Artigo

A QUESTÃO DA HEGEMONIA*

Artigo. Nova Versão.
Por João de Almeida Santos
Jas. O som do silêncioTrab

“S/Título”. Jas. 01-2021.

ESTA É UMA QUESTÃO que parece estar, actualmente, arredada da política activa, mas não está. Quando mais parecia que a ideologia tinha perdido direito de cidadania, que tinha hibernado, e que a política estava a ficar cada vez mais reduzida à ideia de governança, de gestão asséptica do poder com vista à resolução dos problemas concretos das pessoas, eis que a ideologia entra em força na política, não já através dos clássicos veículos, os partidos, mas sim através de movimentos políticos de novo tipo que, por um lado, pretendem resgatar a política subtraindo-a ao espartilho do establishment e das partidocracias de diverso tipo – sobretudo os populismos -, e, por outro, procuram reintroduzir mundividências identitárias com ambições hegemónicas, quer no plano cultural quer no plano especificamente linguístico, lugar onde se dá o combate ideológico e onde a apostasia pode ser mais visível e moralmente castigada, para além mesmo das regras do Estado de Direito. Populistas e identitários, uma nova realidade a crescer no ambiente politica e culturalmente anémico do establishment e da sua política sem alma e sem ambição. O que, em abono da verdade, é catastrófico e incompreensível para um centro-esquerda que reivindica uma visão progressista e transformadora da história.

POPULISTAS E IDENTITÁRIOS

O CONCEITO DE POPULISMO parece ser hoje a chave comum de interpretação do fenómeno político, sem que haja uma rigorosa definição do que significa, entrando nele tudo e o seu contrário. É ver as tipologias que por aí circulam e dá para perceber que há populismos para todos os gostos. Mas, conceito operacionalmente eficaz e útil, eu entendo-o simplesmente como uma tendência que recusa a) a intermediação política; b) o establishment ou o sistema; c) considerando-se o legítimo intérprete (sobretudo através de lideranças de tipo carismático) do Volksgeist, que diz (com alguma razão) confiscado precisamente pelo mesmo establishment que combate, mas sendo certo que a sua base de apoio não é hoje a mesma do populismo russo originário, o campesinato pobre, teorizado por I. Herzen. É a este populismo – o que preenche cumulativamente estas três características – que me refiro.

O conceito de movimento identitário refere-se às tendências que identificam a natureza da totalidade social a partir das características de uma das suas partes, colonizando a totalidade e exibindo pretensões de validade universal. Exemplo: para o marxismo-leninismo, a totalidade social era determinada estruturalmente pela classe operária, considerada como a verdadeira matriz da história vindoura, do futuro; ou para o nazismo, em que a raça ariana era assumida como a verdadeira matriz da humanidade. A classe ou a raça como fundamentos da história. Os movimentos identitários absolutizam o discurso sobre si próprios, remetendo para uma zona de sombra a totalidade e o discurso sobre ela. Numa palavra, ocupam o centro nuclear da totalidade social, configurando-a à sua medida e pretendendo determiná-la. Cito, a propósito, uma esclarecedora passagem do livro de Arthur Gobineau, o pai de todos os racismos, “Essai sur l’inégalité des races humaines”, de 1853-55, que inspirou o racismo europeu e, em particular, o racismo nazi:

“C’est alors que, d’inductions en inductions, j’ai dû me pénétrer de cette évidence, que la question ethnique domine tous les autres problèmes de l’histoire, en tient la clef, et que l’inégalité des races dont le concours forme une nation, suffit à expliquer tout l’enchaînement des destinées des peuples ( itálico meu; da dedicatória a Jorge V, Rei de Hannover – Paris, Éditions Pierre Belfond, 1967, p. 29).

Mais claro do que isto é impossível, o que deveria levar a pensar duas vezes todos aqueles que, à esquerda e à direita, fazem da questão étnica o alfa e o omega da história e a razão última do seu combate nas sociedades de matriz liberal. O resultado destas palavras é bem, e tragicamente, conhecido na história.

Ambos, populistas e identitários, recusam, pois, por um lado, a velha tradição liberal quer no plano da representação política, a livre intermediação, quer no plano do universalismo, que se eleva acima do particularismo de ordens, classes, ethnos ou grupos sociais e da sua ambição a determinar a história, declarando possuir a sua chave de acesso. A utopia igualitária que lhe está associada, afinal, não é mais do que a hipóstase de uma visão identitária, onde cada identidade se propõe como a matriz do futuro e da cidade ideal. O discurso radical centrado sobre as classes, as raças ou o género, seja em que sentido for, é um discurso identitário. A luta entre raças ou entre géneros, por exemplo,  substitui, equivalendo-lhe  (metodologicamente), a velha luta de classes. A lógica é a mesma e centra-se numa relação de tipo amigo-inimigo, uma relação entre entidades orgânicas irredutíveis e incomponíveis. Por isso, a superioridade do racionalismo moderno sobre o organicismo consiste na justa subsunção destas entidades orgânicas na universalidade e no uso da razão como princípio unificador, sendo necessário, para tal, que se dê uma “separação” entre o particular e o universal, de modo a que (logicamente) possa ser accionado um principio ao mesmo tempo unificador e diferenciador. Este é, no meu entendimento, o segredo da filosofia hegeliana e a sua diferença (e superação) relativamente ao contratualismo.

Encontramos, assim, três visões: o populismo, os movimentos identitários de diversas inspirações e a visão liberal, iluminista e racionalista, inscrita na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

UM DEBATE ANTIGO

ORA, AMBAS AS TENDÊNCIAS se opõem, de facto, à visão liberal que está na matriz da nossa civilização e que deu origem, num primeiro momento, ao sistema representativo (com o mandato não imperativo) e ao Estado de direito e, depois, à democracia representativa, ou seja, à representação política e ao princípio “um homem, um voto”, com o sufrágio universal. Uma, porque é crítica da representação política tal como foi concebida pelos contratualistas liberais; outra, porque recusa o universalismo e o racionalismo em que se inspirava a visão liberal e iluminista. Falo, evidentemente, do liberalismo original, daquele que do sistema representativo e do regime censitário evoluiria para a democracia representativa, que tem como sua expressão mais avançada e progressista o liberal-socialismo ou o chamado socialismo liberal (de Stuart Mil a Hobson, Hobhouse, Dewey,  Capitini, Rosselli, Gobetti, Calogero, Bobbio) e que deverá certamente evoluir para uma democracia deliberativa. Os populistas, por um lado, e os identitários, por outro, combatem em igual medida o universalismo e o racionalismo de inspiração iluminista e naturalmente todos os institutos que neles se inspiraram, a partir da revolução francesa. O próprio direito já foi, também ele, alvo de críticas identitárias e da formulação de alternativas. Os movimentos feministas (por exemplo, o movimento italiano dos anos oitenta) há muito que formularam reservas sobre a componente de género inscrita do discurso jurídico clássico, tendo também, mais tarde, a própria gramática sido objecto de uma limpeza de género. Por outro lado, é também conhecida a orientação soviética de um direito de classe (que se opunha a outro suposto direito de classe burguês) interpretado pelo famoso Procurador Vichinsky, por Stuchka e por Pashukanis, analisado e criticado por Kelsen nos anos ’50, na sua “Teoria Comunista do Direito”. A crítica não é, pois, muito recente nem original. E para a questão da representação política bastaria revisitar a crítica marxista ao sistema representativo naquelas extraordinárias argumentações do Marx da “Crítica da Filosofia Hegeliana do Direito Público” (Kritik des Hegelschen Staatsrechts) e da “Questão Hebraica “ (“Zur Judenfrage”). Ou então a polémica entre o comunista Paul Nizan (“Les Chiens de Garde”) e o liberal Julien Benda (“La Trahison des Clercs”). Ou, ainda, revisitar a crítica romântica ao iluminismo. São todas elas argumentações muito sérias e sofisticadas sobre as debilidades e os limites do sistema representativo, da democracia representativa e da visão iluminista e racionalista da sociedade e do mundo. Argumentações que tendem a repor um organicismo diferente daquele que foi definitivamente superado pela visão liberal da sociedade (o nacionalismo orgânico ou visões corporativas, identitárias ou comunitárias da moderna recomposição societária), mas que não deixa de ser, de facto, organicismo. Das profissões às classes, ao ethnos, ao género. Organicismos de vária índole com pretensões de validade universal. Mas a verdade é que foi a visão iluminista, universalista e racionalista que triunfou e se constituiu como matriz da nossa civilização, tão magistralmente formulada nos dezassete princípios da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 1789. Na minha opinião, o que está a acontecer é uma gigantesca tentativa de agressão à matriz da nossa civilização tão brilhantemente formulada no documento redigido em Agosto de 1789. Uma coisa é aperfeiçoar um sistema plurissecular, outra é desenvolver um revisionismo radical da história.

UMA NOVA HEGEMONIA

 O QUE ESTÁ A IMPOR-SE, de facto e com grande força, na sociedade actual é uma tendência (com duas faces interactivas e dinamicamente especulares) que ameaça tornar-se hegemónica, pondo em causa alguns dos mais importantes pilares da nossa civilização em nome da erradicação das diferenças sociais, da devolução do poder à entidade mítica do povo e da concretização dos valores da utopia igualitária, chegando-se até a considerar toda a evolução humana à luz de utopias que acabam por deitar sombrias nuvens sobre um passado que há muito já passou e até mesmo sobre passados que na sua época foram revolucionários, como, por exemplo, o primeiro liberalismo, em relação ao Ancien Régime, ainda que censitário. Esta tendência que se tem vindo a infiltrar com grande sucesso no uso institucional da linguagem e na agressividade manifesta de todas as visões fracturantes e identitárias representa uma séria tentativa de afirmação política e de hegemonia, por canais diferentes dos canais tradicionais e em nome de uma utopia igualitária. Ela representa o domínio e o controlo público da linguagem socialmente tipificada, particularmente no que se refere às idiossincrasias identitárias e à afirmação de um asseptismo linguístico com sabor totalitário.

Do que se trata, neste caso, é da tradução em linguagem pretensamente asséptica e universal de visões do mundo ancoradas em organicismos identitários e fracturantes que se assumem como centrais no sistema social e portadores do futuro, tal como, para o marxismo, a (consciência de) classe (operária) representava a intencionalidade estrutural que haveria de levar à sociedade sem classes. A “consciência de classe” da classe operária estaria, ao contrário da “consciência de classe” burguesa, em sintonia com a intencionalidade imanente da totalidade social que determina o futuro. É esta, por exemplo, a posição de Lukács em “História e Consciência de Classe”, uma obra de 1923. No caso do populismo o que está em causa é a reposição da centralidade do povo-nação, a recusa da intermediação e da fragmentação identitária da totalidade social e sua pretensa validade universal. Um organicismo (nacionalista e soberanista) oposto ao organicismo identitário, duas faces da mesma moeda que se alimentam reciprocamente e que estão a espartilhar as tendências políticas que, embora com nuances diferentes, se reconhecem no património liberal, iluminista e racionalista originário e seu legado histórico.

A ABULIA DO ESTABLISHMENT

MAS O QUE É MAIS CURIOSO é que os partidos do establishment parece não se darem conta da verdadeira natureza do processo identitário, alinhando muitas vezes com os movimentos que o promovem e não reconhecendo que são estes que mais alimentam o populismo soberanista. E porquê? Na minha opinião, porque estão a ser vítimas de um crescente défice de cultura política, da redução da política à governança e do desconhecimento de que não pode haver política sólida e duradoura se não se preocuparem com a hegemonia (no sentido gramsciano), ou seja, com a afirmação pública de uma sólida visão do mundo capaz de mobilizar estrategicamente a cidadania e funcionando como sua cartografia cognitiva axiológica. Um défice de gravitas no pensamento e na acção política, diria. É precisamente no cinzentismo político do establishment  ou mesmo na cumplicidade com eles que crescem os movimentos políticos populistas e os movimentos identitários iliberais que tudo reduzem a fracturas identitárias em nome de uma simulacral utopia igualitária, a construir já e in progress. O que nem sequer, como já vimos, é muito original, porque esta visão apenas mudou na forma de enunciação, no tempo de execução e no contexto da sua afirmação, relativamente às velhas utopias. No meu modesto entendimento, este seu crescimento desmesurado e esta hegemonia deslizante que está a colonizar a linguagem que circula no espaço público estão a dar lugar à resposta populista de direita, numa autêntica relação especular e interactiva, sem que se veja um sobressalto político e intelectual das forças moderadas que nos vêm governando. Um exemplo? Olhemos para quem nos governa a partir dos ambientes alcatifados de Bruxelas, para a assunção acrítica deste asseptismo linguístico e compreender-se-á imediatamente o que pretendo dizer. A piorar o ambiente, e no meio de tudo isto, encontramos, diariamente, um protagonista perturbador que também deveria ser objecto de uma séria reflexão, vista a sua importância e o seu poder sobre a cidadania. Falo, naturalmente, da outra face do establishment político, ou seja, do establishment mediático, seu gémeo, que em achas para a fogueira se tem revelado altamente pródigo. É isto mesmo. E é sobre isto que os partidos moderados amigos do progresso e da harmonia civilizacional se deverão debruçar, antes que seja tarde.

CONCLUSÃO

AS SOCIEDADES estão a mudar em profundidade (e não só por causa do COVID19), a ideologia está a regressar sob novas formas, e não pelos melhores motivos, a política tradicional vive uma crise de anemia quer no plano da representação política quer no plano da cultura política, movimentos políticos de novo tipo surgem e ocupam o espaço público recorrendo a um novo tipo de populismo ou a mundividências fracturantes e identitárias com vocação hegemónica, recusando a matriz liberal que está na origem da contemporaneidade e da nossa civilização. Duas visões que se irmanam numa mesma tendência: a de reclusa do comum património de matriz liberal. Neste contexto, é incompreensível que partidos que se reivindicam do reformismo e da mudança continuem acomodados com práticas que há muito deixaram de corresponder à realidade emergente, descurando o imenso campo simbólico onde a competição política pela hegemonia está a ocorrer com maior intensidade. Só assim se compreende que a luta pela hegemonia lhes esteja a passar ao lado. E o mais grave é que isto está a acontecer não só porque não fazem uma correcta leitura dos tempos que estamos a viver, mas também porque continuam embalados na velha política e no feitiço que tanto seduz os aprendizes de feiticeiro. Uma mistura mortal porque alia a ignorância ao deslumbramento.

*Texto revisto e aumentado 
relativamente à edição de 23.12.2020.
Jas.S:TítuloHegemonia-cópia

“S/Título”. Detalhe.

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