UM BALANÇO DO FUTURO
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. Jas. 01-2021.
SE É VERDADE que esta é a mais grave crise que conhecemos depois da segunda guerra mundial, e é provável que seja, juntamente com a crise ambiental, então parece ser inevitável que deverá dar lugar a respostas equivalentes às que se seguiram à guerra. Respostas com futuro. E, na verdade, houve duas fortes respostas com futuro: a transformação da Sociedade das Nações(que pretendera responder, em 1919, às causas, ou causa, que deram origem à Grande Guerra) em ONU, Organização das Nações Unidas, em 1945, e a criação da União Europeia sob a forma de CECA, em 1952. Ambas para responderem ao problema central que originou mais de cinquenta milhões de mortos, através da promoção institucional da ideia de paz. Na altura, o problema era a guerra; agora, o problema é a pandemia. Antes, a resposta foi a paz, e agora, qual é a resposta? Ambos, guerra e pandemia, são problemas mundiais e afectam toda a população do globo. É preciso que a política esteja à altura, como antes esteve. Alguns já se começaram a mover, como os signatários do Manifesto “Convite aos cidadãos e líderes para um novo poder democrático europeu”, assinado, entre outros, por Felipe González, Cohn-Bendit, László Andor, Massimo Cacciari, Aleksander Kwanievski, Petre Roman, Fernando Savater, Guy Verhofstadt, Roberto Saviano e Sandro Gozi, propondo, no essencial, um reforço da União em legitimidade e eficácia, a construção de uma cidadania europeia e de uma democracia deliberativa, em suma, Um Novo Pacto Europeu, incluindo um verdadeiro Green New Deal.
A CRISE
A DEVASTAÇÃO PANDÉMICA não teve a aparência nem as consequências físicas das duas guerras mundiais, com esse rasto de destruição, com dezenas de milhões de pessoas mortas e de estruturas físicas destruídas por toda a Europa, mas esta devastação foi e está a ser grande e difusa, atingindo cada cidadão singular, independentemente dele estar ou não no “teatro de guerra” ou, melhor, com um “teatro de guerra” difuso e indefinido em todo o território. Devastação da vida em comunidade, devastação da economia e do emprego, devastação da saúde, com elevado números de mortes, a uma dimensão a que já não estávamos habituados. Um fenómeno que atinge directamente todos e cada um. Um fenómeno que fomos incapazes de prever nos seus efeitos globais, mesmo quando já havia notícia do que se estava a verificar numa zona da China, em Wuhan. A rápida expansão do fenómeno aconteceu num mundo globalizado, onde a mobilidade e a velocidade são categorias centrais em todas as manifestações da vida humana. E onde ambas se cumpriram sob a forma de pandemia, dando origem a uma rápida desestruturação da vida social com efeitos em cadeia que provocaram o desmoronamento das interacções que a alimentavam e que garantiam o seu normal funcionamento e a gestão das vidas das pessoas singulares e das suas actividades. A crise sanitária rapidamente se transformou em crise comunitária e em crise económica. A sociabilidade, na sua organicidade e territorialidade, sofreu um golpe profundo e persistente, motivando a intervenção dos Estados para a regular com normas de excepção e de forma generalizada. Uma intervenção que não se verificou somente na regulação dos fluxos da vida social, mas que também evoluiu para a minimização financeira dos enormes danos sofridos pelos agentes económicos, para a contenção da dinâmica de contágio e para a resposta aos seus efeitos disruptivos sobre a saúde pública. E quem duvidava da necessidade de um Estado com um bom poder regulador da sociedade verificou que, afinal, ele continua a ser imprescindível. Dizia-se no Grundsatzprogrammde 1989 do SPD que só as sociedades ricas se podem permitir um Estado pobre. Pois bem, esta crise veio demonstrar que nem as sociedades ricas se podem permitir um Estado pobre, o que também tem contraprova no valor e no significado da intervenção da União Europeia sobre a crise sanitária e sobre a crise económica dela derivada como condição para combater a pandemia e os seus efeitos devastadores sobre as economias nacionais. Se a lição serve para a defesa do Estado social (e de um Serviço Nacional de Saúde), ela também serve para a defesa da União Europeia.
Em síntese, o que aconteceu (e continua a acontecer) mereceu respostas para conter o fenómeno e os seus desastrosos efeitos, mas agora também deve merecer uma resposta de fundo que olhe para o futuro à luz do passado, prevenindo riscos, mas sobretudo construindo um futuro mais inteligente, flexível e sustentável. É preciso mobilizar a cidadania para este combate, em particular as elites políticas, como já estão a fazer, e bem, as personalidades europeias que já referi.
RESPOSTAS
TODO O SISTEMA SOCIAL sofreu (está a sofrer) um forte abalo sistémico e é por isso que se torna necessário retirar consequências de fundo não só para que no futuro haja maior capacidade de contenção ab ovode fenómenos semelhantes, mas também para que as experiências positivas que resultaram da crise possam ser devidamente metabolizadas e internalizadas pelo sistema social. E é aqui que a política deverá desempenhar o seu papel. Na verdade, houve respostas que merecem ser evidenciadas pelo seu carácter positivo. A resposta da ciência, ao desenvolver vacinas em tempo recorde, tendo sido, e bem, dotada, pelo sistema, de recursos financeiros generosos. O recurso às tecnologias disponíveis para resolver com eficácia os problemas decorrentes dos vários tipo de confinamento alargado tornou evidente a vantagem do desenvolvimento científico e tecnológico, mas também mostrou que as potencialidades existentes não estavam a ser devidamente aproveitadas, funcionando o sistema essencialmente por inércia, apesar dos recursos que, na verdade, ia conquistando. O teletrabalho alargou-se a um nível que parecia não ser possível. O ensino à distância generalizou-se, revelando uma fantástica capacidade de adaptação às novas tecnologias pelo sistema de ensino a todos os níveis e demonstrando que a lógica orgânica, ainda considerada exclusiva, não é necessariamente exclusiva, podendo ser complementada online; e a conviviabilidade perdida, por motivos de confinamento, foi em parte reconquistada graças à comunicação em rede. Verificou-se também um abaixamento significativo dos níveis de contaminação ambiental à escala planetária, em virtude da redução da mobilidade social e das limitações de acesso à generalidade dos países. Os cidadãos viram-se confrontados com a necessidade de disciplinar a sua vida em comunidade e de adoptar rigorosas e novas regras de comportamento. As actividades económicas viram-se obrigadas a reinventar o modus operandi(no caso das indústrias de fornecimento alimentar com o desenvolvimento do take away, por exemplo) e as formas de organização e de gestão.
A crise implicou uma profunda mudança nas relações sociais com efeitos fortemente negativos, mas também com efeitos (positivos) que revelaram boa capacidade de resposta à crise, gerando novos comportamentos e novas relações.
RETIRAR LIÇÕES E METABOLIZAR PROCESSOS
TUDO o que nos tem vindo a acontecer é experiência muito séria à qual tivemos de dar respostas consistentes e sustentáveis, recorrendo a todos os recursos disponíveis. É experiência consolidada e posta à provas dos factos. Não foi experiência fugaz e circunstancial, pois há quase um ano que nos temos vindo a adaptar às novas circunstâncias, reinventando o nosso modo de estar em sociedade e explorando recursos que não estavam a ser usados em todas as suas potencialidades. E isso tem um significado e um valor que não deveremos esquecer quando tudo voltar à normalidade. Uma normalidade que deverá, pois, incorporar e metabolizar a experiência vivida naquilo que ela teve de positivo, de bom. Não só tirar lições do que não fomos capazes de resolver e para o qual não estávamos preparados, mas sobretudo tirar lições do que fomos capazes de fazer bem na resposta à crise.
CONCLUSÂO: A POLÍTICA, A CRISE E O FUTURO
MAS A VERDADE é que o passo seguinte só poderá ser dado com o contributo decisivo da política e das grandes empresas, sobretudo daquelas que, pelas suas características, o podem fazer e dispõem de instrumentos e de capacidades organizacionais para isso. Muitas empresas estão a funcionar com bons resultados em teletrabalho, tendo, para isso, adaptado a sua estrutura organizacional; o ensino à distância tem mostrado níveis de eficiência que têm de ser tomados em conta; a poupança de recursos nestes níveis é enorme, como é grande o grau de poupança energética e de despoluição do ambiente, devido à drástica diminuição da mobilidade devida ao trabalho. A conviviabilidade ganhou um novo meio de satisfação que se revelou muito eficaz, sobretudo quando a perda da conviviabilidade orgânica acontece, podendo ser altamente capitalizado em condições de normalidade; o investimento em saúde deve ser intensificado, ao mesmo tempo que o investimento em armamento deve ser reduzido; a rede não deve ser atacada como está a ser pelo papel que tem vindo a desempenhar designadamente na conviviabilidade, mas também na participação da cidadania na gestão do seu presente e do seu futuro e no acesso ao conhecimento. Tantas e tantas conquistas que deverão ser, com vantagem, adoptadas sem alterar o essencial do nosso modelo de desenvolvimento, mas corrigindo-o e melhorando-o. A iniciativa que acima referi é interessante não porque avance grandes e inovadoras ideias, embora vá no sentido correcto (reforço político e decisional da União, aposta na cultura, reforço da componente social e solidária, democracia deliberativa, etc.), mas porque evidencia a genuína preocupação de pessoas que já desempenharam funções de grande relevância política ou se notabilizaram pela sua actividade profissional, designadamente no plano cultural. Que os políticos no activo assumam também eles os desafios e lhes respondam com imaginação, coragem e determinação é o que a cidadania mais espera deles. #Jas@2021.

“S/Título”. Detalhe.