Artigo

REFLEXÕES SOBRE A CRISE

Por João de Almeida Santos

Geometria

“Triângulos”. Jas. 11-2021

REFLEXÕES SOBRE A CRISE

I.

Sim, haverá eleições, depois de o Orçamento de Estado ter sido chumbado. Os governos socialistas desde 1995 parece terem um destino marcado: seis anos de vida, legislatura e meia. Já são três os casos: António Guterres, José Sócrates e António Costa. António Costa cai pela convergência negativa de votos das mesmas forças que derrubaram José Sócrates. Primeiro, o PEC IV, agora, o Orçamento. Um destino. O sistema proporcional que temos não foi feito para garantir estabilidade, mas representatividade. O que tem tido um preço. São difíceis as maiorias absolutas de um só partido, é verdade. O sistema eleitoral quase não as permite. Os seis anos parece, pois, terem sido elevados a medida do cansaço – de quem governa e de quem faz oposição. A solução poderia ser um sistema eleitoral proporcional com prémio de maioria ou um maioritário uninominal. Este último permitiria mitigar a lógica da livre “nomeação” dos candidatos a deputados em listas fechadas e a coberto da sigla partidária. Permitiria melhorar a selecção dos representantes, uma vez que seriam eles a ter de dar a cara perante os eleitores nos respectivos círculos eleitorais em vez de ficarem cobertos pelo manto protector da sigla partidária. Também obrigaria a acordos prévios entre os partidos para eleger o melhor candidato. Assim como estamos, a tendência dominante será sempre a de maiorias relativas. Não haverá estabilidade para cumprir um mandato completo. Até hoje só houve três maiorias absolutas. E as duas de Cavaco Silva muito têm a ver com a chegada e a aplicação dos fundos estruturais da União Europeia. Só restam alianças, mas, depois, é o que se sabe e se vê.

II.

Houve gritaria sobre a crise. Mas parece excessiva. A realizarem-se as eleições a breve trecho (e não de acordo com os interesses pessoais de Paulo Rangel) é possível ter orçamento lá para Abril. Até lá, duodécimos. Um quarto do ano em regime de duodécimos. Nada que seja dramático. O que virá a seguir? O voto dos portugueses decidirá. E talvez seja o momento para repensar o sistema eleitoral. E, com ele, também a lei eleitoral autárquica.

III.

Também se ouve dizer que os portugueses perderam isto e aquilo, mais aquilo e isto. Sim, claro, perderam tudo o que estava no orçamento… porque foi chumbado. Ficam com o que estava, também este da responsabilidade do PS, em 2019, durante 4 meses. Esse orçamento era assim tão mau? Não pode continuar a ser executado durante 4 meses? Bem sei, o que é mau é ser executado em duodécimos. Mas nem sequer é dito que o próximo orçamento seja pior do que este. Até poderá ser melhor. Quem sabe? Como é frequente ouvir dizer, sobretudo quando se fala de justiça, são as instituições a funcionar.

IV.

São muitos os que dizem que o PCP e o BE deram de mão beijada vantagens à direita, moderada e dura, ao não garantirem a continuação do PS no poder. Mas, digo eu, se esta for a lógica normal, então o PCP e o BE estarão sempre obrigados a votar a favor dos governos socialistas, em qualquer caso, para não darem hipóteses à direita, ao “inimigo”. Todos unidos contra o perigoso “inimigo”. Unidos contra, não a favor… de um projecto, esse sim, a ser negociado e trabalhado com rigor e coragem com vista à construção de um bloco hegemónico. Em parte, só numa ínfima parte, se pode dizer que foi assim em 2015. De qualquer modo, nem isto houve em 2019. E o resultado foi este.

V.

Ouvindo o que por aí se diz, até parece que a política é simplesmente um deve e haver, uma contabilidade. Pura táctica. Simples ética da responsabilidade política: atento às consequências dos teus actos! Habitas o meu espaço, o nosso espaço, logo, não podes abrir o flanco para que outros venham ocupar o nosso território comum. Seja esse comum o que for, mesmo que se reduza ao “topos”. Uma lógica com barbas. Faça eu o que fizer, dizem, a ética da responsabilidade impõe que me apoies contra o “inimigo” comum. Se não, fazes o jogo dele e dás-lhe a vitória de mão beijada. Um “inimigo” externo é sempre muito útil para garantir o poder. A “conventio ad excludendum”, que afastava do arco da governação PCP e Bloco, desapareceu em 2015, mas agora parece estar a surgir uma nova e imperativa “convenção de inclusão”. Por motivos tácticos. Dentro a todo o custo para não favorecer o “inimigo”. Digo “inimigo”, com aspas, para sublinhar a lógica da diabolização do outro, uma espécie de dialéctica política schmittiana amigo-inimigo. Só que  em democracia não há inimigos, mas adversários que não devem ser diabolizados, nem à direita nem à esquerda, desde que estejam no interior do arco constitucional.

VI.

A verdade é que o universo da ética não se reduz à ética da responsabilidade, como ensinou Max Weber. Também há a ética da convicção política, aquela que diz respeito aos valores, aos princípios e às orientações estratégicas programáticas. E esta não pode ser lida a partir do deve e haver. Ela tem de ser conjugada com a ética da responsabilidade política, sem dúvida, mas esta também tem de ser conjugada com aquela, com a ética da convicção política. É da conjugação de ambas que pode resultar uma ética pública robusta. E é aqui que a esquerda pode diferenciar-se da direita. De resto, em 2015 e nos anos seguintes houve uma clara assunção e valorização das duas éticas, a da responsabilidade política, que garantiu o acordo, e a da convicção política, que garantiu a identidade própria de cada força política. Acabaram as especulações sobre as divergências, porque os campos da cooperação estavam claramente definidos, e por escrito, sob reserva das próprias identidades e convicções políticas de todos os partidos envolvidos.

VII.

Há uma outra questão que esteve em cima da mesa, ocupando-a praticamente toda: a política redistributiva. A saber: quem redistribui mais. Parecendo que a política se reduz à redistribuição. A velha questão da justiça social, justiça distributiva (social-democrática) ou justiça comutativa (liberal). Uma coisa, a justiça social, que o Hayek dizia não saber o que é. Mas sim, é isto que diferencia os sociais-democratas e socialistas dos liberais, tal como é a maior ou menor intensidade da justiça social ou redistributiva que os diferencia dos comunistas. Mas há também uma questão a montante: redistribui-se o que se tem e com justiça, sem impor um jugo fiscal aos mesmos de sempre. Os recursos financeiros do Estado serão sempre limitados, tal como a carteira dos contribuintes. Com eles é-se justo com quem recebe, mas pode-se ser injusto com quem dá. Quanto mais dás – e este é um território quase sem limites – mais tens de receber. Aumenta a justiça por um lado e a injustiça pelo outro. “A primeira coisa que temos de fazer é perder a vergonha de ir buscar dinheiro a quem está a acumular dinheiro” – esta pérola dos redistribuidores à outrance é da Mariana Mortágua. O que se espera, mesmo assim, é que a senhora deputada não se esteja a referir ao esforço de poupança que os cidadãos vão fazendo ao longo da vida. Quando se carrega brutalmente nos impostos, para dar o que se tem e o que não se tem, é isso mesmo que acontece.

VIII.

Sim, vamos para eleições, uns meses depois das eleições autárquicas e quase sem ainda se ter metabolizado os seus resultados. Quase, digo, porque a direita leu-as como o início de um novo ciclo e o PS como uma vitória tranquilizadora. Eleições que, de facto, não foram de normal administração, tendo introduzido na vida política novas dinâmicas, sobretudo no PSD, ao ganhar Lisboa e dez capitais de distrito no continente, iniciando claramente um movimento de recuperação política. À surpresa de Carlos Moedas esperam agora muitos que se junte a surpresa Rangel, impante de tratar por tu os grandes da Europa depois de 12 anos no coração do poder da União. Não importa que seja estrídula, ácida e saltitante a sua performance. É uma novidade, verbo pronto a disparar na ponta da língua, logo, mediaticamente interessante. Suficientemente de direita para garantir que não haverá promiscuidade política com o PS. A chave parece estar agora na resolução do problema do PSD. E não sei se este problema, chamando o partido ao topo da agenda, não acabará por beneficiá-lo, qualquer que seja o desfecho, Rio ou Rangel. Digo isto, a pensar na famosa, e tão seguida, teoria do “Agenda-Setting”.

IX.

A verdade é que o ciclo que António Costa abriu em 2015 acaba de se fechar, agora já não, como antes, por preconceito ideológico, por “conventio ad excludendum”, mas por razões concretas, por divergências programáticas e por crise de confiança. Parece agora mais claro que António Costa em 2015 não agiu para criar um bloco hegemónico capaz de perdurar, mas tão-só por razões tácticas e instrumentais. Isso seria confirmado pela sua posição em 2019 relativamente ao Bloco de Esquerda, mostrando-se esta crise como a directa consequência disso mesmo. Esse passo, que foi enorme, acaba reduzido a simples momento táctico que agora conhece o seu fim.

X.

O que acontece é que com o actual e difícil sistema eleitoral António Costa terá dificuldade em dizer o que fará se ganhar as eleições outra vez com maioria relativa, quase se vendo agora obrigado a lutar abertamente, isso sim, por uma maioria absoluta, o que será certamente muito difícil, não sendo sequer certo que as ganhe. Uma nova dinâmica à direita e a possibilidade de alianças pós-eleitorais com outros partidos de direita poderão ditar um desfecho muito diferente do que foi o desfecho de 2015 e de 2019. A ideia de garantir a governabilidade poderá ditar à direita uma aliança pós-eleitoral de largo espectro, numa lógica simétrica àquela que em 2015 foi desenhada por António Costa. Aliemo-nos todos para impedir que a esquerda gastadora chegue de novo ao governo do país. E, se isso acontecer, em que situação política ficará António Costa? Dará os passos que Passos deu?  Será, então, o momento de Pedro Nuno Santos avançar?

XI.

Uma das raízes dos problemas com que nos deparamos, além da natureza do sistema eleitoral proporcional, foi a saída de cena da política da ideia de hegemonia, num sentido maior do que a mera hegemonia política. Uma ideia que introduz “gravitas”, profundidade histórica, que abre espaço à formação de blocos hegemónicos e que dá solidez e transtemporalidade à acção política. Mas para isso seria necessário abandonar a lógica da governação à vista, o tacticismo puro e a redução da política à mera filosofia redistributiva de recursos, sem cuidar de investir também na promoção desses mesmos recursos e de garantir justiça fiscal junto de quem cumpre o seu dever de cidadania. A dominância quase absoluta da lógica redistributiva na acção política rapidamente se converte em dialéctica eleitoral e em pressão fiscal cada vez mais asfixiante para os cidadãos contribuintes e para as empresas. Mas os destinatários desta política parece poderem dar maiorias de governo, ainda que relativas. E isso parece ser o que mais interessa, o que está a marcar cada vez mais a agenda da esquerda – um gravíssimo erro porque é a montante que se situa a fonte de toda a redistribuição, a criação de riqueza, para a qual é necessário disponibilizar recursos, reinvestir e projectar. A esquerda não se pode fixar só na redistribuição, apesar de uma justa e eficaz redistribuição poder contribuir significativamente para o crescimento e o desenvolvimento.

XII.

O ex-governador do Banco Central Europeu, Mario Draghi, no seu discurso de posse como Presidente do Conselho de Ministros italiano disse uma coisa que retive pela sua justeza: “O tempo do poder pode ser desperdiçado também pela única preocupação de o conservar”. Para que isso não aconteça é necessário olhar sempre para um horizonte que seja mais amplo do que a fronteira da gestão corrente, dos efeitos eleitorais e da manutenção do poder. #Jas@11-2021.

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