa vida. NÃO ME VENDO No espelho Dos outros, Já não sei Quem sou e Onde estou. Apenas suspeito. Uma vaga ideia. FALTA-ME O MUNDO Para dar conta De mim, Mas, coisa estranha, Ele entra-me Casa adentro E devolve-me O que perdi, Mais selectivo E profundo, Apenas o que é Remoto Da cidade Onde vivi. ESTRANHO MUNDO, Este, Que escolhe Por mim O que me sobrou Da voragem Do tempo... É POR ISSO Que me procuro Para saber Se o que me Bate À porta É meu Ou se a falta De mundo Me provoca Alucinações, Sonhos ou Sombras Do que nunca Aconteceu... ENTÃO PROCURO-ME No espelho Que trago comigo, Dádiva De Athena, Olho, Volto a olhar E descubro que Afinal sou eu, O esquecido Sem abrigo, Aquele que andou Por aí No bulício Da vida, Ao sabor do vento... ............. Mas contigo. E TAMBÉM SEI Que, por isso, Nesta errância, Eu não petrifiquei. AH, COMO É BOM Saber Que, afinal, O vento Me levou Para destinos Encantados Onde contigo Renasci, Quando o tempo Trazido pelo vento Que passou Na rua da Minha vida Me bateu À porta... ............ E eu abri.

“S/Título”. Detalhe.
O Comentário da Professora Maria Neves Leal Gonçalves: ” Que bela e nostálgica poesia que João de Almeida Santos (JAS) oferece hoje aos seus leitores…A leitura deste poema trouxe-me à memória uns expressivos versos do heterónimo Alberto Caeiro sobre Cesário Verde, com o qual este poema de JAS se entrelaça intertextualmente: “Ao entardecer, debruçado pela janela/E sabendo de soslaio que há campos em frente./Leio até me arderem os olhos/O livro de Cesário Verde (…). Mas o modo como olhava para as casas (…) É o de quem olha para árvores,/E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando (…) Por isso ele tinha aquela grande tristeza/Que ele nunca disse bem que tinha”(1). Também na tessitura deste poema de JAS emerge a melancolia do entardecer e do vaguear (“ANDO PERDIDO,/Por aí,/Nas tardes/De Primavera,/À procura de mim”). O deítico aí transmite a abstração do espaço, dos lugares do desencontro do poeta consigo mesmo e da autorreferenciação do eu: “Afinal sou eu,/O esquecido/Sem abrigo,/Aquele que andou/Por aí/No bulício/Da vida,/Ao sabor do vento…”. A enunciação poética, que gira em torno do eu (em sintonia, aliás, com a ilustração), ocupa um espaço físico e psicólogo confinado e absorvente…Apenas, no final do poema, emerge a figura da mulher amada antecedida de uma adversativa “Mas contigo” a sublinhar a sua importância na recolocação do sentido da vida do Poeta… Acresce ainda o jogo da luz e das sombras – em sentido metafórico – do confinamento e da abertura, da introspeção e da exteriorização… Ao spleen baudelairiano, dominante na organização textual e semântica, sucede um lastro de claridade e de abertura para vida e para o amor: “E eu abri.” A contenção emotiva, plasmada neste último verso, remete de novo para Cesário Verde, um poeta que, tal como JAS, tão bem cantou a errância do ser, a procura do reencontro amoroso e do sentido da vida…
(1) Pessoa, F. (1993). “O Guardador de Rebanhos”. Poemas de Alberto Caeiro. Lisboa: Ática”
João De Almeida Santos. Obrigado, caríssima Professora. É o meu testemunho e não só o de um confinado. Na errância, marcada pelo destino, um dia bateram-me à porta… e eu abri. Sim, foi ao entardecer. Fiquei a meditar nesse encontro e, no dia seguinte, acordei com uma manhã luminosa e o som da vida que despontava a chegar-me como sinfonia, como hino à vida. Ainda hoje não sei se foi um sonho ou se aconteceu de verdade. Mas tudo mudou na minha vida. Foi como se aprendesse a levitar, a viver um pouco acima do chão que pisamos. Todos os sentidos se afinaram, tornando-me mais permeáveis aos aromas da vida. Comecei a ver cores que nunca vira e a despertar para uma nova forma de linguagem a que muitos chamam poesia. Cesário e Pessoa, sim, dois gigantes da poesia. Convivo regularmente com eles. O Cesário, ainda por cima ilustrado por um Amigo que admirava, o João Vieira. As cores, como ele trabalhava as cores! E um ser humano extraordinário. Se já o admirava, quando me ofereceram o Livro ilustrado pelo João ainda me afeiçoei mais a esse extraordinário poeta. O Pessoa, grande em tudo o que escreveu. Curiosamente, depois de ter escrito a primeira versão do próximo poema (Provavelmente o título será “Quase” e a ilustração “Desejo”), lembrei-me precisamente do Alberto Caeiro e tenho estado a relê-lo em função da minha proposta para Domingo. Depois se verá o resultado final. Gosto da ideia de “contenção emotiva”, uma espécie de ponto de equilíbrio atingido pela poesia quando o poeta converte a emoção em palavras. As palavras suspendem o irracional da emoção porque o capturam para lhe dar forma, sem o anular, antes, para o conservar, projectando-o no tempo e expondo-o à sensibilidade dos leitores. É uma espécie de segunda vida da emoção. Emoção partilhada como beleza oferecida. Um grande abraço 😔.
Post Scriptum à Resposta à professora Maria Neves – Alberto Caeiro Caeiro: “O que penso eu do mundo? / Sei lá o que penso do mundo? / Se eu adoecesse pensaria nisso”. Aqui está. Foi o que eu pensei. E, de repente, decidi ir ao meu baú das memórias, recordar o momento em que renasci. Na verdade, estou sempre a renascer. Mas para isso é preciso um parto e uma mãe… Numa palavra, aninho-me.