REFLEXÕES SOBRE A ARTE
Um diálogo com van Gogh
e Heidegger
Por João De Almeida Santos

“As Botas”, de Vincent van Gogh (1886).
LI COM ATENÇÃO E INTERESSE um pequeno Ensaio (“O Mistério do Dr. Gachet”) da autoria de Valdemar Cruz, na Revista do “Expresso” (04.12.2020, pp. 40-44), sobre Vincent van Gogh e o seu Retrato do Dr. Gachet. Sempre me interessei por van Gogh, desde os tempos em que lia muito Heidegger. Neste caso, trata-se da obra “Holzwege”, sendeiros ou caminhos interrompidos (na sua Floresta Negra, Schwarzwald), do capítulo sobre “A origem da obra de Arte” (cito a partir desta edição: Heidegger, M., Chemins qui mènent nulle part, Paris, Gallimard, 1962, pp.11-68 ). Confundem-se, estes sendeiros, e, muitas vezes cobertos de ervas, diluem-se na floresta sem marcar destino. E quando visitei, nas minhas viagens a caminho da Suábia, o Museu de Vincent van Gogh, em Amesterdão, comprei uma reprodução do quadro que retrata um par de botas de camponês, que ainda conservo na minha biblioteca sob a forma de quadro impresso em madeira. De facto, é esse o quadro que Heidegger analisa nesta obra. Mas confesso que nunca me ficou nada de especial das inúmeras (e desesperadas) vezes que li este prolixo capítulo, excepto, naturalmente, a orientação estratégica do discurso do filósofo de Freiburg-im-Breisgau sobre a arte e que dá sentido a todo este complexo (para não dizer palavroso) discurso: a obra de arte revela a verdade, “a arte é a verdade a pôr-se em jogo”; “a arte faz brotar a verdade” (pág. 61); “no quadro de Van Gogh a verdade acontece” (p. 43). Mais do que o belo, o que aqui está realmente em causa é a verdade, no seu sentido grego: alêtheia, verdade como desvelamento. A beleza seria um modo de a verdade acontecer. Mas verdade como desvelamento, não como “adaequatio”: a ideia de verdade e, portanto, também a ideia de arte como adequação ao real, como representação, descrição, cópia ou imitação não é correcta. Tal como a visão naturalista da arte. As botas de Van Gogh não representam, por isso, uma simples cópia de concretas botas de camponês ou camponesa. Isso não teria interesse. Todos sabemos como são e de que são feitas. O quadro é muito mais do que isso, não é uma mera representação. Tem dimensão ontológica, alude ao essencial, ao que nele se revela como originário. O que não poderia acontecer se a verdade ou a arte fossem concebidas como adequação ou cópia do real.
Heidegger, na verdade, sobrepõe a ideia de verdade à ideia de arte. A obra de arte estaria ao serviço do Ser, do seu desvelamento, logo, da verdade. E a ser assim, ela seria um meio de conhecimento, um meio de acesso àquilo que não se revela como imediatidade, que não se dá integralmente através através dos sentidos, sensorialmente, mas sim através do processo cognitivo inscrito no juízo estético. Uma espécie de arte meta-sensorial, não meramente denotativa, mas sobretudo alusiva. O artista criador como um hermeneuta, um arqueólogo que nos propõe uma obra a decifrar com os códigos da estética.
A Arte e o Apelo Silencioso da Terra
SEGUNDO HEIDEGGER, nós olhamos para a obra de arte, neste caso para as botas de camponês, e viajamos até à terra e a toda a metafísica que a envolve, até à sua ontologia, ao seu sentido originário. Os que a criam e os que a fruem. Sim. Mas a camponesa não. Ela não olha para as botas – usa-as. O seu é um critério de utilidade, enquanto o nosso é um critério estético. Mas um critério de acesso à verdade através da arte, enquanto descoberta ou desvelamento de toda a riqueza que está inscrita nestas botas pintadas e que remete para o “apelo silencioso da terra”, para a significação velada e silenciosa que brota da terra, da natureza. Sim, mas como diz Heidegger, “a camponesa, pelo contrário, simplesmente calça as botas”. Para ela vale simplesmente a sua utilidade e a certeza de que elas a ajudam a garantir a sua sobrevivência. Na obra de arte ficámos a saber o que realmente é o par de botas: “a tela de Van Gogh é a abertura daquilo que o produto, o par de botas de camponês, é, na realidade” – a eclosão do seu ser, o “advento da verdade”. Na obra de arte exprime-se mais do que uma simples funcionalidade. Alegoria e símbolo, as marcas da arte, são, pois, os seus elementos essenciais, entendendo estas duas palavras no seu sentido grego originário: falar para outrem publicamente (allo agoreúein) e reunir (symbalein): “A alegoria e o símbolo fornecem o quadro na perspectiva do qual se move, desde há muito, a caracterização da obra de arte” (p. 13). A arte exprime-se publicamente e reúne a forma e o sentido mais profundo presente na matéria de que a obra é feita. No fundo, diz Heidegger, “A beleza é um modo de permanência da verdade enquanto eclosão” (p. 43). Na arte comunica-se com outrem uma significação que resulta da combinação de elementos, a começar da forma com a matéria – alegoria e símbolo.
Van Gogh e o Dr. Gachet
ESTA POSIÇÃO tem interesse, porque, afinal, a verdadeira obra de arte tem três características fundamentais, no meu entendimento: não se revela aos sentidos na sua imediatidade sensorial, não é imitação ou cópia do real e desvela o que de outro modo não seria possível desvelar. Daqui a centralidade da Poesia (Dichtung) na arte. Ou seja, a arte não fala somente nem essencialmente aos sentidos, mas à alma e à sabedoria. Nela está presente uma espécie de sincretismo formal que lhe permite aludir à totalidade, ao sentido oculto. A beleza exprime a verdade com a linguagem sensorial, como obra. Funciona como apelo sensível ao desvelamento do essencial, o oculto. Heidegger remete, assim, a arte para a esfera da ontologia e do conhecimento que dela resulta: conhecer é desvelar, descobrir, mostrar. Não se trata, pois, na arte, somente de pura fruição (mais do que queria Kant na “Crítica do Juízo”: desinteresse, contemplação, liberdade – I, Secção I, Livro I, §5). Na arte dá-se o ser, revela-se o oculto. E esta sua posição remete-nos para a origem da obra de arte, para a razão última da obra, para o seu sentido e para a razão última do acto de criar. No artigo sobre o “Retrato do Dr. Gachet”, acima mencionado, é referido várias vezes que neste quadro há mais van Gogh do que Gachet. Um auto-retrato por entreposta pessoa: um médico que o artista consultou. Aquela melancolia, aquele olhar vago ou perdido no seu horizonte interior, aquele abandono seriam a expressão estética da própria alma do artista. O olhar, sempre um olhar desconfiado do real, lateral, um pouco de través que se encontra nos seus inúmeros auto-retratos. Ou seja, o que Van Gogh pintou não seria o Dr. Gachet, mas a sua própria melancolia e vagueza, através de outro rosto (ambos viajavam nas mesmas águas da arte e psicológicas). E quando penso na arte a partir da poesia – que Heidegger valoriza a um nível elevadíssimo, em especial quando fala do seu conterrâneo Hoelderlin – penso exactamente no desvelamento da alma e do corpo, na revelação alegórica, também no sentido grego, do ser constituinte profundo do poeta sofrido através da palavra e da sua musicalidade (melódica e harmónica), os instrumentos musicais que lhe dão consistência estética e que prolongam nos sentidos a dimensão estética e semântica da oferta, da obra. Parece-me que, nesta arte, não há grandes dúvidas de que se trata efectivamente de revelação do vivido profundo, de exposição de pulsões existenciais com densidade ontológica, onde se aninha e se expõe o ser do artista. Se as botas revelam esse nexo substancial entre a vida e a natureza que se exprime na relação da camponesa com a terra, o Dr. Gachet será o espelho onde Van Gogh revê a sua própria melancolia e vagueia. Deste rosto brota a verdade de Van Gogh, tal como das botas brota a verdade profunda, mas não reflexiva, da relação da camponesa com a terra. Esta mediação pela arte permite-nos, pois, ir mais fundo, densificar a experiência. O que não é permitido através da categoria da utilidade e nem sequer através do conhecimento como adaequatio (rei et intellectus).
Heidegger, Kant e a Arte
É O MODO heideggeriano de se aproximar ao universal subjectivo do Kant da “Crítica do Juízo”, na dimensão, também, aqui, do alegórico, no qual Kant funda a universalidade (através da publicidade e do consenso, e da adesão de cada um à proposta estética e ao gosto expresso) que decorre da conjunção do intelecto com a fantasia no juízo de gosto: “a comunicabilidade subjectiva universal do modo de representação própria do juízo de gosto (…) não pode ser mais do que o estado de ânimo do livre jogo da fantasia e do intelecto” (Kant, Crítica do Juízo, I, secção I, I, § 9). O universal subjectivo de Kant, corresponde em Heidegger, à universalidade inscrita na dimensão mais profunda da obra de arte, na dimensão ontológica do nosso estar-no-mundo, no “fazer brotar a verdade” da obra de arte. A universalidade do ser que se exprime na obra de arte e que também torna possível a sua pública comunicabilidade (enquanto alegoria). Esta visão da arte densifica-a e subtrai-a à captura do relativismo, do subjectivismo, do “banáusico” (Hannah Arendt) e, por isso, é uma visão amiga da arte, sim, embora, em Heidegger, colonize a sua dimensão mais sensorial e estético-expressiva pela ontologia. Este nexo íntimo da arte com a verdade esteve durante séculos ancorado no divino. Mas quando “deus morreu” (Nietzsche, “Assim falou Zarathustra”) haveria que subtrair a arte ao abraço mortal da banalidade, repondo nela uma dimensão ontológica. Eu creio que é isso que Heidegger tenta. Mas também creio que a inscrição da obra de arte numa intertextualidade estética (a história da arte) e numa referencialidade remota (por exemplo, a terra, como acontece com as botas de Van Gogh) lhe permitem ganhar uma robustez resistente à sua captura pela banalização, manter a sua aura e a sua solidez e irredutibilidade, como obra. Tenho bem noção de que a autonomia da forma relativamente à matéria é um adquirido e confere à arte uma identidade inconfundível ao mesmo tempo que a torna autopoiética, capaz de se reproduzir e expandir por dentro. O triunfo da forma, agora liberta da colonização narrativa externa, haveria de tornar a obra sujeito de si própria, significante e significado. Vê-se isso muito bem na dança moderna, a partir de Diaghilev e dos “Ballets Russes”. Mas o que eu penso é que esta dimensão autopoiética só é hiperbolizada numa evolução de tipo esquizofrénico quando perde o contacto com os nexos existenciais constituintes do ser humano, movendo-se apenas no plano “banáusico”, precisamente no sentido que lhe deu a Hannah Arendt. Mesmo quando ela regressa ao plano mitológico ou se alimenta do hermetismo ou de uma estratégia alquímica, dos valores da luminosidade ou da divina proporção, não só o referente se mantém firme e sólido, como o recurso intertextual sempre persiste. Na obra de arte acontece aquilo que eu, sem grande originalidade, chamaria, o dom, a graça, sem que seja necessário inscrever esta dimensão no divino e na predestinação porque esta graça pode muito bem assumir a forma de “insight”, de luz interior ou de um intenso estímulo que abale os alicerces do artista e o ponha a caminho do resgate pela arte, alimentando-lhe a energia criativa e comunicativa.
As Botas de van Gogh e a Floresta Negra
Regressando a van Gogh e a Heidegger, esta dimensão ontológica encontramo-la nas perturbações do artista e nas marcas evidentes e pregnantes que deixou na sua obra, mas também a encontramos no fascínio pelos sendeiros interrompidos da Floresta Negra, em Heidegger. Ele viu a botas de Van Gogh a partir da terra húmida e dos sendeiros sem destino do Schwarzwald da Suábia, onde tinha o seu Chalet. Na pintura altamente competente e racional de Van Gogh encontramos com facilidade elementos fundamentais onde se inscreve a tempestade psicológica que o atormentava e que o levou a procurar o Dr. Gachet, uma espécie de duplo onde ele se reviu como num espelho e, por isso, o pintou. Pouco tempo antes de se suicidar e de se comparar a um cego que pede a outro cego para o guiar antes de cair no buraco profundo e irreversível da morte. Heidegger tinha (julgo eu) botas parecidas com as de Van Gogh e talvez por isso e pelo que elas representavam para ele quando caminhava na Floresta Negra decidiu escrever sobre elas o que escreveu, ou seja, inscrevendo-as na sua ontologia e na sua leitura de fundo e crítica da história da filosofia ocidental: o seu resgate através de uma ontologia, de uma filosofia do Ser e de uma ontologia da arte.
Conclusão
Tudo isto parece confirmar o que eu próprio penso da arte (liberdade, contemplação, desinteresse, mas também resgate, alegoria, simbolismo… e sedução, a marca própria da arte). A arte como ontologia, graça, dom, no seu sentido laico, mas também como resgate do contingente, partilha como comunicação empenhada na sedução… com pretensões de validade universal, expressa em juízo estético partilhado. Arte com gravitas, com densidade. Coisa séria, muito séria porque envolve uma dimensão profunda da nossa própria humanidade. Em van Gogh a arte confundia-se com o seu universo atormentado na forma, no modo como se exprimia e nas atmosferas em que inscrevia os seus desenhos e nas figuras humanas que desenhava, incluída a dele próprio ou a do médico que escolheu para o serenar e que reconheceu ser um gémeo não só no amor pela arte, mas também nas tormentas que o assaltavam. Chamou assim o Dr. Gachet para a galeria dos “auto-retratos” que nos deixou. Humana, demasiado humana, a pintura de van Gogh, mas por isso mesmo poderosa e intensa lição do que é a arte, realmente. Arte com dimensão ontológica como queria o Heidegger de “Holzwege”.

“Retrato do Dr. Gachet”, de van Gogh (1890).