“DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA”
Por João de Almeida Santos

“S/Título”. Jas. 01-2021.
TOMOU ONTEM POSSE o 46.º Presidente dos Estados Unidos, no Capitólio, a sede do Congresso, depois de um longo e complexo processo eleitoral, que começou com as primárias de ambos os partidos e terminou com a recusa do Presidente Trump em aceitar o resultado das eleições e com o apelo aos seus apoiantes a marcharem contra o acto de reconhecimento, pelo Congresso, de Joe Biden como Presidente eleito. Quatro anos de Presidência Trump que acabam da pior maneira: uma pandemia devastadora e uma gravíssima crise do regime democrático americano provocada pelo detentor do máximo poder político, em funções. A um ponto tal que aquela que seria a festa máxima da democracia americana foi transformada em ambiente de estado de sítio na Capital, Washington. Ou seja, um dos dois contendores, do alto dos seus cerca de 74 milhões de votos, recusou-se a aceitar a vitória do seu adversário, que obteve mais cerca de 7 milhões de votos, mais 74 grandes eleitores, maioria na Câmara dos Representantes e paridade (na verdade, maioria) no Senado (com voto de desempate favorável, à disposição da Vice-Presidente Kamala Harris). No final, houve festa, o Presidente Biden fez um bom discurso e tudo correu sem incidentes. Uma vitória da democracia, com o disse o Presidente eleito.
O que é a Democracia?
A democracia é um regime que tem como função essencial resolver, recorrendo ao consenso, e para efeitos de governação e de tomada de decisões que vinculem toda a comunidade, as diferenças existentes na sociedade através de mecanismos institucionais que assentam na dinâmica da representação e na regra da maioria. Este regime assenta também no respeito pelas regras que foram livremente consensualizadas e consignadas numa constituição por parte dos intervenientes no processo democrático. Processo que dispõe de órgãos (designadamente os órgãos do poder judicial e do poder político) que certificam e consagram os actos que ocorrem neste processo. Perante isto, os protagonistas do processo democrático têm o dever e a obrigação de aceitar e de cumprir estas regras em cada momento.
Ora, foi isto que não aconteceu nestas eleições e no processo de transmissão do poder, porventura o momento mais simbólico e mais belo de todo o processo democrático: o momento em que o vencido reconhece e aceita lealmente a vitória do adversário, pondo fim à competição, elevando-se o vencedor a representante de toda a nação e a expressão simbólica da sua unidade. O exemplo do belíssimo discurso do senador McCain sobre a vitória de Barack Obama, em 2008, ficará para sempre gravado como exemplo máximo de nobreza de carácter, de espírito genuinamente democrático e de grandeza de alma. (https://www.npr.org/templates/story/story.php?storyId=96631784&t=1611075374590). Donald Trump não e, por isso, ficará como exemplo do que não deve acontecer, em particular num momento de tão alto simbolismo como é a tomada de posse do Presidente. Não só declarou não reconhecer a vitória do adversário antes de o próprio processo eleitoral ter ocorrido (o que significa não reconhecer as próprias regras do processo eleitoral em curso e em que o próprio participou, apesar de ser ele o detentor do máximo poder politico nos Estados Unidos), mas também não a reconhecer depois de contados os votos e de o processo estar certificado pelas entidades competentes, esgotados que foram todos os recursos formais possíveis (e mesmo impossíveis) do candidato derrotado. Mas, pior ainda, o não reconhecimento prosseguiu incitando os seus apoiantes mais radicais a que marchassem sobre o mesmo Capitólio onde decorria, em sessão conjunta da Câmara dos Representantes e do Senado (presidido, de resto, pelo seu Vice-Presidente Mike Pence), o acto final de certificação política dos resultados e de declaração formal do nome do próximo Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. O que se seguiu é de todos conhecido: violência, mortes, devastação do Congresso, ocupação dos gabinetes dos representantes e senadores, filmagem de documentos dos representantes. Tudo sob o alto patrocínio, directo ou indirecto, do Presidente em funções. E tudo agora devidamente certificado pela ausência do Presidente cessante no acto de tomada de posse do novo Presidente. Exactamente o oposto do que aconteceu com a vitória de Obama e a reacção do Senador McCain. Mas também o oposto do que deve ser o comportamento de um democrata responsável perante o desfecho de uma regular disputa eleitoral.
Como Morrem as Democracias
Esta situação levou-me a ler um livro de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, ambos professores em Harvard, “How Democracies Die”, publicado em 2018, pouco mais de dois anos antes de assistirmos a estes inacreditáveis acontecimentos do dia 6 de Janeiro de 2021 e que já levaram a Câmara dos Representantes a declarar (com o voto favorável de 10 republicanos) aberto o segundo processo de impeachment a Donald Trump (que prosseguirá, apesar de já não ocupar a Presidência e que poderá ditar a interdição de, no futuro, se poder candidatar). Todo o livro se concentra sobre o que o título anuncia, uma longa narrativa sobre as antecâmaras democráticas do autoritarismo, sobre os processos que conduzem à instauração de regimes autoritários, não democráticos. Desta vez, desenvolvendo os autores uma ampla reflexão sobre a presidência Trump e o seu irregular comportamento não só relativamente às normas praticadas, mas não escritas, da democracia americana, mas também em relação às próprias normas escritas. Não estiveram os dois autores muito longe de antecipar este último e gravíssimo comportamento de Donald Trump, que, afinal, viria a dar substância final à sua certeira narrativa. Deste modo, se tomarmos em consideração a tipologia do comportamento autoritário apresentado pelos autores veremos que a Trump se aplicam os seguintes indicadores, correspondentes a cerca de metade dos que são connsiderados. Autoritários são os que:
1) tentam minar a legitimidade das eleições, recusando-se, por exemplo, a aceitar resultados eleitorais dignos de crédito (e dizem os autores que Trump também violou normas democráticas essenciais quando denunciou abertamente a legitimidade das eleições); 2) afirmam que os seus rivais constituem uma ameaça, seja à segurança nacional ou ao modo de vida predominante; 3) têm quaisquer laços com grupos armados, forças paramilitares, milícias ou outras organizações envolvidas em violência ilícita; 4) patrocinaram ou estimularam eles próprios ou os seus partidários ataques de multidões contra oponentes; 5) solidarizaram-se tacitamente com a violência de seus apoiantes, recusando-se a condená-los e a puni-los de forma categórica.
Trump e a Democracia Americana
Note-se que são estes personagens que, tendo lá chegado por via eleitoral, prenunciam os desvios autoritários ou ditatoriais das democracias, de forma mais ou menos aberta. Os autores dão exemplos que são conhecidos de todos nós: de Fujimori a Chávez, de Putin a Erdogan, a Orbán, entre outros. Trump, na visão Levitsky e Ziblatt, e ainda sem conhecerem a gravidade do que viria a acontecer depois, inclui-se neste quadro tipológico. E, como os próprios dizem, ainda que não tenha conseguido destruir por completo o quadro das normas que sustentam a democracia americana, abriu certamente o caminho a outros que o possam continuar a percorrer. O que não será certamente o caso de Biden e do partido democrático, que, pelo contrário, deverão ter como tarefa central repor a normalidade democrática, não apenas formalmente, recuperando as regras grosseiramente atropeladas, mas sobretudo respondendo com eficácia aos problemas de fundo da sociedade americana que motivaram um tão alto score eleitoral de Trump, nestas eleições.
Os autores evidenciam ainda as duas normas básicas que preservam os “checks and balances” da democracia americana e a fazem funcionar: a tolerância (concorrentes que se aceitam mutuamente como competidores legítimos) e a contenção (uso comedido das prerrogativas institucionais). Mas chamam também a atenção para uma polarização extrema da política americana que pode destruir a própria democracia, ao anular as suas próprias redes de protecção. E este é também outro contexto em que se inscreve a acção de Donald Trump, não estando, pois, os autores longe da verdade quando afirmam, a meio do seu mandato, que a ascensão de Trump representou “um desafio para a democracia mundial” e que mesmo que não tenha conseguido deitar abaixo as grades de protecção da democracia constitucional americana, ele aumentou a probabilidade de um futuro presidente o vir a fazer. Este simbolismo das grades de protecção da democracia americana encontram um dramático referente no que viria a acontecer realmente com o selvático assalto à casa da democracia, o Congresso americano. O impeachment de Trump poderá, se outras razões não houvesse, vir a impedi-lo de se recandidatar em 2024, é certo. Mas, como reconhecem os próprios autores, o problema de fundo já lhe é anterior e certamente não acabará com ele. Por isso, a resposta tem de ser mais profunda e ficará, sobretudo, sob a responsabilidade do partido democrata (que tem um Presidente e a maioria em ambos os ramos do Parlamento), mas terá também de envolver uma parte do próprio partido republicano, todos aqueles que se revêem, sem reservas, nas palavras e no comportamento de John McCain. Este Presidente possui, para isso, condições reconhecidamente excepcionais para desenvolver uma diplomacia política junto dos republicanos que evite males maiores, e que não seriam somente males americanos.
Conclusão
Vimos festa na posse de Joe Biden como 46.º Presidente da maior potência mundial. Uma festa blindada, mas festa. E vimos celebrar esse espírito de união que se deve elevar acima das diferenças sobretudo no momento em que o país reconhece uma liderança institucional como resultado da escolha da cidadania. Mas que este dia de festa tivesse, pelas razões que todos conhecemos, de ser um dia altamente blindado, um dia de preocupação e de suspense diz tudo acerca do momento que vivemos, onde à trágica pandemia se vem juntar um alto risco de colapso democrático, não só nos Estados Unidos, mas também em outras partes do mundo, agora mais expostas por este lamentável exemplo dos quatro anos de trumpismo e do arrojo dos seus seguidores em, desta forma grosseira, grotesca e inacreditável, assaltarem a democracia americana, derrubando grades físicas de protecção da Casa da Democracia, mas sobretudo procurando derrubar as grades simbólicas que protegem a própria democracia. Que os deuses protejam e inspirem Joe Biden, no mandato que ontem iniciou como Presidente dos Estados Unidos.

“S/Título”. Detalhe.
Presenciamos tempos estranhos…
Bom artigo.
É verdade, tempos muito estranhos, em todas as frentes, na saúde, na política, no clima… Esperemos que rapidamente se possa voltar à normalidade. Sim, à normalidade, mas com novas respostas aos problemas de fundo que estão provocar a crise. Obrigado pela sua apreciação.
Bom dia artista, poeta, professor, filósofo ( é para mim um orgulho ser sua amiga, mesmo virtual)
Excelente artigo ; Esclarecedor Objetivo Pertinente Realista Politicamente correto Reflexivo Alerta isento de influência Posição demarcada do autor
Parabéns estimado amigo ‼️ Tudo de bom 🌺 Proteja – se ‼️ Bjs com estima e admiração,
Margareth dos Santos Leite Moreira
Obrigado, Margareth!
Excelente artigo ;
Esclarecedor
Objetivo
Pertinente
Realista
Politicamente correto
Reflexivo
Alerta isento de influência
Posição demarcada do autor
Parabéns estimado amigo ‼️