Artigo

E AGORA?

Por João de Almeida Santos

Presidenciais2021

“S/Título”. Jas. 01-2021.

ESTRANHAS, ESTAS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS. Em plena pandemia, com números assustadores. Fique confinado, é a palavra de ordem. Vá votar, foi a outra palavra de ordem. A democracia tem de ser defendida, disse-se. Ficar confinado é, como sabemos, o modo de travar o contágio e a expansão da doença. Ninguém duvida disso. Mas também a democracia tem de ser defendida, e, portanto, a palavras de ordem foi: desconfine-se e vá votar.  Tal como a economia, que também tem de ser defendida, o que exige exactamente o contrário do que é necessário para travar a doença: troca, comércio, contacto entre pessoas. E se o combate à crise sanitária para ser eficaz exige medidas que são opostas ao combate à crise económica, então é preciso decidir qual é o combate prioritário. Qual é a palavra de ordem prioritária. Não podemos é estar permanentemente a pedir uma coisa e, logo a seguir, por novos e inultrapassáveis imperativos, pedir o seu contrário. Eu creio, aliás, que este tem sido o nosso pecado original. Combater de igual modo duas crises que exigem medidas contraditórias significa anular reciprocamente as medidas, deixando que ambas as crises se aprofundem. Crise, aliás, e curiosamente, em grego antigo significa precisamente decisão. A palavra vem do verbo krínô: separar, dividir, decidir, julgar, condenar. Pode-se dizer que, no sentido etimológico, na palavra crise (krísis) há uma ideia de rotura, de separação, de decisão com reais efeitos, mas também de intervenção da vontade, da razão e da consciência. Curioso. E decidir é optar. E optar significa também abdicar de algo (separar). Mas, para optar, é preciso, em certas circunstâncias, coragem, intervenção da vontade e da razão. Sim, coragem. Sobretudo por parte de quem tem o poder e o dever de, usando a vontade e a razão, regular as relações sociais. Reconheço a delicadeza e a dificuldade da questão, mas tem de ser assim se se quiser obter resultados satisfatórios.

E por que razão não se altera 
o sistema de eleição do PR?

 Mas, mesmo no meio da pior crise da pandemia, a cidadania foi votar, num ambiente devidamente acautelado para evitar a propagação do vírus. E a abstenção, ao contrário do que certos politólogos, depois de terem feito todas as contas possíveis e impossíveis, previam, ficou em números aceitáveis, dadas as circunstâncias, que incluem sem dúvida a crise pandémica. Votaram 39.5% dos eleitores inscritos. E se contarmos só os eleitores residente em território nacional votaram muitos mais. É pouco, mas é mais do que o previsto por encartados politólogos: cerca de 25%. Ainda bem.

Olhando para os resultados, com a esmagadora vitória do actual Presidente e com a distância a que ficaram restantes candidatos, olhando para os personagens que se candidataram e olhando para as competências presidenciais, ficou-me ainda mais clara a convicção de que o sistema eleitoral que regula a eleição presidencial deve ser alterado, sendo a eleição feita por um colégio eleitoral onde a Assembleia da República seja determinante, mas onde participem também os detentores dos mais altos cargos da República. Evoluir, portanto, para um sistema parlamentarista. O que teria também uma ulterior vantagem: não tendo o PR uma legitimidade directa, ou de primeiro grau, a conflitualidade latente que tem vindo a acontecer entre os PRs e os Governos, ambos detentores de legitimidade de primeiro grau, tenderia a diminuir drasticamente, apesar de a legitimidade e as competências do PR se manterem íntegras. Por outro lado, evitar-se-ia a instrumentalização política das eleições presidenciais, com os partidos, ou personalidades singulares, a aproveitarem a ocasião para ocupar a agenda política e a agenda pública e aumentar a sua notoriedade e influência, umas vezes com resultados positivos, para este fim, como foi o caso do “Chega”, outras, como foi o caso do PCP e do Bloco, com resultados negativos. Sendo também certo que os resultados das presidenciais não são automaticamente transponíveis para as legislativas. Por exemplo, à direita, entrando em cena vários partidos que não participaram na disputa, a votação que se concentrou no “Chega” tenderá naturalmente a fragmentar-se, deslocando-se muitos eleitores para outros partidos, designadamente para o PSD, que tem no seu seio várias tendências, incluindo a que se situa mais à direita da tendência social-democrata, os neoliberais.

O boletim de voto era falso

Há um pormenor (relevante) nestas eleições que também merece destaque: a presença, no boletim de voto oficial que foi apresentado aos eleitores, de um candidato que, não tendo cumprido os requisitos legais, viria a ser considerado inelegível. Sendo certo que os cidadãos têm o direito de saber quantos votos teve este candidato fantasma (li num jornal que a sondagem da Intercampus, à boca das urnas, teria calculado cerca de 5000 votos), é também certo que isto não deveria acontecer porque certamente levou ao engano muitos eleitores, desvirtuando os resultados. Ainda que um só fosse levado ao engano já isso deveria ser considerado inaceitável, não só por razões de princípio, mas também por razões de legalidade. Numa palavra simples: o boletim de voto oficial era falso e isso até poderá dar lugar a impugnação legal das eleições. Não há explicações que possam justificar este facto e o Tribunal Constitucional e o Ministro da Administração Interna deverão bater com a mão no peito pelo menos cento e uma vezes.

O efeito Ventura

Algumas outras conclusões há que retirar destas eleições. Em primeiro lugar, que a vitória de Marcelo Rebelo de Sousa se deve ao apoio (directo e indirecto) das duas maiores forças politicas, PSD e PS, não se tendo verificado uma consistente polarização de votos da área socialista para Ana Gomes, mas tendo-se verificado, talvez pelo efeito André Ventura (AV)  – a polarização da atenção social em torno da conquista do segundo lugar e as consequências derivadas das declarações do líder do “Chega” -, isso sim, um voto útil naquela candidata por parte de algum eleitorado do PCP e do Bloco receoso da vitória da aposta do líder da extrema- direita, o que explicaria, em parte, os fraquíssimos resultados dos seus candidatos. Votar em Ana Gomes significaria, pois, evitar que o candidato do “Chega” ficasse em segundo lugar.

 “Agenda-Setting” e polarização política

Um outro aspecto deverá ser também evidenciado. Há uma teoria sobre os efeitos cognitivos e sociais dos mediaque se chama “Agenda-Setting”, formulada por Maxwell McCombs e Donald Shaw. E há ainda uma outra conhecida como “Tematização”, atribuída a Niklas Luhmann. Ambas sublinham a importância primacial do agendamento pelos mediade determinadas temáticas e dos efeitos que este agendamento tem quer nos protagonistas políticos quer no comportamento político dos cidadãos. A centralidade e a persistência na agenda política e na agenda pública de determinados temas (ou personagens) tem seguros efeitos no plano da polarização da atenção social e do seu relevo público em relação ao comportamento político da cidadania. Ora eu creio que a declaração persistente e generalizada de AV como inimigo público número um o beneficiou, neste plano, e lhe trouxe dividendos políticos, sobretudo num processo onde a direita mais moderada não esteve presente. Não é difícil de entender que ocupar o centro da agenda política durante tanto tempo tem consequências no comportamento político do eleitorado. Mas não diminuo outros factores explicativos para o seu resultado, como, por exemplo, a polarização do descontentamento com as prestações do establishment, do sistema, apesar de estar convencido de que esta “obsessão” intensiva e generalizada por AV acabou por ter um significativo efeito de reforço do seu score eleitoral. É dos livros. E quando estudei o percurso político de Sílvio Berlusconi e a sua vitória eleitoral em 1994 pude constatar isto mesmo: que esta técnica da polarização da atenção social foi eficaz e teve seguros efeitos na vitória do candidato (veja-se o meu livro Media e Poder, Lisboa, Vega, 2012, pp. 257-338).

O incontornável Tino de Rans

Há ainda algo mais com um significado político interessante. Tino de Rans (TR) ficou a pouco mais de duas décimas do candidato liberal Tiago Mayan (TM). Um candidato, TR, que aspira a entrar na carreira política e que, ao contrário do candidato liberal, usando exclusivamente os seus recursos pessoais, conseguiu a proeza de obter 122.743 votos, o que o fará pensar que não andará muito longe de vir a realizar o seu sonho: entrar na  Assembleia  da República como deputado. Mais curioso ainda é TR ter derrotado o candidato liberal no Porto (4,46% contra 4, 29%). Os liberais, que podem reivindicar legitimamente uma nobre tradição que, nos seus primórdios, até foi revolucionária, não conseguiram destacar-se de um simplório que, sozinho, deu livre curso a uma empreitada que o poderá levar à conquista de um lugar no parlamento. Até faz lembrar, e com simpatia, o famoso Tiririca (deputado brasileiro) e a sua palavra de ordem: “Pior do que tá não fica, vote Tiririca”. Um sincero elogio pela imaginação, a persistência e o esforço deste candidato.

Conclusão

Tivemos, pois, umas eleições presidenciais que, naquilo que era o seu objecto real, eleger o PR, nada politizadas foram pelos dois grandes partidos do sistema, vista a clara vitória antecipada do actual Presidente e as razões (diferentes, é certo, mas convergentes num mesmo objectivo) que cada um destes partidos encontrou para o confirmar. Exagerando um pouco (retoricamente, entenda-se), poder-se-ia dizer que para estes partidos até poderia não ter havido eleições. Em boa verdade, eles expulsaram a política das eleições presidenciais, deixando-a para os outros partidos e para a candidata Ana Gomes. O que viria a acontecer, com as consequências que se conhece: a polarização em torno da conquista do segundo lugar, com claro benefício para os dois candidatos em condições de o alcançar. Tivemos, então, outras candidaturas que, bem sabendo que não chegariam sequer a uma segunda volta, o que procuraram foi, na realidade, usar estas eleições para outros fins: as futuras eleições legislativas. Talvez só a candidatura de Ana Gomes tenha sido a única a não visar directamente este fim, mas, sim, o de uma afirmação futura no interior do próprio Partido Socialista. O que, afinal, vistos os resultados, parece não ter sido, neste aspecto, muito bem sucedida. De qualquer modo, esta candidatura poderá vir a reforçar tendências já presentes no PS, desalinhadas da actual liderança, em particular aquela que é representada por Pedro Nuno Santos.

É por tudo isto que me parece que o melhor sistema a adoptar para as eleições presidenciais seja o de um colégio eleitoral alargado, em vez do sufrágio universal. Simplificar-se-ia o sistema, evitar-se-ia conflitos de legitimidade entre PR e Governo e sobretudo esta distorção reiterada de uso instrumental das eleições, sem que isso significasse uma diminuição dos actuais poderes do Presidente ou da sua legitimidade. Posto isto, e notando a alta taxa de abstenção, confesso que fiquei surpreendido com a participação dos cidadãos nestas eleições. O que é, nestas circunstâncias, um bom sinal.

Presidenciais2021Rec

“S/Título”. Detalhe.

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