A EROSÃO DO TEMPO
Poema de João de Almeida Santos.
Ilustração: “Entardece no Jardim”.
Original de minha autoria
para este poema. Junho de 2020.

“Entardece no Jardim”. Jas. 06- 2020.
POEMA – “A EROSÃO DO TEMPO”
ENTARDECE NO JARDIM,
Entrevejo-te
Por entre folhas
De um arbusto,
Ao longe,
Uma imagem
Desfocada...
...............
O sol cai
No horizonte,
Vejo, apenas,
Um perfil
Esfumado,
Nuvem cinzenta
Arrastada
Pelo vento
Para lá desta
Montanha,
Meu alento,
Minha fada.
VIRO-ME
Para dentro
De mim
E o meu olhar
Interior
Confunde-se
Com o teu
E já nem sei
Se és tu
Ou se essa imagem
Um pouco baça
Serei eu.
O TEMPO
Esculpe o rosto
Na memória
Dos afectos
E só vejo
O que de ti
Me sobrou,
Retrato
De pouca cor
Composto
Ao ritmo
De suspiros...
............
E tanta dor.
NÃO FOSSE A POESIA
E restarias
Nuvem no céu
Entre o azul
E o branco
Desta minha
Fantasia,
Ponte espectral
Entre mim
E a deusa que
M’ilumina
Por dentro e
Por fora,
Um clarão irreal
Que cega
E me comove...
...............
Como quem chora.
AH, MAS O POEMA
Dá-te vida,
Dá-te luz
E dá-te cor,
Enche-te a alma
De emoção,
Interpela
Todo o teu ser
E rompe
Este minha
Tão sofrida
Solidão.
MAS EU TEMO
Encontrar-te
E já não saber
Quem tu és
Por há muito
Navegar
Outras ondas
E marés
Tão longe
Desse teu mar...

“Entardece no Jardim”. Detalhe.
1.Poesia belíssima, construída à base de uma narrativa poética carregada de emoção lírica. Está eivada de um sentimentalismo melancólico que evoca fragmentos de um percurso biográfico real ou ficcionado (“E só vejo/O que de ti/Me sobrou,/Retrato/De pouca cor/Composto/Ao ritmo/De suspiros…”). Os elementos da natureza selecionados (jardim, folhas, arbustos…) e a hora crepuscular (entardecer) criam uma atmosfera romântica propícia ao amor.
2.A par da subjetivação e da introspeção (“VIRO-ME /Para dentro/De mim/E o meu olhar/Interior”), há, neste poema – como, aliás, em outras poesias de João de Almeida Santos (JAS) – laivos do universo poético pessoano quando JAS se adentra numa análise racional e distanciada que opera sobre o eu e sobre o seu relacionamento amoroso: (“MAS EU TEMO/Encontrar-te/E já não saber/Quem tu és/Por há muito/Navegar/Outras ondas/E marés/Tão longe/Desse teu mar…”).
3.Os campos semânticos e metafóricos convocados estão num crescendo (navegar, ondas, marés, mar..) e sublinham a separação, a ausência e a solidão. O ato de escrever poesia e de poetar é uma forma de sublimação e de recreação… A fruição estética do autor contamina o leitor e interpela, enfaticamente, a mulher, num dialogismo baktiano (1), criando uma aura de familiaridade e de cumplicidade:
“AH, MAS O POEMA
Dá-te vida,
Dá-te luz
E dá-te cor,
Enche-te a alma
De emoção,
Interpela
Todo o teu ser
E rompe
Esta minha
Tão sofrida
Solidão!”.
4. Esta poesia, à semelhança de outras de JAS, espelha – ou antes, deixa perceber – a oficina de escrita depurada da matéria literária. JAS trabalha a forma e esculpe os versos. Vejam-se, a título de exemplo, os primeiros versos do poema (entardece/ entrevejo-te, cujo presente sublinha o momentâneo e cujas sonoridades são conseguidas pelas expressivas aliterações em – ent ). É um jogo literário fascinante.
Referência
Bakhtin, M. (2003). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes
Sim, Professora, eu não creio que a forma seja tudo, mas é extremamente importante, sobretudo em poesia. O ritmo, a leveza estilística, a melodia, a simplicidade, o crescendo são decisivos numa poesia. Procuro sempre uma espécie de apoteose final. E procuro sempre estes elementos até que consiga atingi-los para dar por terminado o poema. Mas há algo que tem de estar no arranque do poema: a história que quero contar, movida por um estímulo. Às vezes até pode ser a falta dele que me move. O estímulo é mais do que um tema. É algo que me toca em profundidade. Ou seja, não se trata de mero exercício intelectual a que depois dê forma poética. A poesia começa logo no princípio, na predisposição, na vocação, ou melhor, trata-se de um ethos, o ethos poético. E também confirmo que muitas ideias de Pessoa (sobretudo do Bernardo Soares) me motivam. Sobretudo a sua posição sobre o real. A ideia de que o poeta se coloca entre si e o mundo, num intervalo que lhe permite observar com distanciação para não sofrer de contaminação e se deixar arrastar pela emoção. Só esse intervalo lhe abre espaço para trabalhar a escrita em plena liberdade. Mais uma vez lhe fico grato pela atenção que dá à minha obra e pelo cuidado que põe na análise. Aprendo sempre consigo. Por isso obrigado. Um abraço amigo do JAS.
Maria Neves Leal Gonçalves: “O comentário do professor é riquíssimo para mim e outros investigadores que trabalhem e investiguem a génese e o processo de criação literária.”