Artigo

A NOVILÍNGUA

Por João de Almeida Santos

Totem&Tabu

“Totem&Tabu”. Jas. 04-2021.

EU ESCREVO MUITO, como se vê. Se calhar até escrevo demais. E ainda por cima em português, não em inglês. Por isso já comecei  os treinos de escrita – embora timidamente, porque pouco convencido da justeza da causa – em neutro e inclusivo. Nada fácil, hã? Sobretudo escrever neutro, porque gosto sempre de tomar posição. Não necessariamente pelo masculino ou pelo feminino. Pode até ser pelo neutro. Mas confesso que depois de tantos anos a escrever – e em várias línguas – tenho tido muitas dificuldades em escrever nesta novilíngua, apesar de estar habituado ao grego, ao latim ou ao alemão. Todas estas línguas têm o neutro. Por exemplo, derdiedas, em alemão, onde, inexplicavelmente, até o cavalo é neutro: das Pferd. Mas em português, em italiano, em espanhol ou em francês não há neutro, julgo eu, embora haja sobrevivências. Por exemplo, curriculum, em português. É neutro, mas não inclusivo (felizmente), o meu curriculum. No inglês é mais fácil: o artigo é só um, nem masculino nem feminino nem neutro: “the”. Que distância (e não só temporal) vai entre o inglês e o grego antigo! Três a um… para o grego. Mas se, mesmo com curriculum neutro, falar e escrever em neutro é difícil, já em inclusivo é mais fácil, apesar de tantas vezes termos de praticar o exclusivo. Por exemplo, em textos originais, sobretudo em dissertações e em teses (o que é cada vez mais raro). Mesmo assim, a dificuldade é menor. Agora, o neutro é quase impossível. À primeira, escrever em neutro significa não tomar posição. Nem os jornalistas o praticam, apesar de a neutralidade estar inscrita em quase todos os códigos éticos. Escrever sobre um assunto é também refutar certas posições que se considera erradas, ou não? Não se deve ser neutro, na minha humilde opinião. Não foi por acaso que o português não importou o neutro do latim. É que de outro modo não haveria progresso (como houve). Andar de bissetriz em bissetriz é que não. É comovente? É. Mas é improdutivo. Isso é o que fazem os temperadinhos do Camilo. Eu creio, pois, que escrever e falar neutro equivale a não escolher e, logo, a nada fazer. Tenho, por isso, tido muitas dificuldades em escrever correcto, pela primeira vez na minha vida, depois de passar décadas a escrever como profissional. Até dificuldades de natureza psicológica. Logo eu, que gosto tanto de fazer coisas e, sim, de tomar posição. Mesmo em textos simples e formais. Um toque pessoal fica sempre bem, não é? Mas agora imaginem o que é escrever um poema ou pintar um quadro… em neutro e inclusivo. E nem sei o que pensará disto um compositor, mesmo que já tenha sido inventada uma notação musical neutra e inclusiva. Aqui fica-se mesmo literalmente perdido. Sem palavras.  E sem cores. Fica-se neutro, parado. Nem inclusivo nem exclusivo. E, chegado aqui, é assim que, paradoxalmente, me sinto: neutro. Para começar.

NOVILÍNGUA

NÃO SEI quem inventou esta novilíngua, não, mas a verdade é que os manuais já proliferam por aí. Manuais de bom comportamento linguístico. E até leis (por exemplo, a lei 4/2018, de 09.02, art. 4) A escola primária (e até o liceu ou mesmo a universidade) já não chega. Agora é aprendizagem ao longo da vida. E têm razão, tal como Sócrates, o grego, a tinha: só sabia que nada sabia. Neutralidade absoluta. Por isso declaro que, não tendo ainda nenhum manual da novilíngua (fiquei à espera do Manual do Conselho Económico-Social e… nicles, não conseguiram concertar nem consertar posições, apesar dos esforços do presidente Assis), hei-de comprá-los todos (num gesto inclusivo) para ver se aprendo a escrever, sem erros semiológicos. Bem li o da Universidade de Manchester, mas soube-me a pouco. E confesso que até me assustou. O problema é que – e tenho bem consciência disso -, falando e escrevendo assim, para além da dificuldade (e até da canseira) de estar sempre a ser neutro e inclusivo, gastando toda a minha criatividade e todo o latim nisso, o risco é nunca tomar qualquer decisão, porque decidir é escolher e escolher é excluir, ou seja, é não ser neutro nem inclusivo. Mas a verdade é que as musas são nove, correndo-se sempre o risco de excluir alguma delas. Eu temo sempre esquecer-me de Terpsicore ou de Melpomene num dos meus poemas, excluindo-as, como Musas, e arriscando-me a ser atingido por um raio lançado a partir do Monte Parnaso. Se já é tão difícil escrever um poema, mais difícil será escrever poemas na novilíngua. Uma nova tendência poética ainda pouco conhecida. Ouvir dizer “a poética do JAS é neutra e inclusiva” talvez fosse lindo. Mas temo que isso não venha a acontecer. Porque se já era difícil escrever, por exemplo, poemas meta-semânticos, esta nova escola é, por certo, muito mais difícil e complexa. Digamos, é meta difícil de alcançar, vista a escassez de recursos que se prenuncia. Naquela, pelo menos, sempre há um Fosco Maraini, com quem aprender. O “Lonfo” tanto pode ser neutro e inclusivo, como parcial e exclusivo. Será aquilo que um poeta quiser. Até porque “Il lonfo non vaterca né gluisce e molto raramente barigatta”. Não há, pois, na poesia meta-semântica problemas de maior com o neutro e o inclusivo. O “Lonfo” só aparentemente é masculino. Na verdade, ele “non vaterca né gluisce”. Mas, agora, com esta nova tendência, aprendo com quem? Só se for com a senhora deputada do PS Isabel Moreira. Se calhar, uma língua meta-semântica poderia ser a solução. Depois, pintar também de forma neutra e inclusiva é tremendo. Digo eu, que pinto. As cores, ah, as cores, como faço a ser neutro e inclusivo? Pintando sempre com todas as cores, sejam elas apropriadas ou não? E, depois, quem me compra os quadros? Os que gostam de azul, mas não de verde nem de vermelho (e são imensos)? Os que gostam de cores quentes, mas não suportam cores frias, nem sequer em Agosto? A preto e branco ainda vá que não vá: fifty/fifty. Mas, sendo neutro, não será inclusivo porque deixa de fora todas as (outras) cores. Bom, sempre poderei ficar conhecido como o pintor do preto e branco, ou do branco e preto (não sei se aqui a ordem dos factores será arbitrária), embora não saiba se estas duas palavras são eticamente aceitáveis na estética e na semiótica da novilíngua. Creio que não e, então, desabafando, perguntar-me-ei: “Ora bolas, como faço?”.

“L’ENFER C’EST LES AUTRES”

O PROBLEMA já nem será conseguir escolher, num mais restrito léxico, as palavras (ou as cores) e com elas montar um belo texto (ou um belo quadro) e dizer alguma coisa que valha a pena. Não, a tarefa principal será escolher e usar (dicionário, pincel e manual à mão) palavras (e cores) neutras e inclusivas. Isto é que interessa. E, já agora, dizer e pintar o menos possível, porque quanto mais dizes e pintas mais escolhes e, logo, excluis. Que diabo, não se pode estar sempre a incluir. Até porque cansa. Incluir, cansa mesmo, apesar de o velho Marx dos “Grundrisse” ter dito, acerca da realidade, que o concreto é a síntese de múltiplas determinações (não confundir, todavia, com múltiplas e com terminações). Ou seja, o concreto até parece, pois, ser, pelo menos tendencialmente, inclusivo, na visão do grande intelectual da luta de classes. Oxímoro? Talvez. Mas disse. E o concreto também é neutro? Suponho que não, porque, caso contrário, não haveria línguas com o masculino, o feminino e o neutro, como o alemão. Mas, mesmo assim, vem-me a dúvida. E o pior é que nem lhe posso perguntar, porque já se finou há muito tempo. E que dizer do velho Jean-Paul Sarte, que dizia, na peça “Huis Clos”: “l’enfer c’est les autres”? Inclusivo, ele, o pai do existencialismo? Não, claro que não… e muito menos neutro. Bom, se calhar era a influência de uma guerra que matou dezenas de milhões de pessoas. Ali, ou matavas ou morrias. Ali, o inferno eram mesmo os outros, os que estavam do outro lado das trincheiras. A inclusividade e a neutralidade não eram possíveis. Mas eram outros tempos. Agora, o que é preciso é ser neutro e inclusivo, precisamente para não haver guerras, a não ser, claro, contra os que não são neutros e inclusivos. Oh, é mesmo isso. Uma nova teoria da paz. Vou perguntar ao Johan Galtung se esta teoria é possível e desejável. Uma teoria da paz neutra e inclusiva, mas que não dê tréguas aos que não são neutros nem inclusivos? Hum…

“IL FAUT SE DONNER UN PEU DE COURAGE”

SEJA COMO FOR, se com esse monumento à simplicidade e à estupidez, diga-se em abono da verdade, que é o acordo ortográfico, nunca se consegue escrever um texto sem misturar a velha ortografia com a nova (e é por isso que eu nem tento, e aqui não sou militante neutro nem inclusivo, sou mesmo contra), mesmo andando com manuais de neo-ortografia no bolso, imagine-se o que será construir um texto com algum nexo e sentido totalmente neutro e inclusivo. Porque ou me preocupo em ser neutro e inclusivo ou me preocupo em dizer e fazer alguma coisa de jeito, sem pôr travões às quatro rodas na linguagem. As duas coisas ao mesmo tempo é difícil, a não ser para os profissionais do semioticamente correcto. Mas mesmo esses duvido que consigam. E até duvido que consigam vender um livro que seja. Artigos, vá que não vá, sempre podem publicá-los no “Expresso”. Mas é difícil, talvez porque se trate de coisas contraditórias (conjugar liberdade com manuais). Não sei, porque ainda não consegui entrar nos meandros desta novilíngua, na sua deontologia, na sua semântica, mas sobretudo na sua especialidade estética. Até porque, certamente, será preciso muito estudo, muito treino e sobretudo longas investigações sobre obras exclusivas e parciais (se é que este é o verdadeiro antónimo de neutro) para sabermos como não deveremos falar e escrever. Talvez estudando, por exemplo, o Eça de Queiroz (já comecei com “Os Maias”). O certo é que a literatura terá de recomeçar, voltar a ter fraldas para chegar a um vestuário neutro e inclusivo. Sobretudo no inverno, que faz frio. Bom, mas confesso que, infelizmente, talvez já não tenha idade para recomeçar tudo de novo. Tentarei, mas, se não conseguir, que é o mais provável (a idade não perdoa), continuarei com o fato e as gravatas que tenho vestido até aqui, sem receio de ser execrado pelos sacerdotes e sacerdotisas do semioticamente correcto, ficando de consciência tranquila porque, ao menos, e embora cheio de dúvidas, comprei e estudei todos os manuais da novilíngua (num generoso gesto inclusivo, como disse). Tudo bem, mas talvez seja também uma questão de liberdade e não só de dificuldade. Poder-se ser não-neutro, apesar de se tentar ser o máximo inclusivo. E se calhar é mesmo por isso que não me entendo com esta novilíngua. Aqui sou mesmo muito sensível. A verdade é que, durante o “Estado Novo”, me treinei a resistir aos manuais do politicamente integrado, inclusivo e neutro e a lutar por uma linguagem livre, tendo sido apanhado, pelo menos duas vezes, por não ter usado linguagem neutra, que era o que os do regime queriam. E  assim continuarei – acabo de decidir, quase já no fim do artigo -, seguindo o conselho da Anne Rosencher em “L’Express” (1-7.04.2021, p. 8),  que referia uma espécie de “espiral do silêncio” (E. Noelle-Neumann) que já está a tomar conta dos franceses, tendendo estes cada vez mais a silenciar-se com receio de se verem socialmente execrados por um uso menos politicamente correcto da linguagem. E o caso acontece logo com o francês, uma língua bué difícil, sofisticada e até um pouco exclusiva e “chic”, confessemos (as senhoras, antigamente, eram consideradas prendadas quando “parlaient français e jouaient le piano”). Mas, citando Marcel Gauchet, ia mesmo mais longe: falava de “delegação da cidadania”, numa espécie de denegação linguística dos franceses. O seu conselho foi, pois, o de que “il faut se donner um peu de courage”, antes que a “espiral do silêncio” se instale e a novilíngua tome conta definitivamente de nós, nos entre pela boca adentro e acabe por nos sufocar a alma e o verbo. Que assim não seja. Amen. Jas@04-2021.

Totem&TabuRec

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