SOBRE O DISCURSO DE ÓDIO NA INTERNET
JOÃO DE ALMEIDA SANTOS

“Politically Correct”. Jas. 08-2020
A PROPÓSITO DA MONITORIZAÇÃO, através de um Observatório sobre o discurso de ódio na Internet que o Governo português vai promover, recordo um concurso lançado, em 2018, pela União Europeia sobre este tema no espaço da União: Project: OvERlOOk web ObsERvatory On Online hate speech TOPIC: Call for proposals to monitor, prevent and counter hate speech online”. A chamada fez parte do Rights, Equality and Citizenship Programme for the period 2014 to 2020. Deadline: 11 October 2018. E RECORDO também a iniciativa da Comissão Europeia e das grandes Plataformas da Rede acerca do mesmo assunto: “The European Comission and the IT Companies announce Code of Conduct on illegal online hate speech”. 31.05.2016. “The Commission together with Facebook, Twitter, YouTube and Microsoft (“the IT companies”) today unveil a code of conduct that includes a series of commitments to combat the spread of illegal hate speech online in Europe”. ESTA ATENÇÃO especial não é, pois, nova e já foi objecto de iniciativas da União Europeia, pelo menos desde 2016. Seria bom que o Governo, para começar, publicitasse os resultados do Projecto Europeu acima referido e também os acordos alcançados com estas Grandes Plataformas. Seria necessário saber se, no seguimento do concurso de 2018, cujos resultados foram conhecidos nos inícios de 2019, já existe, ou não, um Observatório Europeu sobre “Hate Speech”.
É O INÍCIO de um processo de regulação básica da comunicação online que, no meu entendimento, não interfere com a liberdade na rede. Nas eleições para o Parlamento Europeu, em 2019, este Código de Conduta já fora aplicado com resultados muito significativos: a título de exemplo demonstrativo da relevância política atribuída às fake news e, em geral, à desinformação, a nível político-institucional e organizacional, refiro a iniciativa da Comissão Europeia e das principais plataformas digitais, Facebook, Google, Twitter e YouTube, citando uma notícia de “El País”: “Según el informe de la Comisión, Google informó de la retirada entre enero y mayo, a nivel mundial, de más de tres millones de canales de YouTube; Facebook desactivó más de dos millones de cuentas falsas en el primer trimestre de este año; y Twitter verificó si 77 millones de cuentas eran reales” (El País, 14.06.20). A QUESTÃO que se põe tem duas faces:
-
1. Se os governos ou a União Europeia podem monitorizar o discurso público e, eventualmente, sancioná-lo, quando agredir os princípios básicos das constituições e dos tratados ou dos seus protocolos.
-
2. Se as Universidades podem e devem estudar todos os fenómenos sociais, sem interferências políticas e institucionais sobre os conteúdos.
ESTA ÚLTIMA questão veio à agenda pública
a propósito de um livro sobre o Chega,
envolvido em aspectos censórios e militantes.
Mas a primeira, se for identificada como
política de apoio e financiamento da investigação
científica nas Universidades e UI&D,
nada tem de censurável. Bem, pelo contrário.
Eu próprio, que tenho ideias bem firmes
sobre a democracia e a liberdade,
tendo lutado por elas durante o regime
fascista, participei num concurso da UE
sobre o discurso de ódio nas plataformas
online, liderado pela Fundação da CGIL,
a mais importante federação de sindicatos
italiana, “Fondazione Giuseppe di Vittorio”.
MAS HÁ ALGO de que, decididamente,
não gosto: polícias do pensamento,
sejam eles de direita ou de esquerda.
E eles abundam por aí disfarçados,
à esquerda, de politicamente correcto
e de polícias da ética republicana.
E não gosto porque o combate só pode
ser um: o discursivo e argumentativo.
Não se vai lá com abaixo-assinados de
repulsa pelo que o outro pensa.
Combate-se, argumentando, não policiando.
Tenho na minha biblioteca dezenas
e dezenas de livros sobre o fascismo,
o nazismo, o comunismo das mais variadas
orientações. E comprei-os com dinheiro meu.
Para estudar e compreender. Para combater
no pano das ideias. Na verdade, o combate
mais importante é o da educação para
a cidadania, para os valores sociais e
para uma estética como base da
sociabilidade. Lembro-me sempre das
Cartas sobre a Educação Estética do Homem
("Ueber die aestetische Erziehung des Menschen",
1794 - que os vigilantes do politicamente
correcto um dia corrigirão para
“Cartas sobre a Educação Estética do
Ser Humano”, exactamente como fizeram
com a “Declaração Universal dos
Direitos do Homem”, de 1948,
e como certamente farão com a "Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão", de 1789),
de Friedrich Schiller, e da sua curiosa
proposta de um Estado Estético (uma reflexão
minha sobre este assunto em Santos, J. A.
Os Intelectuais e o Poder, Lisboa, Fenda,
1999, pp. 42-51).
EM MATÉRIA de publicações nas redes
sociais, o critério das grandes plataformas
é muito menos exigente do que o dos chamados
“códigos éticos” do jornalismo, claramente
aceites pela sociedade, mas muito pouco
praticados pelo jornalismo actual.
Outra coisa é os governos começarem
criar autonomamente códigos de conduta.
Não conheço nenhum código ético de jornalismo
assinado por um governo democrático,
mas conheço, sim, um código assinado
pela Assembleia Parlamentar do Conselho
da Europa, quanto a mim o melhor código ético
alguma vez adoptado (Resolução 1003 da
Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa,
de 01.07. 1993). Os códigos são, de resto,
coisa antiga, que já vem desde o código
Harris de 1690, e visam no essencial garantir
a independência e a correcta gestão do
bem público informação, ao serviço da cidadania.
Outra coisa diferente é a de as Universidades
darem atenção aos discursos que circulam
na rede ou na comunicação social –
incluídos os discursos de ódio - com
o objectivo de os estudarem, enquanto fenómenos
sociais. Isso, sim, é absolutamente desejável.
Quanto ao combate, é, claro, legítimo e desejável,
mas não pode ser feito em nome do politicamente
correcto e ainda menos em nome
da ciência (social). Combate-se com argumentos
e influência social.
NÃO CONHEÇO o livro do autor italiano
sobre o Chega (li apenas o artigo
de Marina Costa Lobo, no público de ontem,
e o famoso abaixo-assinado),
mas conheço relativamente bem
o discurso deste partido e parece-me
que há três coisas que devem ser evidenciadas,
a propósito: a) se este partido é, ou não, nos
termos da CRP, inconstitucional (nomeadamente
nos termos do n. 4 do art. 46); b) este partido
alimenta-se da oposição ao politicamente correcto,
misturando um populismo anti-sistema com um
populismo identitário; c) e cresce porque
está permanentemente no topo da agenda,
levado pelos vigilantes do politicamente correcto
(mas, a este respeito, seria aconselhável
que vissem o que diz a teoria do “agenda-setting”,
de Maxwell McCombs e Donald Shaw).
EM CONCLUSÃO, é útil e desejável
que haja um Observatório Europeu,
liderado por Universidades e por UI&D,
sobre o discurso de ódio, sobre fake news
e desinformação,
iniciando um processo de regulação da
rede (para além do que são já as normas
legais existentes e aplicáveis ao uso
do espaço público), fundado essencialmente
na auto-regulação e na defesa de um
espaço público respeitador dos princípios
que constam das Cartas Universais dos
Direitos Fundamentais.
O que não é, todavia, desejável
é o policiamento do pensamento e da
linguagem nos termos em que os vigilantes
do politicamente correcto o têm vindo a fazer.
Sinceramente, eu tenho mais medo dos polícias
do pensamento e da linguagem do que das
velhas botas cardadas. Colonizar consciências
é mais perigoso do que amedrontar corpos.

“Politically Correct”. Detalhe.
Era bom saber o que é o “Hate Speech”, sem margem para dúvidas, era bom que os promotores e prosélitas do “combate ao discurso de ódio” explicassem como o vão identificar, quais os critérios. Para mim é apenas mais um conceito abstrato que serve única e exclusivamente para a criação de “observatórios” parciais, organismos que visam um futuro (em certa medida já presente) de policiamento do pensamento e da liberdade de expressão que pode ser adequado à bitola da parcialidade de quem manda.
Nas redes sociais, tal como na vida real, ninguém deve ser censurado. O que deve prevalecer é o estado de direito e a responsabilização consequente das palavras de cada um, de acordo com a lei de cada estado. Não é o que se verifica neste momento. As palavras não podem ser censuradas, mas também não devem ficar sem consequências: nos tribunais, não na mão de um qualquer censor alinhado com determinada ideologia política.
No presente Zeitgeist, sabemos bem quem são os destinatários da perseguição política que já se verifica nas redes sociais e inclusive na vida mundana, real. A cultura do cancelamento também já tem raízes em Portugal.
Em relação ao partido Chega, é o bicho papão, a oposição que não existia, vão ter de a suportar, quer queiram quer não. A comichão é imensa.
Qualquer tipo de intervenção no campo da liberdade de expressão que não seja nos tribunais, mesmo com a ilusória separação de poderes vigente, chamem-lhe “combate ao discurso de ódio” ou outra coisa mais ou menos abstrata, esse tipo de intervenção só tem um nome: censura.